segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Linguagem & Exclusão - Risomar Fasanaro


Minha amiga Alfredina Nery, que também é professora de língua portuguesa e de literaturas brasileira e portuguesa, me presenteou com o livro “A Língua de Eulália”, de Marcos Bagno. Graças à leitura desta obra e a longas conversas com ela, passei a refletir mais sobre a linguagem oral e o preconceito de que ela é vítima.
Atenta às observações que as pessoas fazem a respeito das “incorreções” da linguagem do povo, resolvi me aliar a alguns linguistas, e defender a forma de falar de grande parte da população.
Um dia estava no elevador do prédio com o jornal do dia, e ao olhar a primeira página comentei com um rapaz que tinha vindo consertar alguma coisa no condomínio: “nossa!...só traz notícias ruins.” E ele concluiu: “pois se é disso que ele vévem...”
Naquele instante constatei o quanto a língua é um divisor de águas entre os incluídos e os excluídos. Já passara da hora de eu escrever sobre o assunto. A exclusão se estampava naquela figura simples, vestida humildemente, calçando sandálias havaianas.
Aquele rapaz expressava seu pensamento em uma variação de língua não consagrada pela gramática normativa, mas revelava a consciência que ele tem, capaz de reconhecer seu papel de cidadão, e de perceber claramente que a mídia, em nossa sociedade, enxerga muitas vezes, apenas uma fatia da realidade: a das tragédias humanas, aquela que produz lucros. “notícia boa não vende” é o que dizem.
Faz algum tempo, em um curso de “Políticas públicas para mulheres” que fiz, ouvi de uma das presentes: “eu sinto vontade de falar, de participar dos debates, de dar minhas opiniões, mas tenho medo de falar errado e as pessoas rirem de mim”.
Aquele desabafo me causou profundo mal-estar. Saber que a linguagem, um dos mais importantes instrumentos que existem para promover a comunicação entre as pessoas, pode se tornar uma barreira, e, o que é pior, pode promover a exclusão, exige dos que a utilizam como instrumento de trabalho, alguma (re)ação.
Mas nem sempre pensei assim. Houve um tempo em que meus ouvidos faziam “toiiimmmm” cada vez que ouvia alguém se expressar diferentemente das normas gramaticais. O encontro com aquele rapaz no elevador me deixou feliz. Feliz por perceber quanto eu mudara, o quanto agora eu entendia e compreendia a língua brasileira, a língua do meu povo que, ao contrário do que pensam os que ditam suas normas, ela não é pobre, não é corrompida, nem está na sarjeta, como ouvi alguns dizerem. Ao contrário, ela segue o caminho natural que é o dinâmico, passa pelas transformações a que todas as línguas vivas estão sujeitas.
A cada momento que um brasileiro inventa uma palavra, a cada instante em que ele supre um s, troca um l por um r, ou traz para nosso vocabulário uma palavra árabe, norte-americana ou japonesa...sei lá, ela se enriquece.
Vamos defender a leitura de obras literárias sim, mas não façamos delas “camisas-de-força” que obriguem as pessoas a falar exatamente como se escreve. Por enquanto língua falada é uma, escrita é outra.
Que o exemplo de Guimarães Rosa, Monteiro Lobato, Aluísio Azevedo, João Antônio e Lima Barreto, esse último usou até gírias em “Triste fim de Policarpo Quaresma”, todos defensores da linguagem popular, seja seguido e inspire outros autores a utilizá-la em seus escritos. Quem sabe passemos a ver essas fugas das normas oficiais não como incorreções, e sim como fazendo parte da língua. Uma língua que há muito já deveria se chamar de brasileira.
Aos que acham que ela deve ser fiel ao português de Portugal, pergunto: é possível hoje excluirmos do nosso vocabulário palavras como: sachimi, deletar, quibe e tantas outras? É interessante exigir que nosso povo diga dois reais, nós fazemos, nós iremos, quando ele já consagrou “dois real”, “nós faz”, “nós vai”?
Os que têm consciência disso, devem continuar insistindo pelo direito de todas as variações de usos da língua serem consideradas em sua riqueza de conteúdo. A língua falada de um país é a da classe dominante. Assim, nosso papel enquanto pessoas que têm o objetivo de construir um país verdadeiramente democrático, é o de brigar para que nossa língua nunca se feche às transformações dos que “vévem” à margem das gramáticas.
É preciso lembrar que a literatura sobreviveu muitos séculos completamente independentes da gramática. Homero escreveu a “Ilíada” e a “Odisseia” no século VI antes de Cristo, enquanto as gramáticas gregas só surgiram no século II AC.
Não vamos esquecer o poeta pernambucano Manuel Bandeira que em seu poema “Evocacção do Recife”, em 1930 já reconhecia a beleza da língua do povo:
“...a vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/vinha da boca do povo na língua errada do povo/língua certa do povo/porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/ao passo que nós/o que fazemos/ é macaquear/ a sintaxe lusíada”


sábado, 1 de agosto de 2015

2015: um encontro de amigos em Osasco - João dos Reis



Para Ewerton Antunes e Arthur Antunes, de Curitiba

“Estamos os meus amigos. (...)
Os gestos, a alegria
do encontro tornara-os ternos e desajeitados.
Mais do que dirigindo-nos a nós próprios,
fazíamo-lo para uma presença imaginária,
a secreta corrente que cada um unia, e,
mais secretamente ainda, dois e três escondia.(...)
Os meus amigos falam, falam todos ao mesmo
tempo e não se entendem.
E quanto mais querem dizer mais abraços dão”
João Miguel Fernandes Jorge, inicio do poema “Jantar em Alcabideche”.

No restaurante “La Manchega” em Osasco, Albertino revela as dificuldades da Comissão da Verdade de Osasco. José Geraldo nos conta do período e que ele e o filho estiveram com dengue; e da viagem ao campo de concentração Auschwitz na Polônia. Risomar descreve o personagem do livro que está terminando de escrever. Toninho nos fala da cela no DOPS do Largo General Osório onde esteve preso nos anos 70. Espinosa anuncia a série de artigos que está escrevendo sobre a universidade pública. Airton mostra o entusiasmo com o curso de Fenomenologia que está frequentando na USP.

O grupo se reúne mensalmente para um almoço de confraternização há quatro anos. Albertino Souza Oliva, advogado, participou do movimento emancipacionista de Osasco. José Geraldo Vieira, advogado, esteve ligado ao movimento dos padres operários – e é o principal idealizador desses encontros. Risomar Fasanaro, professora de Literatura e Lingua Portuguesa, ativista cultural que esteve ligada aos artistas que agitaram a cidade desde os anos 60. Antonio Vieira de Barros, operário, participou da JOC, da Frente Nacional do Trabalho e da Oposição Metalúrgica. Antonio Roberto Espinosa foi do comando da organização guerrilheira VAR-Palmares e proprietário do Jornal “Primeira Hora”. Airton Cerqueira Leite, professor de Geografia, militou na Apeoesp, sindicato dos trabalhadores da educação pública.

Sobre o que conversamos? Nossos diálogos não têm roteiro; nossos almoços não têm data nem dia definidos: é um encontro de amigos para trocar idéias, revelar as agruras do cotidiano, expor as dificuldades e os novos projetos – uma celebração à vida e ao futuro.

Estivemos sempre ligados por laços de amizade e de ideais políticos. A passagem do tempo não nos afastou, apesar dos caminhos que cada um de nós percorreu. O que nos aproxima ainda hoje? Penso que é o compromisso com a luta da classe trabalhadora, a defesa de um humanismo radical, de uma sociedade com justiça e igualdade.

Todos participaram da vida sindical e política na cidade. Albertino e José Geraldo como militantes e da assessoria jurídica da Frente Nacional do Trabalho; Toninho e Airton como sindicalistas; Risomar como militante sindical e da cultura; Espinosa como jornalista e professor universitário.

Em muitas outras reuniões os amigos estiveram presentes: no Partido dos Trabalhadores, na Frente Nacional do Trabalho, no sindicato, na vida cultural da cidade. Acredito que em nenhuma dessas ocasiões ficou evidente como nos nossos almoços-encontro: a amizade fraterna e solidária – que sobreviveu aos anos do terror policial, aos dilemas da redemocratização, à partida definitiva de companheiros, aos embates da vida presente.

E vocês me perguntam: quem sou eu no grupo de amigos do passado? Sou o “secretário” indicado por eles para articular o encontro, marcar o dia, escolher o restaurante, enviar e-mails para os convidados. Como no verso final de João Miguel Fernandes Jorge, estou presente entre meus amigos e, em silêncio, “olhava-os como vocês, leitores, nos estão a olhar agora”.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O dia que conheci o fundador da Banda de Pífanos de Caruaru- Risomar Fasanaro



Em 2013 fui convidada pelo casal Cupertino e Edna dos Santos para conhecer o fundador da Banda de pífanos de Caruaru. Era uma quarta-feira quando minha amiga Edna e eu chegamos à casa de Sebastião Biano, no bairro de M’boi Mirim. Ele nos recebeu à porta, e me foi difícil acreditar que aquele senhor que não aparentava mais de 70 anos, estivesse com 93.
Vendo e conversando com ele, fui tomada pelas lembranças da minha terra: as cirandas de Lia, o pastoril de Piedade, bumba-meu-boi e reisado, maracatu e, sobretudo, a banda de pífanos de Caruaru.
Ali naquela sala, ouvindo a história de Sebastião, meu ouvido interno “escuta” o som da banda enquanto ele me conta: a história dele começou quando ainda era muito criança. Foi quando em 1924 o pai, Manuel Clarindo Biano viu uma banda de pífanos tocando em uma novena em Alagoas. Os sons da banda encantaram aquele homem que fugia da seca, não saíram mais de sua cabeça, e se alojaram em seu coração.

Anos depois ele levava os filhos pra roça, para aprender a plantar o roçado. Brincando, as crianças, Sebastião Biano então com 5 anos e o irmão com 7, descobriram que fazendo 2 furos nos talos das folhas de jirimum ( abóbora) era possível extrair algum som. Naquele instante a emoção tomou conta daquele lavrador, só de pensar que ali começavam a despontar aqueles músicos. Naquele instante decidiu procurar alguém que confeccionasse pífanos para os dois garotos:
-Vocês vão aprender a tocar.
O pai mandou fazer uma par de pífanos porque para fazer 1ª e 2ª voz é preciso que haja um par, e quando os instrumentos chegaram, os meninos começaram a ensaiar, o que seria a nascente Banda de Pífanos de Caruaru.
Mas não bastou ver os filhos tocarem, analisando como os instrumentos eram feitos, ele resolveu tentar fazer um. Deu certo, e tendo aprendido com o pai, hoje Biano também faz pífanos que vende aos interessados.
O músico nos explica que os instrumentos são feitos de taquara que ele colhe em terra bem úmida, na mata.
No início, a banda tocava só em novenas, enterros de crianças e nas festas religiosas. Percorriam longas distâncias, para se apresentar em cidadezinhas do nordeste. Vida difícil, bem diferente dos locais em que hoje se apresenta.
Encantada com a história que ouvimos, peço a ele que toque um pouco e ele não se faz de rogado, toca “Asa Branca” e outras composições suas. É impossível traduzir a emoção que sinto ao ouvir o que para nós, nordestinos, é um hino. Em seguida, ele me presenteia com um pífano, e nos convida para um café. Enquanto tomamos café com ele e a filha, ele continua falando sobre a trajetória do grupo:
Em 1939 a família Biano chegou a Caruaru, no interior pernambucano, onde decidiu se estabelecer. Com a morte de Manoel, em 1955, a zabumba foi assumida por João, o primeiro neto do fundador a integrar o grupo, então batizado oficialmente de Banda de Pífanos de Caruaru. E logo começou a fazer sucesso. Biano conta que eles tocaram para Gilberto Gil, e se lembra do encantamento do compositor com o trabalho do grupo.
Hoje, a banda ainda é formada por membros da família, e no repertório não faltam baiões, cirandas, xotes, a maior parte composições dele em parceria com algum componente do grupo.
Sebastião Biano e seu grupo já tocou muitas vezes “com Luiz Gonzaga, com Jackson do Pandeiro, Anastácia, Marinês, Trio Nordestino, e vários outros”, diz ele, referindo-se aos artistas que deram consistência a esse gênero musical.
Em 1972, a banda veio para SP gravar o primeiro LP, “Banda de Pífano Zabumba Caruaru”. Aqui participaram de documentários, espetáculos e de discos de outros artistas. Em 1973, gravaram o volume 2 de “Banda de Pífano Zabumba Caruaru”. Depois viajaram para apresentações no exterior, onde fizeram muito sucesso.
Em 1999 eles sofreram uma grande perda: Benedito Biano, um dos fundadores do grupo, faleceu em São Paulo, vítima de problemas cardíacos. Mas a banda continuou se apresentando e nesse espaço de tempo, gravou mais seis discos, hoje CDs, e é reconhecida no cenário musical nacional e internacional, tendo recebido o prêmio Grammy Latino, na categoria de Melhor Grupo Regional de Raiz, com o disco “Banda de Pífanos de Caruaru: No Século XXI”, em 2004.
Em 2005, na segunda edição do Prêmio TIM de Música, Sebastião recebeu o prêmio de Melhor Grupo na categoria regional, das mãos do então presidente Lula. Hoje este grande artista é um homem sereno, tranquilo que deixou Caruaru e vive em M-boi mirim; mas continua se apresentando e encantando o público.
Agora com o Trio "Esquenta muié",se apresentou recentemente no Sesc Santana,com a participação de Naná Vasconcelos e Siba", no lançamento de seu CD.E como disse minha amiga Edna: "foi de chorar, coisa que sempre faço quando o ouço tocar.".
São muitas as histórias que ele entusiasmado nos conta. Entre elas a de que quando era pequeno tocou para Lampião. E disse que ele e o irmão tremendo de medo, mal conseguiam segurar os pífanos, mas que logo ficou à vontade com o comentário do cangaceiro. Ao ouvi-los tocar, ele teria comentado com seus homens: “olhem só, esses meninos tão pequenos e já tocam e vocês não sabem fazer nada...”
Saímos daquela casa, Edna e eu, ainda “ouvindo” o som de “Asa Branca”, ainda com pedaços das histórias daquele homem tão gentil, tão simpático, tão jovem nos seus 94 anos...







segunda-feira, 27 de julho de 2015

Litoral Norte: o reencontro com a cultura caiçara 2 - João dos Reis



"Deixai que em suas mãos cresça o poema
como o som do avião no céu sem nuvens
como o surdo verão as manhãs de domingo
Não lhe digais que é mão de obra a mais
que o tempo não está para a poesia".
Ruy Belo, trecho do poema "Emprego e desemprego do poeta"


Para Pedro Paulo Teixeira Pinto, de Ubatuba

Em um sábado à noite o jovem Lenin, meu aluno de Filosofia no curso colegial , tocou a campainha do apartamento onde eu morava na Praça Cândido Mota em Caraguatatuba – e me convidou para acompanhá-lo a uma festa. Em 1973, ano em que cheguei à cidade para lecionar na Escola Estadual “Thomaz Ribeiro de Lima”, ele foi um dos meus amigos-camarada.

Lenin trabalhava com artesanato de taboa. Reclamou para mim: tinha que entrar na água do manguezal para recolher a planta – que depois se transformava em obras de arte: tapetes, assentos para bancos e cadeiras. Conversamos muitas vezes sobre a ausência de emprego no litoral. Era filho de um militante do PCB que morreu atropelado na Rodovia Manuel Hipólito Rego (SP-55) – e que deu a ele o nome do líder soviético.

Julio César Lopes Avelar foi presidente do centro cívico (grêmio) estudantil da escola onde eu trabalhava em Caraguatatuba. Conversei com o jovem estudante: não tínhamos eleições para governador e presidente da República, mas devíamos nos preparar para a volta da democracia. No final do ano e do mandato, convidei-o e aos outros participantes da diretoria do grêmio para um jantar com pizza para comemorar a despedida.

Lucio Mascarenhas foi um aluno-companheiro querido: conversávamos sobre livros, música, sobre a participação dele no grupo de jovens católicos. O pai dele, que faleceu em um atropelamento na Rodovia SP-55, era um grande leitor – tinha os livros da Coleção Saraiva de Literatura. Em um domingo Lucio gentilmente me convidou para o almoço - sua mãe preparou o prato típico caiçara: o azul marinho.

O casal de namorados Isabel Cristina de Oliveira e Márcio foram também meus caros companheiros nos primeiros anos da minha temporada no litoral. Não recordo o que conversava com Isabel, mas lembro que Márcio era bastante calado.

Acordei às 7 horas da manhã do dia do meu aniversário no primeiro ano no litoral com o toque da campainha: eram Rita e Ester com um bolo de presente. As duas alunas eram amigas inseparáveis – e nossas conversas eram frequentes. Quais eram os assuntos dos nossos diálogos? Elas participavam do grupo de jovens da Igreja Católica.

Nasci no interior de São Paulo, vivi desde os 12 anos em uma cidade proletária - e os anos em que fui professor no Litoral Norte foi uma experiência nova e enriquecedora. O convivio com os jovens alunos me tornou também um caiçara: tinha pouca roupa, um sapato, um chinelo, uma bicicleta, livros, e mais tarde, umamáquina de escrever e um carro. Não era proprietário de móveis ou utensílios domésticos: a casa alugada onde morava já era mobiliada.

Lenin foi para o planalto em busca de trabalho – não lembro se para São José dos Campos ou São Paulo; soube noticias dele por sua irmã, Tatiana. Tive durante muitos anos um tapete artesanal de taboa – e tenho dúvidas: foi um presente dele? O banquinho tenho até hoje, mas o assento de taboa se desfez com a passagem dos anos.

Julio cursou Oceanografia na UFRJ; nos encontramos em 1987 – trabalhava em Olivença no litoral da Bahia. Me convidou para passar as férias com ele, e hoje me arrependo de não ter aceito o convite.
Lúcio foi trabalhar em São Paulo - nos encontramos quando vinha à Caraguatatuba; durante alguns anos, tive noticias dele por sua irmã.

Rita cursava Engenharia; estive no casamento dela e, ao me despedir – e foi a última vez que a vi – ela chorou. Ester cursou Enfermagem na USP; ainda nos vimos algumas vezes, mas depois desapareceu na voragem da grande metrópole.

Márcio cursou Engenharia; Isabel, Psicologia. Nunca mais nos encontramos: o que restou foi uma foto no teleférico de Campos de Jordão, onde estivemos em uma excursão da escola.

Tive milhares de alunos em quase três décadas no magistério. Se recordo alguns deles é porque eles deixaram marcas na memória, apesar da destruição de vestígios que o tempo provoca em nossas vidas. A recordação mais triste é saber que o jovem abandonava a sua cidade, sua terra em busca de trabalho – e perdia para sempre os vínculos de afeto e amizade – e com a cultura caiçara.

sábado, 25 de julho de 2015

Ensino superior para a elite e o proletariado? Uma “aristocracia espiritual” na universidade? Uma reflexão sobre os 45 artigos de Antonio Roberto Espinosa- João dos Reis




“Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder venha arder em nosso peito
E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece
E saiam todos os sóis
que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
_ mas que saiam de joelhos
E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem”.
Alexandre O’Neill, poema “Canção”.

O título das minhas reflexões começa com duas interrogações – e surgiram pelas questões apresentadas por Antonio Roberto Espinosa em uma série de 45 artigos (“Algo de podre no reino da Universidade pública”), que estão sendo publicados na imprensa de Osasco.

Partindo da experiência de docente do ensino superior, o escritor retoma os concursos de que participou para uma vaga de professor na Unifesp de Osasco e do ABC para refletir e pesquisar a formação da aristocracia acadêmica, investigar os mecanismos que permitem a transformação do público em privado. “A presunção e a arrogância, além do sentimento de impunidade, constituem a marca indelével do aparelhamento da universidade pública pela burocracia acadêmica privatista”.

O primeiro artigo da série já revela as análises seguintes: “Mérito ou compadrio na seleção de professores?” O poder do saber ou, como ele mesmo diz, a reflexão sobre “o poder sobre o saber” é o caminho seguido pelo professor-filósofo.

Não pretendo – nem seria possível em uma página - explicar os mecanismos corruptos dos concursos públicos acadêmicos analisados pelo articulista. Me interessou denunciar a universidade como um aparelho ideológico do Estado: o “lucro do saber acadêmico beneficia capitalistas particulares casuais”. A “aristocracia espiritual” detêm o monopólio do saber por meio de burocratas especializados.

Pensei particularmente a identificação no domínio do conhecimento superior de “formas correspondentes de perversão: a ‘tirania intelectual’ e a ‘oligarquia espiritual’”. E a revelação na crença na palavra como um veiculo de dominação: para isso o autor recorre a Marx da Introdução de 1857 da “Para uma Crítica da Economia Politica”: a produção da realidade pelo pensamento - a elevação do abstrato ao concreto, produzindo um todo pensado a partir do devir em movimento da realidade e da ordenação do conhecimento.

Não há impiedade na expressão “fábrica de mediocridades” usada pelo jornalista-filósofo. É uma tentativa de lamentar e descrever o processo de burocratização dos mecanismos de seleção de professores – um instrumento de reproduzir e perpetuar a ideologia dominante. E dizer que o saber acadêmico é “apenas uma das formas de conhecimento, não a única”. O professor-candidato a uma vaga na universidade lembra aqueles que foram excluídos da academia: Jacob Gorender, Karl Marx, Mauricio Tragtenberg, Albert Einstein, para citar alguns deles.

Quais as sugestões para os concursos de novos professores para a universidade? O ex-guerrilheiro da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares apresenta, entre outras propostas, a introdução de alunos de graduação e de membros da comunidade no exame da prova didática (uma aula pública) – e também como fiscais em todas as etapas do processo de seleção. A avaliação do mérito e a transparência do processo seletivo envolve uma transferência do poder de uma classe que domina o Estado para a gestão direta da sociedade – o inicio de uma proposta de reforma.

Recordei o ano de 1968 em que houve a ocupação do prédio da Faculdade de Filosofia da rua Maria Antonia por alunos e professores, e das fábricas de Osasco pelos operários. Participei dos cursos livres e das discussões sobre uma “Universidade Crítica”- uma experiência revolucionária em Berlim e Paris. O debate era: qual era a universidade dos nossos sonhos? As palavras de ordem da revolta estudantil-operária: “é proibido proibir”, “a imaginação no poder”, “a humanidade só será livre quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último burocrata”.

Mais tarde, em 1980, o sonho de um fórum de debates com o proletariado foi o ponto de partida para a elaboração do projeto de educação da Frente Nacional do Trabalho em Osasco. Intelectuais, muitos deles não ligados à academia, concordaram em ir à periferia das cidades da Região Metropolitana Oeste para dialogar com os trabalhadores. O Brasil vivia ainda sob o terror e a repressão da ditadura militar, mas acreditamos na força do saber e da reflexão – e Antonio Roberto Espinosa, estudante-trabalhador na fábrica Cobrasma que cursou Filosofia na USP, foi um dos pensadores convidados.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Minhas telas mais recentes- Risomar Fasanaro


Um encontro histórico: militantes da VAR-Palmares em Osasco – novembro-2013 - João dos Reis


Estávamos reunidos à noite na casa do Espinosa no dia 15 de novembro de 2013. Foi um encontro dos militantes da VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares), depois de mais de 40 anos.
O projeto de reunião dos antigos combatentes começou um ano antes – deveria acontecer no feriado do 7 de setembro em Porto Alegre. Fui convidado por Antonio Roberto Espinosa para colaborar na organização junto com Raul Moura Ellwanger e Carlos Franklin Paixão de Araujo. Durante mais de um mês houve trocas de e-mails, elaboração de lista de participantes, escolha de locais e hotéis para o encontro. Foi suspenso porque muitos convidados estavam envolvidos nas eleições municipais.
Um ano depois, retomamos o trabalho, e a cidade escolhida foi Osasco, em 15 e 16 de novembro. Foram enviados centenas de e-mails e dezenas de telefonemas, e com a participação de Ieda Chaves, pesquisamos e indicamos três hotéis na cidade e escolhemos um restaurante. No sábado, o encontro aconteceu no salão de festas do prédio do Espinosa. No domingo, nos reunimos para o almoço no “Rincão Gaúcho Grill” na Vila Campesina.
Foram dois dias de reencontro, de emoções, de recordações do passado. Todos nós éramos muitos jovens no final dos anos 60 e inicio dos 70 – e arriscamos nossas vidas com coragem e generosidade. Em que acreditávamos? Na organização guerrilheira havia um debate sobre a luta armada contra a ditadura, os caminhos para o socialismo – que aconteceu em dois congressos, em Mongaguá e Teresópolis.
Espinosa lembrou em um último comunicado a “qualidade organizacional de nossa estrutura organizacional, uma das mais resistentes às investidas dos serviços de informação da ditadura, da qualidade ímpar das nossas reflexões, da nossa formação de quadros, das criticas que ousávamos fazer ao socialismo real do final dos anos 60 e da defesa esclarecida do socialismo contra as ilusões nacionalistas...”
Não conhecia a maioria dos presentes – e tive contato por e-mail. Compareceram militantes de vários estados – Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Espirito Santo, São Paulo e interior (Campinas, Guarujá). Com exceção do Norte e Centro Oeste, havia representantes de todas as regiões brasileiras. No balanço final, contatamos 63 companheiros, 51 participaram, 18 justificaram, e 12 foram convidados - cineastas, escritores, jornalistas, e quatro amigos de Osasco.
De um total de 2000 a 3000 militantes e da rede de apoio em 1969, apenas 5% foram localizados – por e-mail ou por telefone. O ponto de partida foi a rede de contatos de Cristina Chacel – que escreveu o livro “Seu amigo esteve aqui”.
Por sugestão do Espinosa, enviei durante os três meses que antecederam o encontro, correspondências semanais. Recordei os que foram mortos pela repressão ou estavam desaparecidos: Carlos Alberto Soares de Freitas, Carlos Lamarca, Marcos Antonio Dias Batista, Eremias Delizoicov, Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Chael Charles Schreier, José Campos Barreto - para citar alguns deles. Enviei um texto que pedi para Ana Matilde escrever sobre as lembranças dela de Maria Auxiliadora. E links da revista “Veja” de 3 e 10 de dezembro de 1969 sobre a prisão e morte sob tortura de Chael.
Depois do encontro, enviei os agradecimentos – é uma grande lista: Carlos Franklin Paixão de Araújo; Raul Moura Ellwanger - que apresentou um belo vídeo da história da VAR-Palmares; Julia Monteiro Espinosa - a anfitriã perfeita na noite de sábado; Jurema Augusta Ribeiro Valença – entusiasta do projeto desde 2011; Risomar Fasanaro – que escreveu um texto emocionado sobre as recordações dos anos de juventude; os amigos de Osasco, escritores e jornalistas; e os cineastas que, junto com Paulo César Azevedo Ribeiro, filmaram os depoimentos. Parte dos e-mails enviados e ou recebidos foram gravados por mim em CD – um documento para a história da resistência à ditadura militar no Brasil.
Espinosa escreveu um texto final, que enviei aos convidados, dizendo da dificuldade de resumir em um espaço de um e-mail o significado do reencontro dos militantes da VAR-Palmares. Lembrou daqueles que, durante os preparativos do encontro, não compareceram porque se despediram de nós para sempre: José Ibrahim, Leonel Itaussu Almeida Mello, Rafton Nascimento Leão. E acrescentou: “no sentido grego da expressão não há relação mais rara e profunda do que a amizade (...) A amizade é uma relação de cumplicidade e franqueza, de curiosidade sempre insatisfeita, de tolerância e compartilhamento de palavras nos momentos em que é possível falar e de silêncios nos momentos em que é preciso manter segredo. Amizade, enfim, é mais que lealdade, trata-se (...) de um estágio superior do companheirismo possibilitado pelo pacto de sangue do passado, que deixa marcas eternas indeléveis”.







terça-feira, 21 de julho de 2015


Uma amiga me avisa que vai haver a abertura do projeto “Poesia no metrô” no dia 20 de outubro. Vão colocar cartazes com poemas nas estações. A abertura foi ontem.
Que beleza, penso...Até que enfim vai surgir uma oportunidade para os poetas desconhecidos, jovens ou não, e aí, quem sabe, vou ter a chance de ver um cartaz com um dos meus poemas, lido por milhares de pessoas...
Como vocês podem ver, sonho, sonho sempre, e sonho alto.
Sinto um arrepio de felicidade só de pensar...Como não posso ir até à Vila Madalena para assistir à abertura, penso em entrar no Google para saber mais sobre o projeto. Nem chego a acessar e já recebo uma mensagem de minha amiga Cira.
Revoltada, ela me escreve reclamando, dizendo que o projeto é ridículo, que não incentiva ninguém a escrever, e reproduz na mensagem uma foto do cartaz com um poema de Sá de Miranda que além de complexo, ainda utiliza português arcaico nas duas últimas estrofes.
Pera aí ( como diz minha amiga Eli Eliete) o projeto é pro povo que nem sempre costuma ler poesia ou...? Não sei.
Acesso o Google e lá vejo quem são os dez poetas escolhidos: Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Antero de Quental, Bocage, Camões, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Olavo Bilac, Sá de Miranda.
São 10 poetas, que maravilha! Que maravilha? Desses 10 apenas 3 são brasileiros: Alphonsus de Guimaraens, Olavo Bilac e Augusto dos Anjos , 7 são portugueses...
Desolada, penso que nunca nos livraremos do colonialismo. Nunca deixaremos de ser subservientes, de bajular o império que primeiro invadiu nosso país. Depois vieram outros, mas como dizem, o primeiro é sempre o primeiro.
Então, por que não colocar no metrô, onde 80%dos que viajam não curtem muito poesia, um poeta português? E sendo português, pra que trazer um contemporâneo dos bons que temos visto na internet e, e que lemos todos os dias aqui mesmo? Era preciso trazer um difícil, complexo, e ainda mais um poema com 2 estrofes com palavras em português arcaico...como quem diz:
"Ora o povo...O povo é apenas um detalhe”, que se lasque...vamos bajular os conquistadores!...
Aposto que quando surgiu esse espaço, os poetas que dele tomaram conhecimento, inflaram o peito e cheios de esperança, porque os poetas sempre têm esperança, pensaram em ter seus poemas escolhidos, e postá-los ar ali à vista de todos, mas cadê o espaço para eles, se nem para os contemporâneos famosos como Leminski, Ana Cristina César, Torquato Neto houve lugar?

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Um sonho de viagem para o Sul: Montevidéu - 1990, 1997 - João dos Reis



"Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilibrio azul das extremas manhãs de verão".
Ruy Belo - início do poema "A mão no arado"

Para os companheiros uruguaios Sanjo, Mariú, Quica e Efrain

Nas fotos de julho de 1997 eu e Mariú estamos com quinze crianças do grupo de dança chamada “pericón” no centro de saúde na cidade Las Piedras, em Canelones, na região metropolitana de Montevidéu – foi durante a minha segunda viagem ao Uruguai.

Quando no Brasil sonhávamos com a volta à democracia, viajei em 1978 para a Argentina e Chile, e em 1979, para o Paraguai. E vivi o clima de medo, de repressão das ditaduras nesses países. Pretendia conhecer o Uruguai, mas decidi viajar somente depois do fim do regime militar.

Estive na capital uruguaia em 1990 – e Sanjo Rodriguez foi me esperar na rodoviária. Depois, estive alojado na casa dos Jesuitas .Foi o primeiro contato com os militantes de direitos humanos da organização não-governamental Serpaj (Serviçio Paz y Justicia). A volta à democracia, depois de um longo período de ditadura, ainda deixara um clima de incerteza. As professoras Ana e Carina – que conheci durante a viagem de ônibus foram a minha companhia nessa viagem. Prometi voltar ao pais que teve uma longa história de estabilidade politica.

O retorno a Montevidéu em 1997 não foi uma viagem turística - apesar ter passeado pela Rambla (a avenida do Rio da Prata), ido a museus, ao Parlamento uruguaio, caminhado pelas ruas do Centro velho da cidade, ao Bar Fun Fun no Mercado Central. Foi um reencontro com os companheiros-militantes.

Dessa vez tive vários cicerones: Maria del Huerto Nari (Mariú), Sanjo Rodriguez e o casal Quica e Efraín Olivera Lerena. Foram momentos de confraternização na casa de cada um deles. Mariú me convidou para um jantar com toda a família dela reunida – pais, irmãos. Sanjo preparou uma feijoada para comemorar o meu retorno – e brindamos aos novos tempos com Ana e os filhos Felipe e Pilar. Quica e Efraim me convidaram para um jantar – e ele foi o chef de cozinha; senti a ausência dos filhos Juan Fernando e Guillermo, que não estavam na cidade.

Com Mariú estive em uma reunião com os moradores no centro de saúde do bairro La Teja – foi um encontro e um diálogo com os montevideanos do bairro da periferia da cidade. Na companhia de Quica e seus sobrinhos estive no Museu Juan Manuel Blanes.

Lembro que conversamos sobre os rumos da democracia na América Latina – a rede de contatos do Serpaj no continente foi a novidade para mim. O Brasil historicamente sempre ignorou os seus vizinhos.

Da primeira viagem, em 1990, ficou a amizade com um dos seminaristas, Julio Rius. Durante algum tempo nos correspondemos, mas a distância se encarregou de perder o contato. Da segunda viagem, em 1997, ficaram as lembranças da hospitalidade e os laços de amizade com os companheiros uruguaios – que permanecem até hoje.

Minhas viagens sempre foram para a América do Sul – e de reconhecimento da realidade dos países hermanos. Hoje, recebo noticias frequentes do movimento dos militantes no continente americano.
Mariú é professora universitária. Quica e Efrain continuam a militância no movimento de direitos humanos. Sanjo é artista plástico e vive em Barcelona há mais de dez anos.

Da minha última viagem trouxe um presente de Efraín: o livro “Uruguay nunca más”, um informe do Serpaj sobre a violação dos direitos humanos nos anos 1972-1985. De Mariú, um livro de Eduardo Galeano. Na parede da sala na minha casa há um quadro que Sanjo me enviou antes de partir para o exílio na Espanha: foi o presente de despedida dele da grande pátria latino-americana.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Litoral Norte: o reencontro com a cultura caiçara 3 - João dos Reis



Para o jovem guarani e a pescadora de Ubatuba

Na verso da fotografia de junho de 1973, está escrito: “grupo de xiba, bumba-meu-boi e rosário” – seis caiçaras estão em uma estrada de terra cantando ao som de duas violas e um atabaque. Passei o fim de semana na casa do professor Pedro Paulo Teixeira Pinto, de Literatura e Língua Portuguesa na Escola Estadual “Capitão Deolindo de Oliveira Santos” – e ele me convidou para conhecer o grupo folclórico de Ubatuba.

Pedro Paulo, pesquisador e incentivador da cultura regional, criou um grupo de teatro com jovens estudantes. Uma das apresentações foi em Ubatumirim , uma comunidade de pescadores com acesso apenas por barco pelo mar – a Rodovia Rio Santos estava ainda em construção. É a imagem mais comovente do trabalho do professor que, depois de anos vivendo em São Paulo e São José dos Campos, voltou à sua cidade natal e se engajou na preservação da identidade caiçara.

Estávamos descrentes na participação nos partidos políticos (Arena e MDB)) criados pela ditadura com o Ato Institucional número 2. Conheci em Ubatuba o jovem vereador Eduardo Antonio de Souza Netto - e lembro de que conversamos sobre a possibilidade de mudar a cidade a partir da via parlamentar. Ele me convidou gentilmente para o almoço de domingo; o cardápio: azul marinho, o prato tipico caiçara.

Nos final dos anos 70, fui com Terezinha Rosa, professora de Inglês, e Alda, médica, em uma boate de Caraguatatuba - eram em noites no meio da semana, e praticamente nós três na pista de dança. Foi para mim o encerramento dessa década de desalento e ausência de futuro. “Abra suas asas / solte suas feras / caia na gandaia / entre nessa festa / E leve com você / seu sonho louco / Eu quero ver seu corpo / lindo, leve e solto” dizia a música “Dancing Days” - de autoria de Nelson Mota e Rubens Queiroz – cantada pelas Frenéticas.

Terezinha e o sociólogo Roaldo Graciano Fachini foram amigos no curso ginasial de Antonio Benetazzo, preso, morto sob tortura e “desaparecido” – e conversamos sobre esses anos de desesperança. A greve dos professores da rede estadual em 1978 e 1979 foi o inicio da retomada das lutas que aconteceriam a partir do anos 80. Terezinha e Roaldo (em Caraguatatuba), Alfredina Nery (em São Sebastião) , e Angela Bernardes de Andrade Gil (em Ubatuba), foram algumas das lideranças no movimento grevista no Litoral Norte.

Por ordem do governador nomeado pela ditadura, Paulo Maluf, um policial comparecia todos os dias nas escolas para anotar os nomes dos educadores que estavam ausentes ou em greve. O apoio de algumas diretoras foi importante para driblar a repressão: recusaram fornecer os nomes dos faltantes ou grevistas. O governo malufista suspendeu o desconto na folha de pagamento da mensalidade sindical da Apeoesp – uma estratégia de quebrar economicamente a organização dos trabalhadores da educação. Realizamos uma campanha de sindicalização e emitimos carnês e distribuímos aos professores.

Em 1980, depois de oito anos no litoral, voltei para Osasco. E retomei o meu contato com a realidade litorânea apenas no segundo semestre de 1994: trabalhei no departamento de meio ambiente na Secretaria de Planejamento de São Vicente, convidado por Sergio Luiz Avancine. No Litoral Sul paulista o processo de proletarização do caiçara e a migração criaram zonas de pobreza – a Favela México 70, construída sobre o mangue, foi uma triste experiência. O mais chocante foi a descoberta da contaminação da região continental (bairros Quaternário e Samaritá) da cidade por produtos químicos – uma grande área estava isolada e o acesso proibido.

O reencontro com a cultura caiçara aconteceu no I Encontro Internacional dos Povos do Mar e da Mata Atlântica, realizado em São Sebastião no final de 1994 - representei a prefeitura de São Vicente. Os temas do debate: conservação das áreas de mata e a manutenção das populações tradicionais, a luta das comunidades pesqueiras, a defesa da identidade caiçara, a sobrevivência dos indígenas.

Entre os quase cinquenta participantes, a recordação mais terna foi a amizade com um jovem guarani e – uma novidade para mim – uma jovem pescadora de Ubatuba. Em vão busco recordar os nomes deles – restaram na memória apenas o afeto e o carinho que nos aproximou durante os dois dias do encontro.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

"O Reencontro" de Risomar Fasanaro- resenha de João dos Reis


Livro “O reencontro (estórias)”, de Risomar Fasanaro, Editora do Autor, Osasco, SP, 2013, 200 pp.

“Talvez viesse daí seu jeito calado, seu silêncio tão incompreendido. A vida, pensou, é tão misteriosa quanto as palavras. Só que para elas ainda existe um dicionário, e a vida... A vida não tem bula, não tem roteiro, nem tradutor”, escreveu Risomar no conto “O peso da palavra”.

Os contos da escritora estavam na gaveta, aguardando publicação. Finalmente, fomos presenteados com o livro. Para quem a conhece, sabe que escrever é um compromisso diário e prazeroso: é com a construção das palavras que ela nos revela o mundo – carregado de mistérios e desencontros.

Não sei dizer qual conto me encantou mais. “Catimbó” me deixou intrigado: qual o segredo de Helena que a quase à levou à morte? Não adianta perguntar à autora: somente os personagens dominam o labirinto do destino e suas ciladas.

Em “A mulher que chorou por Proust” , Beatriz prepara um presente para um amigo distante – e o final é uma revelação das artimanhas da vida: não temos escolhas, a não ser nos entregar à companhia – e à solidão - dos livros.

A obra prima é “O braço direito” - retoma o período mais cruel e trágico da história brasileira do século XX: a ditadura militar de 1964-1985. Restaram apenas as lembranças dos mortos e desaparecidos nos subterrâneos da repressão policial . Com a linguagem literária podemos trazê-los de volta: eles estão novamente presentes na nossa memória.

Risomar Fasanaro foi professora de Literatura e Lingua Portuguesa em escola estadual de Osasco. Nascida em Recife, chegou ainda criança na cidade proletária. Foi a agitadora cultural nos anos de silêncio e medo: participou do grupo cultural Veredas, da Vila dos Artistas no Jardim Cipava, escreveu crônicas e poesias para jornais. Quando estudante da USP da rua Maria Antonia, participou dos protestos que incendiaram a imaginação dos jovens: era proibido proibir.

É difícil separar a escritora do movimento cultural e político de Osasco: esteve sempre presente nos momentos históricos que marcaram a vida da cidade. No final dos anos 70, sonhamos com a anistia aos perseguidos políticos e a volta dos exilados. Seus amigos que estiveram engajados na resistência à tirania sempre puderam contar com o apoio e solidariedade da professora-poetisa.

O sonho de liberdade esteve presente na luta contra a opressão e pelo retorno à democracia. A arte das palavras, a criação literária é possível quando abolimos as amarras do cotidiano, como bem revelam muitos dos seus contos.

Pensei que depois do prefácio e introdução ao livro por dois poetas - Antonio Belo da Silva e Cacá Mendes - não havia mais o que escrever. Em uma releitura recente dos contos redescobri a existência dos seus personagens: às vezes submersos na angústia e desolação, mas buscando desvendar o mistério do mundo – a nós cabe percorrer as trilhas que a escritora nos apresenta. O caminho da Literatura não é fácil – e não precisamos de compaixão, mas da arma da reflexão, porque é um aprendizado para toda a vida.

Falta ainda reunir e publicar em um livro a obra poética de Risomar – um novo presente para seus leitores e admiradores.

“Meu amigo chegou
me abraçou
e não disse nada

não precisava

senti sua tristeza
preparei chá
tomamos em silêncio
e ele se foi

para sempre”.
Poema “Amigo”, Risomar Fasanaro.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Canto de saudade a Curitiba 4 - João dos Reis



“Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos _
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra”.
Vinicius de Moraes, inicio do “Poema de Natal”.

Eram cinco dezenas de homens na confraternização no refeitório do Mosteiro Monte Carmelo, no Pinheirinho - e minha mãe era a única mulher presente. Minha casa na rua La Salle estava localizada em frente à chácara do mosteiro – onde os frades carmelitas criaram uma comunidade terapêutica para dependentes de álcool e drogas. O jovem Luiz Fernando Niedzievski nos convidou para o almoço – e pediu para homenagear minha mãe nesse domingo – ele não tinhas os pais há muitos anos. Ela tinha se acidentado, e eu percorri o bosque de araucárias, conduzindo-a na cadeira de rodas.

Conversávamos sempre: Fernando me dizia se eu tinha ciúmes da “adoção”da minha mãe. Deveria ter dito: que nós o aceitamos como um filho e um irmão querido - e como admirávamos o trabalho dele e da equipe de religiosos e leigos. Muitas outras vezes nos convidou para o almoço dominical. Ele, Frei Chico (Francisco Manoel de Oliveira) e Frei Teodoro Krucoski foram as presenças amigas na temporada em Curitiba – sabíamos que podíamos contar com o apoio e a palavra amiga.

Frequentei as aulas de contação de histórias - no Senac da rua André de Barros - com a psicóloga Martha Teixeira da Cunha e o ator-educador José Mauro dos Santos. Depois do término do curso, nos reunimos várias vezes aos sábados: para contar histórias, ler poemas – e em seguida, convidados para jantar na casa de um dos companheiros. Lembro de que todos éramos forasteiros – Mauro era o único curitibano, filho do ator e diretor de teatro José Maria (Ferreira Maciel) Santos.

Fui para o Hospital do Trabalhador como voluntário: contava histórias para as crianças – e lia noticias de jornal ou declamava poemas para os adultos. A experiência foi novidade para mim: encarar a dor e o sofrimento com reflexão, arte e beleza.

Nunca me esqueci de um jovem e uma senhora - eles me contaram suas vidas e como pretendiam encarar o futuro: foi uma catarse para eles e uma surpresa para mim. Um menino estava de saída para a sala de cirurgia – desesperado, chorava muito; tentei confortá-lo, e depois de narrar várias histórias, ele se acalmou, e eu me despedi dele na porta do centro cirúrgico.

Celina Guimarães Hardy foi a amiga querida no curso: ela foi para o Instituto Paranaense de Cegos contar histórias. Estávamos em contato para trocar impressões da nossa participação nesse universo novo e comovente: a descoberta do poder da palavra.

Nossa participação nesse projeto – minha e de Celina - foi interrompida por problemas de saúde, e não pudemos seguir adiante na aventura literária.

Com Arthur, de três anos, filho do amigo Ewerton Antunes, decidi inovar: quando ia visitá-lo, ele me pedia para repetir as mesmas histórias: eu contava uma parte da narrativa, e pedia para ele continuar, e íamos retomando e recriando o conto, com a participação dele. Foi um convivio fascinante com a literatura e o mundo infantil.

Fernando saiu do mosteiro, casou-se com Zamily. De volta a São Paulo, recebi uma carta: o nascimento de Davi Fernando - hoje, o piá está com três anos. Martha e José Mauro atuam na Casa do Contador de histórias. Frei Chico continua no projeto terapêutico no mosteiro. Frei Teodoro faleceu há alguns anos; Celina em 2009. Arthur é estudante de piano e de Filosofia.

Eles foram meus caros amigos na capital paranaense – e é com saudades que recordo os diálogos, os encontros em que dividimos o pão e o vinho - e comemoramos a nossa crença num mundo fraterno e solidário. A revolução que sempre sonhei será também com pequenos gestos de gentileza e de ternura.


sexta-feira, 12 de junho de 2015

Canto de saudade a Curitiba 3 - João dos Reis


Canto de saudade a Curitiba 3

“Meu coração,
É um quarto de espelhos,
Que reflete e multiplica,
Infinitamente,
Uma impressão”.
Helena Kolody, inicio do poema “Sensibilidade”.

Felis Penkal veio ao meu encontro na Lanchonete Badech em Araucária, PR, com um pacote de feijão – que ele plantou e colheu. Foi um dos presentes que recebi mais inesperados e preciosos.
Depois, para retribuir a gentileza do jovem agricultor, disse que lhe mostraria o mar – que ele ainda não conhecia.

Cumpri a promessa: combinamos um dia e fomos até Paranaguá. Almoçamos, passeamos pelo porto, estivemos no Mercado Municipal para comer pastel de camarão. No Iate Clube, realizamos um passeio de barco pela baia: foi a primeira visão dele do oceano Atlântico. Depois, à tarde, caminhamos pela praia.

Perguntei sobre os antepassados poloneses: se conversavam em casa e se ele entendia a língua do compositor Frederic Franciszek Chopin. Tinha curiosidade em conhecer a comunidade da Europa Central na região metropolitana – como eram as festas, as relações de amizade e de parentesco. Com ele aprendi a pronunciar corretamente “pierogi”, um pastel típico da Polônia.

As preocupações de Felis eram com a terra, o clima – a semeadura, a colheita de soja, milho, feijão . As mudanças da estação – verão, outono, inverno, primavera – eram o assunto principal em nossas conversas. Será que choveria? Ou haveria um período de seca? Procurou mudar de ocupação e conseguiu um emprego em uma madeireira; uma única vez o ouvi reclamar: era um trabalho muito pesado – e voltou para a lavoura. Eu o observava, mergulhado em silêncio: ele estava feliz?

O jovem Moacir Moreira Carvalho terminou o serviço militar na capital e voltou para Santo Antonio de Caiuá ,PR . Sempre me telefonava – e eu sabia das dificuldades de emprego no interior. Depois, trabalhou como vendedor pelos Estados do Sul. Às vezes eu recebia um telefonema de Santa Catarina ou do Rio Grande do Sul: era o viajante solitário me dando noticias da sua longa jornada.

Em uma das passagens por Curitiba, combinamos um encontro: almoçamos, passeamos pela cidade: no Memorial de Curitiba, no Passeio Público – e ele me disse: estava feliz por estar novamente na capital paranaense. Nenhum de nós tinha um projeto de vida definido para o próximo ano: o que o destino nos reservava?

Com Moacir, fiquei sabendo como era a realidade no Noroeste do Paraná. Quando ele partiu definitivamente da sua cidade natal, me contou da reunião do adeus à margem do rio da sua cidade. Seus amigos de infância e adolescência estavam presentes – e foi também a passagem para um novo tempo. Ele foi morar em Itajaí, SC, onde já se encontrava um dos seus irmãos. Depois, foi a minha vez de partir de volta para São Paulo - e fui à cidade portuária de Santa Catarina me despedir.

No encontro de despedida com Felis, ele me trouxe um novo presente: um pacote de pinhão – que ele e suas irmãs recolheram um a um do chão – uma colheita que só é possível depois da queda da pinha do pinheiro-do-paraná.

Em minha casa dem Cotia, recebi três telefonemas: no réveillon de 2005, a noticia do falecimento do pai de Felis, e depois, a do nascimento de Juan Guilherme; e um telefonema de Moacir: o nascimento de João Victor.

Hoje, Moacir trabalha em uma fazenda em Luiz Alves, SC. Felis vive no sitio da família em Araucária, PR.
Conversamos por telefone ou por mensagem de texto: como está a vida, os novos desafios do presente, o trabalho na terra. Os piás, um catarinense e um paranaense, são o futuro dessa história de amizade e de esperança em dias melhores no Sul do Brasil.

“Você nunca vai saber
quanto custa uma saudade
o peso agudo no peito
de carregar uma cidade
pelo lado de dentro”.
Paulo Leminski, inicio do poema “objeto sujeito”.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Canto de saudade a Curitiba- João dos Reis




Há “uma Curitiba que te promete um paraíso de campos bordados de bostas, onde vacas opalescentes ruminam tenros crepúsculos, e uma Curitiba que te atira no inferno da existência, no qual demônios de hálito doce e ancas lascivas rasgam tua carne com unhas esmaltadas de gangrena”. Jamil Snege, “Canto de amor e desamor a Curitiba”.

Estava em um bar no bairro Santa Felicidade - o jovem Ewerton Antunes me contou do incêndio na casa: perdeu roupas, móveis, mas a desolação maior foram os livros e discos devorados pelo fogo. Depois, comprei para ele um sobretudo, luvas e um cachecol para enfrentar o duro inverno curitibano – e dei de presente livros e discos.

Escurecia em um fim de tarde gélida – e encontrei Mazé (Maria José Mendes) na lanchonete do Parque Barigui. Abracei-a, e apesar de agasalhado, me sentia congelando - e disse como foi difícil atravessar a cidade, enfrentando o frio e o vento polar, para vê-la.

No carro com Arthur, esperando a volta do pai, Ewerton, fiquei emocionado – ele me contou do acidente da mãe. Não sei dizer quem estava mais desamparado - um adulto ou um piá curitibano de três anos.

Muitas outras vezes, encontrei os meus amigos paranaenses. Com Arthur, fui ao teatro de bonecos, ao parque de diversões, almoçamos juntos, estive na escolinha onde estudava para vê-lo – era uma criança adorável. Presenteei-o com livros, contei histórias infantis. A que ele mais gostava: a do Patinho Feio - era um prazer inventar a narrativa para prender a atenção e comover com o destino do personagem.

Morava no outro extremo da cidade, e por isso, conversei muitas vezes com Mazé por telefone. Fui às exposições de seus quadros – uma retrospectiva na Escola de Música e Belas Artes, “Identidades paralelas” na Casa Andrade Muricy, e “Matiz” em uma galeria. Foram experiências novas: conhecer a artista e a obra de arte.

Foram momentos da minha vivência em Curitiba no inicio dos anos 2000: eles foram meus companheiros de viagem na aventura desesperada – o eterno retorno ao passado - para construir um futuro. Foram momentos felizes?

Passei um réveillon com Ewerton e Arthur – estávamos distantes dos parentes e amigos de juventude. Ele foi o chef de cozinha e preparou o jantar; conversamos sobre a sua cidade, Cascavel, no interior do Paraná. Éramos três tristes? Em um outro réveillon, estive com Mazé e seus amigos comemorando o Novo Ano. Lembro que conversei sobre minha temporada na cidade em que viveu a poetisa Helena Kolody, onde éramos “estrangeiros”. Estávamos alegres?

São Paulo estava distante do meu horizonte. As noticias vinham das cartas dos amigos Risomar Fasanaro , Marcelino Jesus de Lima, Alberto Abib Andery e Albertino Souza Oliva. Parece que não veria mais a minha cidade natal, Duartina, e a cidade proletária de Osasco . Foram momentos de solidão?

Registrei as interrogações sobre a felicidade, a tristeza, a solidão – porque eu não sei as respostas. Foram, sim, momentos de descoberta da força da amizade, da solidariedade.

Ewerton é hoje um “restaurateur” e sommelier; Mazé continua criando beleza com seus quadros; Arthur é um jovem estudante – são os meus caros amigos da longa jornada no Sul do Brasil.

“Meu coração de polaco voltou / coração que meu avô / trouxe de longe pra mim / um coração esmagado / um coração pisoteado / um coração de poeta” - Paulo Leminski

domingo, 31 de maio de 2015

Sampa - Joaquim Belo



No coração da avenida Paulista pulsa o PIB do país.
No ápice da pirâmide a elite branca está feliz,
A cotação do dólar subiu e o risco do país caiu.
As estatísticas indicam o que os gráficos confirmam
As aplicações financeiras cada vez valendo mais
Dorme nas redes bancárias dos paraísos fiscais.

Na outra ponta da cidade, por vias marginais,
Gente dormindo sentada, acordada ou de pé,
Espremidos nos vagões dos trilhos metroviários,
São despejados como gado na estação da central
É a grande força do trabalho, que faz o bolo crescer,
Amassa a massa, tempera e assa, mas sem direito a comer.

E nas cercanias dos proscritos ao lado da Júlio Prestes,
Entre muros invisíveis um novo inferno terrestre,
São as tribos dos miseráveis e excluídos da nação
Onde impera a lei e a ordem da desordem social.
E a rapinagem política disputa, numa luta fratricida,
Quem vai tocar a batuta na disputa eleitoral.

Indiferente aos conceitos e preceitos sociais
São os zumbis que viajam pelas vias ilusórias,
Veias de sangue entorpecidas pelas drogas ingeridas.
No olhar a mesma tristeza, no peito a mesma história
Nas frustrações da vivência e nas ilusões perdidas.
Uma borracha que borra, mas não apaga as feridas.

Enquanto a garoa filtra uma tênue e pálida luz,
Sobe em forma de espirais as fumaças expelidas
Projetando silhuetas de figuras estremecidas,
Como fantasmas que dançam e pela noite vagueiam
Mortos-vivos, que num lampejo o pensamento reluz,
Antigos, mortos e insepultos sentimentos.

25 de maio de 2015

terça-feira, 26 de maio de 2015

Osasco, uma história: Albertino Oliva - João dos Reis



Para os companheiros da Frente Nacional do Trabalho

Estávamos reunidos no inicio dos anos 70. O grupo da Frente Nacional do Trabalho de Osasco - José Groff, Valdomiro Martins da Silva (Dudu), Alberto Abib Andery, Maria Santina, Antonio Vieira de Barros, Luis Amaral, Odim Jiorjon, Maria de Lourdes Brengel, e outros militantes - foi informado: Albertino Souza Oliva foi preso – nós e a família dele não sabíamos o local onde ele estava e o motivo do desaparecimento. A angústia e a dor da noticia impedia que tomássemos uma decisão: o que fazer?

Depois, ficamos sabemos que ele ficou uma semana detido, incomunicável, no quartel da Policia Militar da Avenida Tiradentes. Nunca houve uma acusação formal a ele na Justiça.

Foram momentos como esse que os que engajaram no movimento operário viveram os anos de repressão durante a ditadura militar. Albertino trabalhou de 1945 a 1962 no Departamento Pessoal da Cobrasma em Osasco. Houve um “ressurgimento espiritual”, como ele o denomina, e passa a frequentar a Igreja Católica. Conhece o líder sindical João Batista Cândido e participa do movimento sindical na fábrica. Junto com outros trabalhadores, criam a Comissão de Fábrica – que foi um acontecimento histórico na luta por melhores salários e condições de trabalho.

Albertino recordou durante o seu depoimento em outubro de 2014 na Câmara Municipal: a direção da fábrica descobriu o engajamento dele, e foi transferido para a sede da empresa; depois ele decidiu pedir demissão. Foi um período de transição na vida do advogado que nasceu em Casa Branca, SP, e que cursou Direito na USP. Tinha a desconfiança dos trabalhadores: havia participado do quadro repressivo da empresa: a lista dos candidatos a emprego era enviada antes para o Dops. E tinha a recusa da direção patronal em ter um funcionário comprometido com a luta por uma nova sociedade. “Foi um momento difícil: traiu a confiança dos patrões e não tinha a confiança dos trabalhadores”.

A conversão às idéias do Padre Louis-Joseph Lebret ("Princípios para a ação"), o compromisso com a nova Igreja que surgia, o conduziram à Frente Nacional do Trabalho, uma organização não governamental fundada por Mario Carvalho de Jesus depois da greve dos trabalhadores de Perus em 1962. Foi essa militância que o levou outras vezes à ser detido pelos militares. Sua participação na criação da Cooperativa dos Trabalhadores da Cobrasma (depois Coopergran), na instalação dos cursos profissionalizantes no Senai em Osasco foi o inicio de uma longa trajetória junto com os trabalhadores.

Participei das reuniões e atividades na FNT de Osasco. Quando os trabalhadores abriam uma ação trabalhista, eram convidados a participar de uma palestra: eu fazia a abertura, falava da importância da participação sindical e politica; depois, Albertino explicava os meandros jurídicos de um processo. Foram anos em que tive contato frequente com a realidade da opressão patronal e do desrespeito aos direitos trabalhistas.

Com os ventos da democracia no inicio dos anos 80, participei de um projeto de educação popular da FNT, com ajuda financeira de uma organização não governamental da Bélgica. Fui contratado para colocar em prática o programa de debates, palestras e grupos de estudo em Osasco e na periferia da Região Metropolitana Oeste de São Paulo. E eu o acompanhei nos encontros com os trabalhadores dos bairros das cidades de Carapicuiba ( Comunidade Kolping da Vila Dirce e Cohab, e Igreja N.S.Aparecida) e Jandira (comunidade da Vila Analândia).

Nos anos 60, houve um acidente muito grande no forno da Cobrasma, e um operário acabou morrendo. Foi combinado que no enterro a fábrica tocaria o apito. Foi um dos primeiros protestos dos operários osasquenses por respeito, garantia à vida e à dignidade. Albertino recusou entregar os nomes dos que organizaram a manifestação. No final dos anos 70, a participação na criação do Centro de Defesa de Direitos Humanos de Osasco – foram dois momentos de uma longa história de compromisso com os trabalhadores da cidade proletária.

Albertino Souza Oliva foi o primeiro coordenador da Comissão da Verdade de Osasco até inicio de 2015. Com 88 anos, apresentou o seu testemunho: de que é preciso combater as injustiças ,”não ter complacência com o erro, nunca com a violência”.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O Eclipse - Jailson Vital



Nos dias de hoje a crendice em fantasma, alma penada, lobisomem, vampiro, etc., está desmoralizada. Os filmes de terror que antigamente nos assustavam tanto e nos deixavam sem dormir, hoje são comédias, e os personagens embora de aparência aterrorizadora e executando ações macabras, só provocam gargalhadas dos jovens espectadores. No entanto, uma parcela grande da população, principalmente aquela menos culta, ainda acredita que fenômenos naturais, como enchentes, secas prolongadas, grandes incêndios e eclipses, são castigos de Deus ou sinais do fim do mundo. Imaginem essa situação no início da década de 60. Ou melhor, imaginem o anúncio em Custódia, de um eclipse total, naquela época. Pois eu lhes conto.
O anúncio de que haveria um eclipse total da lua, trouxe inquietação a grande parte dos moradores e então, começaram a correr os boatos dos malefícios trazidos por esses acontecimentos, como doenças, pestes e mortes. Mas corria também, para alívio dos desesperados, a receita do antídoto para tudo isso. À semelhança dos castigos de Deus ao faraó e seu povo, no episódio bíblico das 7 pragas do Egito (Êxodo), onde a salvação para os israelitas seria pintar as ombreiras das suas portas com sangue de cordeiro (pois Deus veria esse sinal e seu castigo não entraria naquela casa), a salvação para os custodienses(*) naquela ocasião, seria colocar um ramo de pinhão bravo, planta endêmica da caatinga, ou um galho de arruda, em um vidro com água e colocá-lo pendurado na porta de entrada das suas casas.
Alguns estudantes, eu entre eles, achávamos aquilo tudo um absurdo e tentávamos explicar a algumas pessoas que, o eclipse se tratava de um fenômeno natural, causado pelo alinhamento do sol, da terra e da lua, mas éramos vozes vencidas. Éramos pouquíssimos em relação aos que criam que o ramo de pinhão era a barreira contra o mal iminente. Não nos conformávamos vendo que quase todas as casas tinham um vidrinho com um ramo de pinhão ou arruda pendurado na porta.
Então “bolamos” um modo de demonstrar esse absurdo. Naquela noite, quando aconteceria o eclipse, já altas horas, quando todos dormiam, saímos no jeep de propriedade de um de nós, e cuidadosamente, fomos recolhendo os vidrinhos e colocando-os no jeep. Ao final da coleta, fomos para a praça em frente à igreja, e lá, em uma construção circular de paralelepípedos, construída talvez com a intenção de futuramente ser colocada uma estátua ou um busto de algum político, fomos depositando os vidrinhos.
No dia seguinte ao acordarmos, fomos para a praça para vermos a reação dos que paravam para ver aquilo, sem entender o que significava, nem como todos aqueles vidros tinham ido parar ali. Os comentários e opiniões eram os mais diversos, inclusive os fantásticos. Havíamos finalmente demonstrado que, mesmo sem o pinhão e sem a arruda, estavam todos sãos e salvos.
Cerca de cinquenta anos depois, apesar de todo avanço que o mundo teve, tivemos que assistir, não em Custódia, mas no mundo inteiro, milhares de pessoas se refugiando em cidades pseudo imunes e refúgios construídos com milhares de dólares, para escapar do “fim do mundo” que aconteceria no dia 21 de dezembro de 2012, supostamente predito pelo calendário Maia.


(*) nascidos ou
moradores da cidade de Custódia- Pernambuco.

domingo, 17 de maio de 2015

O Último adeus:meu avô Marcelino Matheus Ferro - João dos Reis



Para os Razera: Gustavo, João Argemiro e Maria Aparecida

Meu avó Marcelino se despedia de mim na estação de trem de Duartina, no Estado de São Paulo. Estava de partida para Osasco, depois das férias de verão na minha cidade natal. De volta à metrópole, distante quase 400 quilômetros dos queridos avós, tios e primos, vinha com o coração carregado de saudades - e de um presente: a bíblia do século 19 que ele trouxera de Portugal quando chegou ao Brasil em 1926.

Durante muitos anos, eu, um jovem estudante-trabalhador, depois professor, revisitava a cidade do interior. E, quando ainda existia a linha férrea de transporte de passageiros, era meu avô que me acompanhava, quase sempre, até à estação. Ele era muito calado e, antes de me despedir, beijava a mão dele, como fazia desde criança, e lhe agradecia em silêncio pela garrafa de vinho que abrira no almoço para comemorar a minha visita.
Em uma das despedidas, meu tio Toninho (Antonio Herculiani), pediu licença na oficina de marcenaria em que trabalhava, e gentilmente foi minha companhia até à estação.

Nunca me esqueci do abraço quando se aproximava o trem, esse gesto de gentileza e carinho: o último adeus sempre foi acompanhado de tristeza. Parece que me despedia de todos para sempre, mesmo sabendo que voltaria no próximo ano para visitá-los.

Tia Isaura era a correspondente epistolar da família espalhada pelo nosso planeta. Ela me entregava para ler as cartas dos que viviam em Angola, França e EUA – a saga dos portugueses que partiram para um novo país, um novo continente. Em uma delas, e que comentei com meu avô, falava da forte nevasca nas aldeias de Penhas Juntas e Falgueiras na província de Trás-os-Montes, que impediu que os moradores saíssem de casa por vários dias.

Essa volta às origens esteve marcada pelas orações, realizadas pela minha avó Elisa de Jesus Ferro. Era uma reverência aos nossos mortos – e que mereciam as nossas preces. Acompanhei-a em muitas tardes ao cemitério da cidade, e diante do túmulo da familia, roguei por eles – pedindo a misericórdia divina, o descanso e a paz eterna.

No álbum de fotografias, revisitava os nossos familiares - era um retorno à história da imigração europeia para a América. Ouvia os relatos da longa travessia do Atlântico de navio, das dificuldades dos primeiros anos, do trabalho no campo. A ligação com a terra brasileira surgia logo que eu chegava de viagem: a avó Elisa me pedia que fosse ver a horta e o jardim – em que ela cultivava, com orgulho, roseiras, palmas-de-santa-rita, tomates, couve, almeirão, e onde havia limoeiros e figueiras.

Ainda hoje, quase um século depois, minha mãe lembra que ia, nas primeiras horas da manhã, para a lavoura de algodão nas fazendas da região de Bauru.

Não recordo dos meus bisavós italianos– eles partiram de Verona e chegaram ao Brasil em 1888, ano da libertação dos escravos. Trabalharam nas fazendas de café - viveram na região de Campinas, no distrito de Sousas. Minha avó Pasqualina Negrini dos Reis, provavelmente me contaria suas lembranças, mas faleceu em 1953, quando eu tinha 4 anos.

Nas manhãs em que minha avó Elisa preparava o forno a lenha para o pão e o almoço com os meus pratos preferidos – lombo assado ou bacalhau à moda transmontana – conversávamos sobre o passado. Foi nesses diálogos que fiquei sabendo da saga dos Negrini, contada por ela, que foi amiga da minha avó Pasqualina. Era um piá e, mais tarde, um jovem que gostava de ouvi-la. Todos vieram para o Brasil em busca do sonho americano, e eu procurava me reencontrar nessas esperanças de uma vida melhor. Foram anos em que refleti sobre o que o destino me reservava. Foi uma aventura às vezes inglória e desesperada, a de saber qual é o mundo que tanto sonhamos para viver e ser felizes.

Os documentos pessoais de tia Isaura e avó Elisa, as cartas que receberam ao longo dos anos dos parentes, se perderam. Guardei o registro de identidade do avô Marcelino – e os entreguei para meus primos Miro, Cidinha e Gustavo, que também ficaram com a bíblia e o álbum de fotografias. A estação da estrada de ferro da cidade foi demolida. Os limoeiros e as figueiras não existem mais. Não há mais documentos da história dos imigrantes - apenas as imagens e as recordações na minha memória.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Comentário sobre a crônica de Jaílson Vital de Souza- Antonio Belo


Excelente crônica!
Não somente sou amigo pessoal do autor, Jaílson, como também vivi nesse ambiente e participei de alguns desses agradáveis momentos. Ainda poderia acrescentar alguns "heróis" não citados pelo meu amigo, como sejam: O Homem de Borracha, que esticava e encolhia de acordo com a necessidade; o mágico Mandrake, que fazia os bandidos confessarem seus crimes mediante o efeito provocado por ilusões de ótica e, quando o combate exigia o uso da força, sue fiel escudeiro, Lothar, um negro musculoso o tirava das enrascadas. O Mandrake ainda tinha um noiva muito bonita, que era a princesa Narda.
Mas, de todos aqueles heróis, o meu preferido era mesmo brasileiro. Sim, para mim, nenhum deles se comparava ao Jerônimo, o Herói do Sertão - com maiúsculas mesmo -. Todo mês eu esperava ansiosamente a chegada do gibi, que sempre era comprado pelo Armando, que era filho de um dono de oficina em Custódia e ele emprestava ou vendia.
Jerônimo encarnava o típico defensor dos pobres e oprimidos contra o poder dos coronéis nordestinos. sim, porque embora não fosse explicitamente definida, a temática e a indumentária dos envolvidos era típica dos cangaceiros nordestinos, como era o João Corisco, o pai do Moleque Sacy, este, fiel escudeiro do Jerônimo. Ainda havia a noiva do Jerônimo,a Aninha, que era sua prima. Existia uma trama shekespeareana, pois Jerônimo e Aninha, embora primos, eram descendentes de famílias rivais, pois o pai de Aninha era irmão de pai de Jerônimo, que namorava com Maria Homem - mãe do Jerônimo - que era filha de um coronel inimigo do coronel Saturnino Bragança, que era o avô de Jerônimo e de Aninha, por parte dos pais de ambos. Assim, Jerônimo era uma espécie de Dom Quixote sertanejo e em parte sua leitura influenciou um pouco do meu senso de justiça social. Detalhe: O nome da mãe de Jerônimo - Maria Homem - não tinha nada a ver com lesbianismo, era apenas devido à sua coragem, pois lutava bem e com qualquer homem em igualdade de condições. Segue então, uma música que retrata bem o espírito do herói:
"Quem passar pelo sertão
vai ouvir alguém falar
no herói dessa canção
que eu venho aqui cantar

Se é por bem vai encontrar
com Jerônimo protetor
se é por mal vai enfrentar
o Jerônimo lutador

Filho de Maria Homem nasceu
Serro Bravo foi seu berço natal
entre tiros e tocaias cresceu
e hoje luta pelo bem contra o mal

Galopando está em todo lugar
pelos pobres a lutar sem temer
com Moleque Sacy prá ajudar
ele faz qualquer valente tremer...
Antônio Belo da Silva

domingo, 10 de maio de 2015

minha mãe- risomar fasanaro


Escrevi este poema nos anos 70. Que todas as mães se sintam homenageadas. Embora as tarefas se diferenciem, de região para região, as mães são muito parecidas. Como dizem: "só mudam de endereço".


minha mãe

eu te via batendo bolo
costurando noite e dia
vestidos lindos de rendas
roupas que nunca vestias
enquanto isso eu pescava
no rio jaboatão
subia nas pitombeiras
procurava os araçás
enquanto bordavas vidrilhos
nos vestidos das grã-finas
meus olhos teciam sombras
e se fizeram tão tristes
foi esse teu jeito, mãe
manso, doce, cordato
que me tornou tão rebelde
foi de te ver, mãe,
lavando, passando, varrendo
de um lado a outro correndo
que me tornou desse jeito
enquanto eras dona de casa
eu enfrentava a vida
em protestos, passeatas,
“pão que o diabo amassou”
os sonhos transpunham rios
que nunca alcançaram mares
e tu navegavas ali
-comandante-
de um barco sempre à deriva
o cheiro de manjericão
em ti era tão natural
como Chanel nas grã-finas
e foi “tua filosofia”
“ruim com ele, pior sem ele”
que me tornou desgarrada
a querer apagar-te mansa
em toda minha lembrança
mas disso tudo ficou
um fiapo de memória
faísca de fogueira
das festas de São João
da canjica, da pamonha
da fogueira e dos balões
pois é, mãe,
de tudo isso ficou
um fiapo de lembrança
com gosto de caju verde
e esse cheiro de cajá...
**

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Um sonho de liberdade: Vila Analândia, Jandira, SP - João dos Reis



Para José Henrique do Carmo

Os trabalhadores saiam do turno da noite cansados, com sono, com corpos encharcados e roupas manchadas de sangue. Elza - eu e José Groff, da Frente Nacional do Trabalho, estávamos em 1981 reunidos com o grupo de jovens trabalhadores da comunidade católica da Vila Analândia em Jandira. Eles nos contaram da jornada de trabalho no frigorifico: queriam criar um sindicato para garantir direitos trabalhistas que estavam sendo desrespeitados. Quando a empresa descobriu o projeto deles, todos foram demitidos.

Em 1968 eu trabalhava no Banco Auxiliar em Osasco - e Marcos Lopes Martins me procurou para criar uma subsede dos bancários na região, o que só aconteceria anos depois. No final dos anos 70, os professores da rede pública, organizados em uma chapa de oposição, conquistaram o sindicato (Apeoesp). Foram tentativas de organizar os trabalhadores diante do arrocho salarial, das péssimas condições de trabalho, de jornadas exaustivas, da ausência de liberdade.

Vila Analândia, na periferia da cidade de Jandira, foi um exemplo nos anos 80 de que era possível acreditar em uma nova sociedade . Elza e os italianos do movimento católico da província de Reggio Emilia, na Itália, viviam no bairro. Com eles, a FNT programou várias “Semanas do Trabalhador” – em que discutimos temas como Partidos Politicos, Fé e Política, Direitos Trabalhistas, Sindicatos e participação política, entre outros. Nunca me esqueci: na palestra de Plinio de Arruda Sampaio, um casal percorreu a pé uma longa distância para ouvi-lo, com a mulher e os filhos pequenos carregados nos braços.

O surgimento de um novo partido, o PT, a conquista dos sindicatos, trouxe de volta a esperança de se criar uma nova sociedade onde conseguiríamos eliminar as injustiças e a desigualdade . Com o grupo do sindicato dos professores (Apeoesp) de Osasco, eu e Jeanete Beauchamp, indicamos os nomes de Rosa Lopes Martins e Leônidas Gonçalves da Silva (Léo) para candidatos às eleições de 1981 na cidade – e Léo declinou da candidatura e apoiou Rosa.

Ricardo Madacki, Célia, Cupertino de Arrochela L. dos Santos, Airton Cerqueira Leite - foram alguns dos que apoiaram a candidatura vitoriosa de Rosa. Foi um período de muitas reuniões e panfletagens. Elaboramos um projeto de visitas às casas dos trabalhadores a partir de uma lista da ACO (Ação Católica Operária), dos metalúgicos e do grupo de professores. Lembro de um domingo em que eu, a advogada e colaboradora do projeto de educação popular da FNT, Marcia Terezinha Rossato, e companheiros, fomos para uma das favelas da Zona Norte de Osasco conversar com os moradores sobre o novo partido, sobre as eleições, sobre a importância do engajamento na política.

Por que acreditei na força do poder da cidade no processo de mudança para uma nova sociedade? Penso que foi, em parte, ao seminário organizado pelo Jornal “Batente” em Osasco; e ao ciclo de debates por Sergio Luiz Avancine , na PUC-SP – os dois eventos no inicio dos anos 80 discutiram a experiência de “governo popular” entre 1977 e 1982 nas cidades de Americana (Waldemar Tebaldi) e Piracicaba (João Hermann Neto), no interior de São Paulo, e Lages, em Santa Catarina (Dirceu Carneiro), e a de Miguel Arraes em Pernambuco antes do golpe de 1964.

Depois da derrota da resistência à ditadura militar nos anos 70, retomamos as esperanças de um novo tempo. A escolha pela conquista do poder parlamentar nas cidades, dos sindicatos, apontavam que era possível acreditar na democracia. O PT surge no quadro da legalidade com a proposta revolucionária do socialismo – os outros partidos de esquerda continuavam na clandestinidade pela legislação eleitoral autoritária. Militantes das Pastorais e das CEBs (comunidades eclesiais de base) da Igreja Católica, das oposições sindicais, dos movimentos populares, dos sobreviventes das organizações da luta armada contra a ditadura, contribuíram para construir o novo partido e os novos sindicatos.

Décadas depois ainda me recordo da imagem dos operários que trabalham para que a carne chegue à nossa mesa. Nunca mais tive noticias dos jovens da Vila Analândia – me informaram depois que alguns deles, desempregados, voltaram para o interior. Levaram com eles a experiência da vida comunitária no bairro proletário – mas também da exploração do trabalho e da repressão aos trabalhadores.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

MANZUALTO! CAMONEBÓI! Jailson Vital de Souza




Era mágico. Eu entrava na casa de Fernando de Laura (Florêncio) sem pedir licença, me dirigia para a pilha de revistas de histórias em quadrinhos (HQ) que chamávamos gibís e fascinado com tanta diversidade escolhia a que queria ler ou reler e ler mais quantas vezes a revista me convidasse. Era fascinante incorporar os personagens heróis defensores da lei e da ordem. As revistas ainda eram impressas em tinta preta, mas meus olhos de menino davam colorido, davam movimento e davam som a cada quadrinho. Eu realmente vivenciava cada história. Os heróis eram diversos. Haviam os cowboys, os meus preferidos, cujo cenário era o velho oeste americano e nomes como Billy The Kid, Cavaleiro Negro, Tom Mix, Zorro, Hopalong Cassidy, Roy Rogers, Rocky Lane, Flecha Ligeira e muitos outros. Na Selva estavam lá atentos, Tarzan, O Fantasma e Jim das Selvas. Na cidade os heróis voadores Super Homem, Capitão Márvel, Capitão América e Centelha Vermelha além da dupla Batman e Robin. Nos mares, o Homem Submarino, no espaço planetário, Flash Gordon e Buck Rogers. Enfim, o mundo naquela época estava protegido dos malfeitores em todos os seus ambientes por esses personagens maravilhosos. Hoje, lembro de uma característica interessante. Nunca um herói matou um bandido. No máximo, um tiro era disparado na mão do facínora para derrubar-lhe a arma, estes eram dominados, presos e entregues ao xerife ou outra autoridade policial. Os autores tinham o cuidado de não estimular a violência. Muitos anos depois, com o advento das HQ de lutas marciais é que a violência começou a ser mostrada em suas histórias.
Depois veio o cinema. Zé de Isaías montou uma sala de exibição num prédio que ficava de frente para a Praça Padre Leão, próximo onde hoje é a Câmara Municipal e era a primeira sede ou veio a ser depois, do CLRC (Clube Lítero Recreativo de Custódia). O projetor era de 16 mm e a sessão precisava ser interrompida para trocar os rolos de filme. Tinha sessão apenas nos fins de semana. Foi nesse cinema que assisti: O Homem da Máscara de Ferro, O Conde de Monte Cristo e Os Sinos de Santa Maria, todos em preto e branco, pois o filme colorido ainda era raro. Mas o que mais atraía a meninada e mesmo os adultos eram os seriados. Eram filmes curtos de mais ou menos meia hora, semelhantes à novela de hoje, com uma diferença; o “mocinho ou a mocinha” terminava cada capítulo em perigo de vida. Passava sempre depois da exibição do filme semanal. A meninada ficava imaginando e discutindo, o resto da semana, o modo como eles sairiam daquela enrascada. Assim, ninguém perdia o próximo capítulo. O seriado que ficou na minha lembrança foi “Os Perigos de Nyoka”. O casal Nyoka e seu companheiro Larry eram os artistas. Todo capítulo essa mocinha caía numa armadilha montada pelos bandidos, era ameaçada por um leão ou uma cobra, despencava de uma cachoeira, era ameaçada por índios e muitas outras situações. Nós, meninos ficávamos apreensivos, torcendo pela nossa heroína.
Algum tempo depois, esse cinema passou a ser propriedade de Inácio Germano, onde Osminda Carneiro era a bilheteira.
As nossas brincadeiras, na época, incluíam a reedição dos filmes de faroeste com uns sendo os “artistas” e outros os bandidos. Brincávamos principalmente na Praça Ernesto Queiroz e em volta da igreja. As armas eram feitas de madeira ou simplesmente imitadas com a mão estendendo dois dedos. Quando algum menino surpreendia outro, vinha a ordem de rendição: “manzualto”! Isto é, mãos ao alto. Dizendo assim ficava mais claro, pois a pronúncia MÃOS-AU-AU-TO ficava parecendo um latido. No final com todo mundo rendido fazia-se a conta de quem venceu. Geralmente todos. E para irmos embora vinha a ordem imitando os cowboys: “Camonebói”! (Come on boys) – Vamos rapazes.
Pois é. Vamos rapazes, vamos para Pasárgada, ainda dá tempo.

jalvital@gmail.com

domingo, 12 de abril de 2015

ANOS 70: de resistência e companheirismo - Alberto Abib Andery e Reginaldo C. Corrêa de Moraes- Por João dos Reis



Abib e Reginaldo estiveram em minha casa no Km 18 em Osasco – queriam saber porque eu não compareci à reunião da Frente Nacional do Trabalho. No inicio dos anos 70 havia o perigo de prisões e desaparecimentos de companheiros. Por que estive ausente nesse dia?

ALBERTO ABIB ANDERY esteve muitas outras vezes em minha casa. Eu o convidava, depois das reuniões da FNT, para almoçar ou tomar a sopa portuguesa da minha mãe - que ele muito apreciava. Conversamos muito sobre esses anos de ausência e destruição de sonhos, de perspectivas para o futuro.

Eu me perguntava : o que o destino me reservava? Abib era a presença amiga nesses anos desesperados. Quando meu pai faleceu, foi um dos apoios para mim, meu irmão e minha mãe - ela lembra até hoje, com gratidão, que o procurou no ITO (Instituto Tecnológico de Osasco), onde trabalhava como psicólogo, para conversar.

Salete de Jesus Macedo e Silva, minha prima querida, estava a trabalho em S.Paulo, vinda de Duartina, interior de São Paulo. Eu e Abib combinamos com ela vários encontros. Depois, sempre perguntava dele e lembrava com carinho desses diálogos - em um último telefonema, quis saber noticias dele. Em 2007 despediu-se tragicamente da vida em Brasilia.

Abib estudou na Bélgica, onde morou 10 anos; era pároco na Igreja do Jardim São Vitor em Osasco e professor de Psicologia Social na PUC-SP; foi assessor do projeto de educação popular da FNT/Osasco (em 1980-1984); criou uma extensão universitária – a psicologia na comunidade - no Jardim Santo Antonio – para atender os trabalhadores. A presença dele – e a do grupo da FNT - foi fundamental para que ousássemos enfrentar a opressão e o governo tirânico com esperança de um mundo melhor.

Em 1971 e 1972, e no inicio dos anos 80, realizamos “Encontros sobre a realidade brasileira”- com militantes da FNT, das Pastorais (Operária, da Juventude, Direitos Humanos), da JOC (Juventude Operária Católica), da ACO(Ação Católica Operária), da Oposição Metalúrgica, das CEBs (comunidades eclesiais de base). Foi um desafio à censura e à repressão policial: convidamos como conferencistas intelectuais e trabalhadores que estavam marginalizados pela ditadura militar: Paulo Schilling, Salvador Pires, Paul Singer, Waldemar Rossi, Plinio de Arruda Sampaio Jr.

REGINALDO CARMELLO CORRÊA DE MORAES foi meu amigo no curso de Filosofia na USP. Lembro de que desapareceu por uma semana da faculdade. Eu e Patrizia Piozzi, sua namorada, ficamos preocupados. Somente 40 anos depois, em um almoço, fiquei sabendo o que aconteceu: ele era militante do POC (Partido Operário Comunista), e encarregado de levar e buscar companheiros na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. E me contou da prisão e morte sob tortura de Luiz Eduardo Merlino, o contato dele com a organização de esquerda.

Reginaldo foi um dos colaboradores dos grupos de estudos e dos encontros sobre a realidade brasileira da FNT-Osasco. E também um dos convidados para a sopa da minha mãe, quando, às vezes, me dava carona da faculdade e me levava até à a escola do Jardim Baronesa em que fui professor-alfabetizador. Uma outra gentileza – e talvez não tenha revelado como sou grato: nunca tinha frequentado um restaurante na capital paulista – e ele me convidou para jantar no restaurante chinês na rua Fernão Dias, em Pinheiros.

Foram anos que tivemos a audácia de enfrentar a tirania. Recordo de várias panfletagens da Oposição Metalúrgica que realizamos juntos – em uma das vezes, ele passou a noite em minha casa para, de madrugada, estarmos nas portas das fábricas no bairro do Jaguaré. Eu como mesário, ele como fiscal, participamos em 1972 das eleições para o Sindicato dos Metalúrgicos de S.Paulo (Chapa Waldemar Rossi). Era aluno de Prática de Ensino de Filosofia na Faculdade de Pedagogia na USP, e para justificar a ausência ao trabalho, consegui um “atestado” – de que eu participara de um “estágio”.

Os anos 70 estão marcados, para mim, pelo companheirismo, pela ousadia e coragem de Abib e Reginaldo – entre muitos outros camaradas. Alberto Abib Andery vive hoje na Casa São Paulo, no bairro Ipiranga; Reginaldo C. Corrêa de Moraes é professor na Unicamp – eles estão presentes na minha memória e na história de Osasco.

quinta-feira, 19 de março de 2015

RECORDANDO Dona ANA CARA ESPINOSA ou Como dizer adeus - João dos Reis


RECORDANDO Dona ANA CARA ESPINOSA ou Como dizer adeus

Estávamos em 1974 - e me despedia do Espinosa na varanda da casa dele, na rua Mal. Bitencourt, em Osasco. Ele havia saído da prisão depois de 4 anos. Tinhamos conversado sobre esses anos de isolamento, mas não tive coragem de perguntar a ele como foI a solidão do cárcere. Ele me mostrou as inúmeras anotações que fizera da leitura de “O Capital” de Karl Marx. Na saída, Dona Ana Cara Espinosa , a mãe dele, estava presente – e eu não sabia como encerrar a visita. Olhava para eles, e as palavras desapareceram.

Nesse dia, voltei para o Litoral Norte de São Paulo, onde trabalhava desde 1973 como professor de Filosofia. Quando vinha à cidade proletária visitar minha família, telefonava ou visitava o amigo de adolescência. No inicio dos anos 70 não tínhamos ilusões. O que os golpistas de 1964 planejavam para essa década? Como os sobreviventes da repressão, da tortura enfrentariam o presente e planejariam o futuro?

Recordava a Revista “Veja”, que registrou a prisão de Espinosa, Maria Auxiliadora Lara Barcelos e a morte sob tortura de Chael Charles Schreier. Era dezembro de 1969, e estava na casa de um amigo, militante do POC (Partido Operário Comunista), que foi preso no ano seguinte por 8 meses. Em setembro de 1970, li no jornal que um dos meus contatos com a VAR-Palmares tinha sido presa. As lembranças retornavam: o cerco aos resistentes à ditadura militar foi cruel e implacável.

Em Osasco, sabia que companheiros da greve de 1968 – José Groff, Antonio Vieira de Barros - estavam na lista do Dops e não conseguiam emprego nas fábricas. Não tínhamos noticias dos que estavam presos e “desaparecidos”. As detenções arbitrárias continuavam - Albertino Souza Oliva esteve no quartel da Av. Tiradentes – e não tínhamos informações dele e nem o motivo da prisão. Meu amigo de escola, José Campos Barreto, foi morto com o Capitão Carlos Lamarca em uma emboscada no sertão da Bahia.

Em Caraguatatuba, uma das mais belas paisagens brasileiras, me vi muitas vezes isolado e angustiado. Olhava para o mar à minha frente e a montanha do outro lado, e me sentia desesperado.

Encontramos às vezes nessa viagem transitória pelo nosso planeta pessoas que nos oferecem momentos de alento e esperança. Já mencionei várias delas antes – Antonia Carlota Gomes, Olga Ribas de Andrade Gil, Ângela Bernardes de Andrade Gil, Estevão Miklos Arato. Foram eles – entre outros personagens queridos - que tornaram possível enfrentar a década de 70. Que eu chamo os anos desesperados.

Mais tarde, em meados de 1980, voltei para Osasco. Decidi, com o apoio dos camaradas da Frente Nacional do Trabalho, confrontar a tirania com o poder da palavra. Contra a opressão, o medo, o terrorismo de Estado, acreditamos na força da classe trabalhadora.

A imagem sempre reaparece: os três na varanda da casa: Espinosa e sua mãe, Dona Ana – e eu sem saber o que dizer. Ficou gravado na memória: descobri nesse dia, mais uma vez, como é difícil encontrar as palavras para a despedida.

Disse adeus muitas outras vezes em minha vida – e todos eles foram dolorosos – e não há como evitar a dor, a tristeza e a saudade. Necessitamos das palavras para revelar nossos sentimentos e emoções – e nem sempre aprendemos ou sabemos como dizer adeus.