segunda-feira, 27 de julho de 2015

Litoral Norte: o reencontro com a cultura caiçara 2 - João dos Reis



"Deixai que em suas mãos cresça o poema
como o som do avião no céu sem nuvens
como o surdo verão as manhãs de domingo
Não lhe digais que é mão de obra a mais
que o tempo não está para a poesia".
Ruy Belo, trecho do poema "Emprego e desemprego do poeta"


Para Pedro Paulo Teixeira Pinto, de Ubatuba

Em um sábado à noite o jovem Lenin, meu aluno de Filosofia no curso colegial , tocou a campainha do apartamento onde eu morava na Praça Cândido Mota em Caraguatatuba – e me convidou para acompanhá-lo a uma festa. Em 1973, ano em que cheguei à cidade para lecionar na Escola Estadual “Thomaz Ribeiro de Lima”, ele foi um dos meus amigos-camarada.

Lenin trabalhava com artesanato de taboa. Reclamou para mim: tinha que entrar na água do manguezal para recolher a planta – que depois se transformava em obras de arte: tapetes, assentos para bancos e cadeiras. Conversamos muitas vezes sobre a ausência de emprego no litoral. Era filho de um militante do PCB que morreu atropelado na Rodovia Manuel Hipólito Rego (SP-55) – e que deu a ele o nome do líder soviético.

Julio César Lopes Avelar foi presidente do centro cívico (grêmio) estudantil da escola onde eu trabalhava em Caraguatatuba. Conversei com o jovem estudante: não tínhamos eleições para governador e presidente da República, mas devíamos nos preparar para a volta da democracia. No final do ano e do mandato, convidei-o e aos outros participantes da diretoria do grêmio para um jantar com pizza para comemorar a despedida.

Lucio Mascarenhas foi um aluno-companheiro querido: conversávamos sobre livros, música, sobre a participação dele no grupo de jovens católicos. O pai dele, que faleceu em um atropelamento na Rodovia SP-55, era um grande leitor – tinha os livros da Coleção Saraiva de Literatura. Em um domingo Lucio gentilmente me convidou para o almoço - sua mãe preparou o prato típico caiçara: o azul marinho.

O casal de namorados Isabel Cristina de Oliveira e Márcio foram também meus caros companheiros nos primeiros anos da minha temporada no litoral. Não recordo o que conversava com Isabel, mas lembro que Márcio era bastante calado.

Acordei às 7 horas da manhã do dia do meu aniversário no primeiro ano no litoral com o toque da campainha: eram Rita e Ester com um bolo de presente. As duas alunas eram amigas inseparáveis – e nossas conversas eram frequentes. Quais eram os assuntos dos nossos diálogos? Elas participavam do grupo de jovens da Igreja Católica.

Nasci no interior de São Paulo, vivi desde os 12 anos em uma cidade proletária - e os anos em que fui professor no Litoral Norte foi uma experiência nova e enriquecedora. O convivio com os jovens alunos me tornou também um caiçara: tinha pouca roupa, um sapato, um chinelo, uma bicicleta, livros, e mais tarde, umamáquina de escrever e um carro. Não era proprietário de móveis ou utensílios domésticos: a casa alugada onde morava já era mobiliada.

Lenin foi para o planalto em busca de trabalho – não lembro se para São José dos Campos ou São Paulo; soube noticias dele por sua irmã, Tatiana. Tive durante muitos anos um tapete artesanal de taboa – e tenho dúvidas: foi um presente dele? O banquinho tenho até hoje, mas o assento de taboa se desfez com a passagem dos anos.

Julio cursou Oceanografia na UFRJ; nos encontramos em 1987 – trabalhava em Olivença no litoral da Bahia. Me convidou para passar as férias com ele, e hoje me arrependo de não ter aceito o convite.
Lúcio foi trabalhar em São Paulo - nos encontramos quando vinha à Caraguatatuba; durante alguns anos, tive noticias dele por sua irmã.

Rita cursava Engenharia; estive no casamento dela e, ao me despedir – e foi a última vez que a vi – ela chorou. Ester cursou Enfermagem na USP; ainda nos vimos algumas vezes, mas depois desapareceu na voragem da grande metrópole.

Márcio cursou Engenharia; Isabel, Psicologia. Nunca mais nos encontramos: o que restou foi uma foto no teleférico de Campos de Jordão, onde estivemos em uma excursão da escola.

Tive milhares de alunos em quase três décadas no magistério. Se recordo alguns deles é porque eles deixaram marcas na memória, apesar da destruição de vestígios que o tempo provoca em nossas vidas. A recordação mais triste é saber que o jovem abandonava a sua cidade, sua terra em busca de trabalho – e perdia para sempre os vínculos de afeto e amizade – e com a cultura caiçara.

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