domingo, 14 de janeiro de 2018

Crônica: uma notícia, um telefonema, uma carta - João dos Reis


Quando decidi viver no Sul no final dos anos 90, procurei rever mais uma vez meus velhos camaradas. Tinha pouco contato com Alberto, e sempre por telefone; quando liguei para me despedir, ninguém atendia, como ocorrera outras vezes. Depois da minha volta a São Paulo, em 2005, amigos me informaram: ele se suicidara em 1996.

Quando ia nas férias para Duartina, meus avós, tias e primos me esperavam. Era um periodo feliz depois de um ano de trabalho e estudo. Salete casou e mudou para Brasilia, e sempre conversávamos por telefone. Em agosto de 2007, tia Adelaide ligou para dar a noticia: ela se matou.

Depois de alguns meses morando em Curitiba, liguei para Raquel contando as novidades da nova cidade. Conversamos bastante nesse dia, e não fui capaz de dissipar a angústia dela diante das incertezas do novo ano. Não pude telefonar no inicio de 2000. Escrevi uma carta, mas ela não chegou a lê-la – Marlene, a irmã dela, me escreveu contando do suicidio em fevereiro.

Por que retomo esses personagens queridos que passaram pela minha vida e que não estão mais presentes? Um assunto tabu entre nós: aceitar o inevitável, a morte como nosso destino. Escrevi dezenas de páginas revivendo imagens e recordações que marcaram minha juventude. Para revelar que a tragédia não está apenas na perda da memória do passado, mas na ausência de futuro. E descobrir, com tristeza, que a vida é uma luta sem tréguas contra a solidão.

Foi indo para a Bolívia e Peru em 1975, que conheci Alberto Caputi. Ele nasceu na Itália e cursava o 1º ano de Medicina na USP. Foi uma viagem de aventura: 24 horas no “trem da morte”, entre Corumbá e Santa Cruz de La Sierra, dormindo em hotéis baratos em La Paz e Cuzco, perambulando por Machu Picchu. Alberto foi um companheiro de viagem gentil e atencioso. Na roda viva da metrópole, nosso contato não era frequente, mas sempre tinha noticias dele. Na foto que o meu amigo Cupertino me enviou pela internet, o jovem médico está feliz.

Minha prima Salete de Jesus Macedo e Silva e seus irmãos, tia Adélia, foram as companhias constantes nas minhas férias no interior. Conversávamos muito sobre nossas aflições e esperanças. Tia Rosa organizava passeios em que comemorávamos a chegada do verão. Nas fotos dessas temporadas de descanso e lazer, estamos em paz com o mundo - parece que acreditávamos em nossos sonhos.

Raquel de Azevedo foi a presença amiga no final dos anos 80 até minha partida para Curitiba. Nos encontrávamos para ir ao cinema, e depois, conversar no Bar Longchamp na rua Augusta. Exaustos depois de uma semana de trabalho, eram momentos alegres, de confraternização. Procurávamos não falar das dificuldades do magistério – eu e ela lecionávamos Filosofia em escolas da rede pública. Nas fotos das viagens que realizamos juntos aparecemos sempre descontraídos e alegres.

As lembranças que eles deixaram estão presentes, apesar do tempo e da distância. Para todos nós, amigos e familiares, é uma dor permanente, sem remédio. Muitos se despediram do nosso planeta antes ou depois deles – e todos deixaram muitas saudades. Salete, Alberto e Raquel partiram - e não estive presente na cerimônia do adeus. A despedida deles aconteceu em silêncio.

Minha avó Elisa me ensinou a cultuar os nossos mortos - com reverência e respeito. Na estadia na minha cidade natal, uma parada era obrigatória: o túmulo onde repousam os meus antepassados queridos. Depois de tantos anos, ainda não consegui ir a Brasilia ou ao Cemitério São Paulo, onde Salete e Raquel estão sepultadas. E desconheço aonde está Alberto.

Recordando meu primo José Antonio Herculiani - João dos Reis





“Você partiu,

como se diz,

para um outro mundo.

Vácuo...

Você sobe,

entremeado às estrelas. (...)

Para o júbilo

o planeta está imaturo.

É preciso

arrancar alegria

ao futuro.

Nesta vida

morrer não é difícil.

O difícil

é a vida e o seu ofício."



- Início e final do poema “A Sierguêi Iessiênin”, de Vladimir Maiakóviski, tradução de Haroldo de Campos.



Em 25 de novembro de 1993, tia Rosa me telefonou de Duartina, SP: o primo Zézinho tinha falecido em um acidente no Paraná. E pedia a nós, eu e minha mãe, que fossemos ao velório e ao sepultamento.



Essas lembranças dolorosas surgiram nos últimos dias. E recordei: éramos quase da mesma idade – e foi com ele que conversei durante toda a minha vida sobre as artimanhas do cotidiano. No período das férias de trabalho e de escola, sempre nos visitávamos.




Sobre o que conversam os que têm uma relação fraterna? Não é preciso haver confidências; mas às vezes havia momentos em que abríamos nossos corações diante das armadilhas da vida Lembro de que em nossos encontros não havia lugar para lamentações: há momentos em que precisamos da proximidade de um amigo-companheiro.




Nas férias do trabalho, esteve várias vezes em Caraguatatuba, onde eu lecionava Filosofia na escola estadual da cidade. Gostava do mar – e estivemos muitas vezes em manhãs e tardes de sol na praia Martim de Sá na cidade do Litoral Norte. Em uma das vezes, viajamos com toda a família para o Rio de Janeiro pela nova estrada, a Rio-Santos, passeando por Parati e Angra dos Reis. No registro da memória há uma cena: eu, Zé, sua irmã Cidinha e o marido, Miro, reunidos na Lanchonete Estrela na praça Cândido Mota em Cândido Mota em Caraguá - e, me parece, nunca fomos tão felizes.




Era gerente da Caixa Econômica Federal, e esteve trabalhando em São Roque, perto da capital paulista, no final dos anos 70 e início dos 80 . Foi um período em quem combinávamos nos encontrar a cada dois fins de semana na casa da minha mãe em Osasco. Ele queria conhecer os restaurantes de São Paulo, e estivemos nos mais sofisticados da cidade - o Rubayat na Alameda Santos foi um deles; nunca mais voltei a frequentá-los. Entre tantos copos, taças, pratos, guardanapos e talheres, me senti desorientado; foi também a única vez que estive mais próximo do discreto charme da burguesia. Não esqueço do que ele me disse: que a capital paulista é uma cidade para quem tem (muito) dinheiro.




Desde criança, morando em uma outra cidade, Gália, e depois, em Osasco ou Caraguatatuba, mantivemos a comunicação por carta. Nunca deixamos de estar em contato. Um quarto de século depois, ainda sinto a sua ausência. São momentos de desesperança, de desconsolo, de desatino em que me pergunto: para ele poderia narrar os infortúnios do presente?




O que conversávamos quando crianças? Que diálogos tínhamos na adolescência? E, na vida adulta, quais eram as nossas conversas? Ele era um jovem de uma pequena cidade do interior de São Paulo que se informava sobre o que acontecia na cidade grande. Descubro com tristeza que nunca compartilhamos o momento histórico que vivemos nesses anos desesperados. Eu, pelo cuidado em não dividir com ele o terror da repressão e das atrocidades da ditadura militar. E, hoje, quem eu elegeria para interlocutor - e com ele dividir a construção dos sonhos?




Gostava de cinema – e, na época, o filme gravado em VHS era uma novidade tecnológica – e ele os assistia sem sair de casa. Fomos algumas vezes ao teatro - e ao cinema Belas Artes na rua da Consolação em São Paulo – e lembro de nossas trocas de impressões sobre os filmes e peças teatrais. Hoje, me vejo interrogando depois de sair do cinema ou do teatro: o que o Zé diria sobre as imagens, os personagens?




Estava casado com Zelinda, e na última visita à casa deles em Bauru, ele insistiu para permanecer mais dias. Não pude atender ao convite; não suspeitava que seria a última vez que estaríamos juntos para confraternizar, comemorar a nossa amizade e brindar ao futuro.




Parece que é uma característica familiar: nenhum de nós tinha demonstrações de afeto. Mas em 4 de outubro de 2017, decidi escrever - com saudades e o coração despedaçado - e recordar o meu primo querido. Ele não viveu - como tantos outros que foram muito amados e admirados por mim - para enfrentar os desafios desse nosso tempo de desalento e desesperança.




NOTA





. Poema “A Sierguêi Iessiênin”, de Vladimir Maiakóvski, pp.109/114 de “Poemas – Maiakóvski”, tradução de Boris Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos, Editora Perspectiva, São Paulo, 2ª edição, 1983, 176 pp

sábado, 13 de janeiro de 2018

Sem título - Risomar Fasanaro


ouço a voz da terra
e ela me traz a dor
de todas as mulheres
ouço o canto do vento
e ele me diz
do sofrimento dos aflitos

ratos invadem as casas
morcegos sugam nosso sangue
e o cheiro de esgoto
entra-nos pelo nariz
invade nossos poros

o urubu-rei e sua corte
se embolam na carniça
e riem a mais não poder
-gargalham -
indiferentes a nossa dor

a insensatez nos revolta
o cinismo é a cicuta
que bebemos
dentro da escuridão

de tanta dor
a lágrima nao salta
virou sal
virou sal
virou sal

2017

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

estações - Risomar Fasanaro


às vezes outono
folhas de mim
amarelam, caem...
às vezes inverno
inferno de mim
me recolho
-vivo meus brancos-
às vezes prima
às vezes vera
me cubro de flores
me encho de cores
bebo vinho
(re)vejo amigos
relembro amores
mas volto
sempre a ser
-verão-
abro as asas
saio da solidão

sábado, 6 de janeiro de 2018

2017 - Risomar Fasanaro


a imundície tudo invadiu
se espalhou no ar
nos contaminou
o chiqueiro
o barro
a fuligem
o esterco
tomaram conta de tudo
é o mangue
é a lama
que afaga e afoga
homens-caranguejos
chafurdam
é a chama
que nos incendiou
virou cinzas
o fogo apagou
risomar
7/5/2017 22h01