quarta-feira, 24 de junho de 2015

Canto de saudade a Curitiba 4 - João dos Reis



“Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos _
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra”.
Vinicius de Moraes, inicio do “Poema de Natal”.

Eram cinco dezenas de homens na confraternização no refeitório do Mosteiro Monte Carmelo, no Pinheirinho - e minha mãe era a única mulher presente. Minha casa na rua La Salle estava localizada em frente à chácara do mosteiro – onde os frades carmelitas criaram uma comunidade terapêutica para dependentes de álcool e drogas. O jovem Luiz Fernando Niedzievski nos convidou para o almoço – e pediu para homenagear minha mãe nesse domingo – ele não tinhas os pais há muitos anos. Ela tinha se acidentado, e eu percorri o bosque de araucárias, conduzindo-a na cadeira de rodas.

Conversávamos sempre: Fernando me dizia se eu tinha ciúmes da “adoção”da minha mãe. Deveria ter dito: que nós o aceitamos como um filho e um irmão querido - e como admirávamos o trabalho dele e da equipe de religiosos e leigos. Muitas outras vezes nos convidou para o almoço dominical. Ele, Frei Chico (Francisco Manoel de Oliveira) e Frei Teodoro Krucoski foram as presenças amigas na temporada em Curitiba – sabíamos que podíamos contar com o apoio e a palavra amiga.

Frequentei as aulas de contação de histórias - no Senac da rua André de Barros - com a psicóloga Martha Teixeira da Cunha e o ator-educador José Mauro dos Santos. Depois do término do curso, nos reunimos várias vezes aos sábados: para contar histórias, ler poemas – e em seguida, convidados para jantar na casa de um dos companheiros. Lembro de que todos éramos forasteiros – Mauro era o único curitibano, filho do ator e diretor de teatro José Maria (Ferreira Maciel) Santos.

Fui para o Hospital do Trabalhador como voluntário: contava histórias para as crianças – e lia noticias de jornal ou declamava poemas para os adultos. A experiência foi novidade para mim: encarar a dor e o sofrimento com reflexão, arte e beleza.

Nunca me esqueci de um jovem e uma senhora - eles me contaram suas vidas e como pretendiam encarar o futuro: foi uma catarse para eles e uma surpresa para mim. Um menino estava de saída para a sala de cirurgia – desesperado, chorava muito; tentei confortá-lo, e depois de narrar várias histórias, ele se acalmou, e eu me despedi dele na porta do centro cirúrgico.

Celina Guimarães Hardy foi a amiga querida no curso: ela foi para o Instituto Paranaense de Cegos contar histórias. Estávamos em contato para trocar impressões da nossa participação nesse universo novo e comovente: a descoberta do poder da palavra.

Nossa participação nesse projeto – minha e de Celina - foi interrompida por problemas de saúde, e não pudemos seguir adiante na aventura literária.

Com Arthur, de três anos, filho do amigo Ewerton Antunes, decidi inovar: quando ia visitá-lo, ele me pedia para repetir as mesmas histórias: eu contava uma parte da narrativa, e pedia para ele continuar, e íamos retomando e recriando o conto, com a participação dele. Foi um convivio fascinante com a literatura e o mundo infantil.

Fernando saiu do mosteiro, casou-se com Zamily. De volta a São Paulo, recebi uma carta: o nascimento de Davi Fernando - hoje, o piá está com três anos. Martha e José Mauro atuam na Casa do Contador de histórias. Frei Chico continua no projeto terapêutico no mosteiro. Frei Teodoro faleceu há alguns anos; Celina em 2009. Arthur é estudante de piano e de Filosofia.

Eles foram meus caros amigos na capital paranaense – e é com saudades que recordo os diálogos, os encontros em que dividimos o pão e o vinho - e comemoramos a nossa crença num mundo fraterno e solidário. A revolução que sempre sonhei será também com pequenos gestos de gentileza e de ternura.


sexta-feira, 12 de junho de 2015

Canto de saudade a Curitiba 3 - João dos Reis


Canto de saudade a Curitiba 3

“Meu coração,
É um quarto de espelhos,
Que reflete e multiplica,
Infinitamente,
Uma impressão”.
Helena Kolody, inicio do poema “Sensibilidade”.

Felis Penkal veio ao meu encontro na Lanchonete Badech em Araucária, PR, com um pacote de feijão – que ele plantou e colheu. Foi um dos presentes que recebi mais inesperados e preciosos.
Depois, para retribuir a gentileza do jovem agricultor, disse que lhe mostraria o mar – que ele ainda não conhecia.

Cumpri a promessa: combinamos um dia e fomos até Paranaguá. Almoçamos, passeamos pelo porto, estivemos no Mercado Municipal para comer pastel de camarão. No Iate Clube, realizamos um passeio de barco pela baia: foi a primeira visão dele do oceano Atlântico. Depois, à tarde, caminhamos pela praia.

Perguntei sobre os antepassados poloneses: se conversavam em casa e se ele entendia a língua do compositor Frederic Franciszek Chopin. Tinha curiosidade em conhecer a comunidade da Europa Central na região metropolitana – como eram as festas, as relações de amizade e de parentesco. Com ele aprendi a pronunciar corretamente “pierogi”, um pastel típico da Polônia.

As preocupações de Felis eram com a terra, o clima – a semeadura, a colheita de soja, milho, feijão . As mudanças da estação – verão, outono, inverno, primavera – eram o assunto principal em nossas conversas. Será que choveria? Ou haveria um período de seca? Procurou mudar de ocupação e conseguiu um emprego em uma madeireira; uma única vez o ouvi reclamar: era um trabalho muito pesado – e voltou para a lavoura. Eu o observava, mergulhado em silêncio: ele estava feliz?

O jovem Moacir Moreira Carvalho terminou o serviço militar na capital e voltou para Santo Antonio de Caiuá ,PR . Sempre me telefonava – e eu sabia das dificuldades de emprego no interior. Depois, trabalhou como vendedor pelos Estados do Sul. Às vezes eu recebia um telefonema de Santa Catarina ou do Rio Grande do Sul: era o viajante solitário me dando noticias da sua longa jornada.

Em uma das passagens por Curitiba, combinamos um encontro: almoçamos, passeamos pela cidade: no Memorial de Curitiba, no Passeio Público – e ele me disse: estava feliz por estar novamente na capital paranaense. Nenhum de nós tinha um projeto de vida definido para o próximo ano: o que o destino nos reservava?

Com Moacir, fiquei sabendo como era a realidade no Noroeste do Paraná. Quando ele partiu definitivamente da sua cidade natal, me contou da reunião do adeus à margem do rio da sua cidade. Seus amigos de infância e adolescência estavam presentes – e foi também a passagem para um novo tempo. Ele foi morar em Itajaí, SC, onde já se encontrava um dos seus irmãos. Depois, foi a minha vez de partir de volta para São Paulo - e fui à cidade portuária de Santa Catarina me despedir.

No encontro de despedida com Felis, ele me trouxe um novo presente: um pacote de pinhão – que ele e suas irmãs recolheram um a um do chão – uma colheita que só é possível depois da queda da pinha do pinheiro-do-paraná.

Em minha casa dem Cotia, recebi três telefonemas: no réveillon de 2005, a noticia do falecimento do pai de Felis, e depois, a do nascimento de Juan Guilherme; e um telefonema de Moacir: o nascimento de João Victor.

Hoje, Moacir trabalha em uma fazenda em Luiz Alves, SC. Felis vive no sitio da família em Araucária, PR.
Conversamos por telefone ou por mensagem de texto: como está a vida, os novos desafios do presente, o trabalho na terra. Os piás, um catarinense e um paranaense, são o futuro dessa história de amizade e de esperança em dias melhores no Sul do Brasil.

“Você nunca vai saber
quanto custa uma saudade
o peso agudo no peito
de carregar uma cidade
pelo lado de dentro”.
Paulo Leminski, inicio do poema “objeto sujeito”.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Canto de saudade a Curitiba- João dos Reis




Há “uma Curitiba que te promete um paraíso de campos bordados de bostas, onde vacas opalescentes ruminam tenros crepúsculos, e uma Curitiba que te atira no inferno da existência, no qual demônios de hálito doce e ancas lascivas rasgam tua carne com unhas esmaltadas de gangrena”. Jamil Snege, “Canto de amor e desamor a Curitiba”.

Estava em um bar no bairro Santa Felicidade - o jovem Ewerton Antunes me contou do incêndio na casa: perdeu roupas, móveis, mas a desolação maior foram os livros e discos devorados pelo fogo. Depois, comprei para ele um sobretudo, luvas e um cachecol para enfrentar o duro inverno curitibano – e dei de presente livros e discos.

Escurecia em um fim de tarde gélida – e encontrei Mazé (Maria José Mendes) na lanchonete do Parque Barigui. Abracei-a, e apesar de agasalhado, me sentia congelando - e disse como foi difícil atravessar a cidade, enfrentando o frio e o vento polar, para vê-la.

No carro com Arthur, esperando a volta do pai, Ewerton, fiquei emocionado – ele me contou do acidente da mãe. Não sei dizer quem estava mais desamparado - um adulto ou um piá curitibano de três anos.

Muitas outras vezes, encontrei os meus amigos paranaenses. Com Arthur, fui ao teatro de bonecos, ao parque de diversões, almoçamos juntos, estive na escolinha onde estudava para vê-lo – era uma criança adorável. Presenteei-o com livros, contei histórias infantis. A que ele mais gostava: a do Patinho Feio - era um prazer inventar a narrativa para prender a atenção e comover com o destino do personagem.

Morava no outro extremo da cidade, e por isso, conversei muitas vezes com Mazé por telefone. Fui às exposições de seus quadros – uma retrospectiva na Escola de Música e Belas Artes, “Identidades paralelas” na Casa Andrade Muricy, e “Matiz” em uma galeria. Foram experiências novas: conhecer a artista e a obra de arte.

Foram momentos da minha vivência em Curitiba no inicio dos anos 2000: eles foram meus companheiros de viagem na aventura desesperada – o eterno retorno ao passado - para construir um futuro. Foram momentos felizes?

Passei um réveillon com Ewerton e Arthur – estávamos distantes dos parentes e amigos de juventude. Ele foi o chef de cozinha e preparou o jantar; conversamos sobre a sua cidade, Cascavel, no interior do Paraná. Éramos três tristes? Em um outro réveillon, estive com Mazé e seus amigos comemorando o Novo Ano. Lembro que conversei sobre minha temporada na cidade em que viveu a poetisa Helena Kolody, onde éramos “estrangeiros”. Estávamos alegres?

São Paulo estava distante do meu horizonte. As noticias vinham das cartas dos amigos Risomar Fasanaro , Marcelino Jesus de Lima, Alberto Abib Andery e Albertino Souza Oliva. Parece que não veria mais a minha cidade natal, Duartina, e a cidade proletária de Osasco . Foram momentos de solidão?

Registrei as interrogações sobre a felicidade, a tristeza, a solidão – porque eu não sei as respostas. Foram, sim, momentos de descoberta da força da amizade, da solidariedade.

Ewerton é hoje um “restaurateur” e sommelier; Mazé continua criando beleza com seus quadros; Arthur é um jovem estudante – são os meus caros amigos da longa jornada no Sul do Brasil.

“Meu coração de polaco voltou / coração que meu avô / trouxe de longe pra mim / um coração esmagado / um coração pisoteado / um coração de poeta” - Paulo Leminski