terça-feira, 27 de novembro de 2012


 Rômulo, meu irmão  - Risomar Fasanaro

Ela não chega  de repente. Antes estende uma nuvem cinza que invade a casa. Tudo perde o brilho: os móveis, os bibelôs. É como se há anos a casa estivesse abandonada, e a poeira cobrisse tudo.
Mas não é essa poeira que todos nós conhecemos, é algo mais denso, mais forte que nos entra pelos poros, e vai nos  tomando aos poucos, em compasso de espera, até que ela chega. Inteira. E nos encharca por inteiro.
 


A morte. É assim que a sinto. A casa antes tão clara, tão cheia de luz, onde o vento entra  balançando as folhas das plantas, às vezes tão forte que derruba algo, de repente paralisa tudo. Tudo se cala.
Foi assim que ficou a casa com a partida do meu irmão. Aquele irmão que era só silêncio. Que de tão calado, eu dizia – antes de casar ele falava pouco, agora ficou mudo. E todos riam dessa verdade tão dura.
O que guardaria ele dentro daquele coração de criança, incapaz de uma palavra áspera, de um gesto de desagrado, de um momento de insensatez?



  
O que sentiria ele  com aqueles olhos expressivos, extremamente escuros, ao ver as barbáries do mundo, se ao ver uma formiga entrar na sala, levantava-se, deixava o que estivesse fazendo, para levá-la   até à rua, para que ninguém a esmagasse?



Ele que guardava as sementes de todas as frutas que comia, que as plantava  para doar a quem tinha terra, já que nos últimos tempos morava em uma casa sem quintal?
Lembro-me de que nos anos 80 ele sabia de cor quantas árvores havia na rua Pedro Fioretti,  e  em contagem regressiva, lamentando muito,  ia me contando uma a uma quantas árvores tinham sido abatidas,  até que nenhuma mais houve e ele se calou.



Era assim meu irmão. Com sua câmera fotográfica gostava de captar os pequenos brotos  que teimosamente  nasciam dos troncos cortados, para mostrar  a  força da vida. Tanto quanto eu, revoltou-se quando dizimaram as 3.400 árvores da reserva atlântica que havia na cidade. Ouvi dele um “longo” discurso de protesto: ” absurdo”, que repetiu três vezes. Foi a única ocasião que vi a fúria em seus olhos. Olhos que primavam por uma “ternura sem igual” como disse sempre  minha amiga Juçara Rodrigues. Aqueles olhos falavam, não precisavam de boca.



Quatro gerações: João, Rômulo, Rômulo /filho e Klaus

Com ele aprendi muito cedo a amar os indígenas. Todos os anos, quando solteiro, ele ia a Goiás, e ficava entre os carajá. De lá trazia peças de arte deles. Nos anos 60 ganhei dele duas peças  em madeira que guardo como relíquia ( e é).


Ao receber o título de cidadão osasquense, no ano passado,  chamado a falar ele fez um longo discurso. Disse aos presentes: “muito obrigado”. Era assim meu irmão que partiu.
Enquanto o outro, Paulo, esbanja notas musicais em seu bandolim, e as duas irmãs falam sem parar, ele nos ouvia e se calava.
Meu irmão Rômulo fotografou esta cidade palmo a palmo, de ponta a ponta, desde os 14 anos. Difícil para todos nós da família, percorrê-la agora, pois  a lembrança dele está em cada rua, em cada esquina, em cada viaduto...
Aí ele entre seus companheiros de trabalho...
 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012


RETALHOS DA VIDA  Joaquim Belo da Silva

No dia 04 de Novembro, Dona Julieta, minha saudosa mãe, faria 92 anos. Eu escrevi esse relato para homenagear uma mulher de fibra que passou pela vida sem vivê-la plenamente, pois toda ela, foi-nos dedicada, aos filhos e por bem pouco, bem pouco mesmo, não se tornou uma das mães da Plaza de Mayo.
Quando eu li “A Mãe”, do escritor russo Máximo Gorki, senti que Pelágia, tinha muitos nomes e muitas nacionalidades, inclusive, poderia muito bem  chamar-se  Julieta. As transformações das pessoas se dão quando elas se conscientizam e descobrem que a fome e a miséria não são determinadas por Deus, mas pelas  consequências de uma sociedade centralizadora, injusta, cruel e desumana.
Estávamos no período mais duro da ditadura militar. Os militares tinham iniciado a globalização da tortura e do desrespeito aos direitos humanos, abrindo mão das fronteiras e da soberania nacional, permitindo que qualquer agente de outro país entrasse em seus territórios em busca de terroristas, como assim eles tratavam aqueles que se manifestavam contra a opressão, e lutavam pela volta do estado de direito. Era a operação Condor. Vou omitir as datas, porque, com certeza, seria corrigido pelo meu irmão Antonio Belo.
 Minha irmã, Maria Inês da Silva e o Namorado, Abiasaf Xavier de Brito, que haviam saído recentemente da prisão aqui no Brasil, aproveitaram os ventos da liberdade e fugiram para o Chile. Primeiro ele,  ela depois.
No Chile, o governo Socialista de Salvador Allende lutava contra o boicote econômico patrocinado pelo governo americano,  “arautos da democracia e respeitadores dos direitos humanos”, como sempre se apresentaram para o resto do mundo. O governo democrático de Salvador Allende caiu em 11 de Setembro de 1973 e instalou-se no país,  talvez  a mais cruel ditadura já vista em nosso continente, sob o comando do general fascista Augusto Pinochet.
Diante das circunstâncias, foram eles obrigados a fugir para a Argentina, país que ainda estava sob um regime democrático. Mas o vírus da ditadura se alastrava como erva daninha pela América do Sul. O governo daquele país  também caiu, instalando-se mais uma sangrenta ditadura em nosso continente, ficando à frente do governo, o General Carlos Rafael Videla, que se celebrizou por se revelar o maior torturador da ditadura argentina.
 Inês e Abi foram presos e torturados nos porões da ditadura argentina, em companhia de mais dois outros brasileiros. A mãe de um dos prisioneiros, residente no estado de Goiás,  de volta da Argentina, após a visita e a libertação do filho preso, colocou uma nota no jornal “O Popular” de Goiás, sobre a situação de penúria em que Inês e Abi se encontravam, nos cárceres da ditadura do governo Rafael Videla”. Uma senhora de nome Aurora Baú, recortou e me enviou aquela  nota publicada no Jornal. Como ela descobriu meu endereço, até hoje é um mistério...
Começamos a nos movimentar no sentido de libertar o casal;  ou pelo menos  tornar pública as prisões,  evitando assim que mais dois corpos não identificados aparecessem boiando nas águas do Rio da Prata. Uma missão que não era fácil dentro do contexto político não só da Argentina, mas de todos os países Latino-americanos.
 Por mais que tentássemos  esconder o fato de Dona Julieta, a nossa mãe, era uma missão praticamente impossível, pois ela era muito perspicaz, capaz de antever coisas incríveis em relação aos filhos. Certa vez viajei de Anápolis, estado de Goiás, para o Recife, sem avisar a ninguém, pois se eu avisasse ela iria fazer despesas extras e desequilibrar o orçamento doméstico. Mas, inexplicavelmente, quando eu cheguei, ela tinha feito uma peixada de Cioba e doce de ovos que era a minha paixão. Sorriu e disse: eu não falei que Joaquim iria chegar?...
 À mediada que o tempo ia passando, ficava cada vez mais difícil manter a história em segredo. Quando ela finalmente tomou conhecimento dos fatos, com firmeza e determinação  começou a movimentar-se, e teve uma reação oposta à que todos imaginavam. Sua primeira providência foi fazer uma carta para o Sr. Carlos Rodriguez, do Alto Comissariado das Nações Unidas, carta essa que foi lida e colocada nos anais da Assembleia Legislativa do estado de Pernambuco, pelo jovem Roberto Freire, na época um aguerrido deputado que, junto com Maurílio Ferreira Lima, era uma das poucas vozes que tinha coragem de se manifestar contra o regime militar.
 Dona Julieta fez uma reunião com os filhos e disse: estou indo para Buenos Aires tirar minha filha da prisão.  A surpresa foi geral.  Tentamos demovê-la da ideia  com todas as ponderações possíveis: que ela não sabia falar espanhol e que Buenos Aires era na época uma cidade maior do que São Paulo e tantos outros inúteis argumentos. Os amigos e conhecidos começaram a se manifestar e conseguiram passagens, dinheiro, roupas,  e outras providências mais.
Na véspera de sua viagem, chegou uma carta das Nações Unidas  comunicando que os dois haviam sido libertados e aceitos pelo governo da Bélgica como exilados políticos. Onde permanecem até os dias atuais.
Dona Julieta vive hoje em outra dimensão, a dimensão dos nossos pensamentos. Vive em nossa memória, nas canções que gostava de cantar. Vejo-a como se fosse um filme, sentada em sua inseparável máquina Singer, costurando os retalhos da vida ou em frente do velho fogão à lenha cozinhando as ilusões que matavam  nossa fome.
Entre todas as lembranças, talvez a mais comovente seja a sua luta obsessiva para nos manter vivos e saudáveis, época em que havia um elevadíssimo índice de mortalidade infantil e tinha para isso um arsenal terrível tanto para os inimigos externos que queriam se apropriar indevidamente do pão nosso de cada dia - os vermes - quanto para nós, as vítimas: Sementes de mamão, Biotônico Fontoura, Emulsão Scott, que era um extrato de óleo de fígado de Bacalhau - acredito que seja muito bom para memória, pois nunca mais consegui esquecer aquele gosto horrível.
Lembro-me que ela apanhava limalhas de ferro na oficina de um ferreiro que tinha perto da nossa casa, em Betânia, colocava dentro de uma vasilha com água e depois de sete dias nos dava para ingerir àquela água ferruginosa, que era para repor o ferro subtraído pelo inimigo. Pela saúde, energia e disposição que têm todos os seus filhos, acredito que tenham sido eficazes, as suas fórmulas artesanais. Uma coisa é certa: foi eficaz o exemplo de amor e determinação de uma mulher e mãe extraordinária.

Belém, 02 de Novembro de 2012.