terça-feira, 17 de julho de 2018

Recordando José Campos Barreto (1945-1971) - João dos Reis


JOSÉ CAMPOS BARRETO, o Barreto para os amigos do colégio, nasceu em Buriti Cristalino/Brotas de Macaúbas, Bahia. Cursou o ginasial no Seminário de Garanhuns, em Pernambuco. Veio para S.Paulo em 1964; foi aluno do curso Clássico do Colégio Estadual "Antônio Raposo Tavares" (Ceneart) em Osasco nos anos 1965/1967. Foi Presidente do Circulo Estudantil de Osasco (CEO). Trabalhou na fábrica Cobrasma; líder operário na greve de 1968 em Osasco, quando foi preso - ficou na prisão 98 dias. Militou na VPR e na VAR-Palmares. Morreu no sertão baiano em 17 de setembro de 1971 junto com o Capitão Carlos Lamarca.

Era meu amigo e colega de turma no curso colegial: alegre, inteligente, culto, musical (sempre com um violão debaixo do braço), leitor do filósofo Bertrand Russell, do escritor João Guimarães Rosa (foi ele que me emprestou "Grande sertão: veredas"). Soube da prisão, das torturas depois da greve de Osasco em 1968 porque meus amigos Jesse Navarro e Maria Aparecida Medeiros foram escolhidos por ele para visitá-lo no DEIC/DOPS.

Ele passou no fim do expediente no meu trabalho, fui de carona na bicicleta dele visitar um outro amigo. Foi, talvez, nosso último encontro - as palavras desapareceram da minha memória, mas as imagens permanecem.





segunda-feira, 16 de julho de 2018

16 de julho de 1968: a Greve de Osasco - Risomar Fasanaro



26 de julho de 1968: a Rua da Estação estava completamente deserta. Um vento frio soprava sobre os trilhos, levantando alguns panfletos. Abaixei-me e apanhei um. Estava sujo, úmido e rasgado. Ora, já fazia dez dias que os operários tinham entrado em greve, mesmo assim ainda existiam alguns daqueles panfletos? Foi a pergunta que me fiz. Não, não era. Era o folheto de uma vidente que prometia desvendar o futuro.E prometia a felicidade a quem a consultasse Saberia ela o que iria acontecer com Barreto, Espinosa, Groff, João Joaquim, Roque, e tantos outros? Teria ela poderes para mudar os seus destinos?

As traças da memória teimam em apagar as imagens daquele dia 16 de julho, mas não conseguem. Elas permanecem impressas com mais nitidez do que qualquer filmadora hoje consegue registrar os acontecimentos.

Naquela manhã do dia 16 de julho, quando a sirene da Cobrasma que todos os dias tocava pontualmente às seis, às doze, e às dezoito h, excepcionalmente tocou às 8h45, a cidade se surpreendeu. Alguma coisa estranha estava acontecendo.

Só os operários sabiam que aquela era a senha para paralisarem as atividades e ocuparem, primeiramente, a Cobrasma e depois as outras fábricas nos horários combinados nas reuniões de preparação do movimento.

Era um dia muito frio e assim que a notícia da greve chegou ao poder, o centro da cidade foi totalmente tomado por tanques de guerra e brucutus. Muitos policiais e militares do exército circulavam pelas ruas, ou ficavam parados nas esquinas. Os quartéis de Quitaúna entraram em prontidão e, por isso, todos usavam roupas camufladas.

A população, que já vivera aquele clima quando se instaurou o golpe militar, voltou a ficar amedrontada. Em quase todas as famílias existia algum operário, e quem não tinha nenhum familiar nas fábricas, tinha amigos, por isso todos estavam apreensivos.

Meu pai fora ao mercado municipal naquela manhã e trouxera a notícia: a Cobrasma está em greve. As ruas do centro estão lotadas de tanques de guerra e soldados do exército. Ouvindo aquilo, senti um aperto no coração. Ali trabalhavam meus amigos, estudantes-operários com quem me reunia aos domingos na Biblioteca Monteiro Lobato para discutir política estudantil. Fiquei apreensiva.

Na hora do almoço, Leovil, um amigo de infância que morava em minha casa, e trabalhava na Cobrasma, chegou contando: “a fábrica está em greve e seu amigo Roque estava lá de manhã, com um revólver na mão, impedindo a entrada dos operários.


Naquele dia, as mulheres e crianças que ficavam encostadas na cerca em frente à fábrica na hora do almoço, com as marmitas que traziam para os familiares, sempre amarradas em panos de pratos muito brancos, não vieram.

Assim que soube, liguei o rádio e fiquei escutando as notícias, mais ágeis que as da tevê, que naquele tempo reproduziam mais chuviscos que imagens.

Na verdade, só muitos anos depois vim a conhecer alguns detalhes daquela greve. E são tantas histórias, tantos fatos, que aqui só posso me ater a algumas pinceladas, que retirei de um livro que comecei a escrever e não sei se um dia irei terminá-lo.

Entrevistei vários daqueles grevistas e ouvi deles que logo pela manhã as sandálias franciscanas de José Campos Barreto, o principal líder da greve, rebentaram e ele ficou andando descalço ali dentro da fábrica entre limalhas de ferro e cavacos de madeira, orientando o movimento. Correndo o risco de se ferir.

Por ordem do comando de greve, os operários desligaram as luzes assim que deflagraram a paralisação, todos caminhavam no escuro; isso dificultava a ação da polícia, pois os operários conheciam bem o local.

Contudo, o momento difícil que viveram não os impede de relembrar algumas cenas pitorescas.


Havia na seção de acearia um depósito de areia que se utiliza na confecção dos moldes e que ficava na parte externa. Era uma duna enorme, com uns 400m só de areia.
João Joaquim conta que “o medo era tamanho que dois operários, apelidados de Quingão e Quinguinho, se enterraram naquela areia e ficaram apenas com o pescoço de fora. A repressão passou várias vezes por eles, sem vê-los, por pura sorte...

Quando a polícia entrou na Cobrasma, João Joaquim correu e entrou em uma caixa de fundir aço e se escondeu lá dentro. Aí os policiais o descobriram e começaram a gritar: Ah...seu negro desgraçado, você está aí? E ele, que é muito bem humorado, saindo da caixa gritou: “srs. Policiais, olhem que incêndio danado!!!...” Quando os policiais se viraram para a direção que ele apontava, João Joaquim pulou a caixa e saiu correndo.

Outra passagem engraçada foi com Albino Pinto Rosa, um evangélico. Ele também se escondeu em uma caixa; quando os policiais iam saindo, Albino se levantou e gritou: Glória a Jesus, irmãos! Os soldados se voltaram e vendo-o, exclamaram: ah...é glória a Jesus, é? E o levaram embaixo de cassetadas.


No início da noite, os grevistas aproveitaram alguns gravetos, restos de papéis e de plástico e acenderam fogueiras em torno dos muros, no interior da fábrica. Elas possibilitavam a visão do pessoal de confiança deles que ficava em torno dessas fogueiras. Ninguém podia sair, nem entrar.

Os líderes permaneciam ali, junto com cinco, seis companheiros em torno das fogueiras, porque alguns operários, com medo, ficavam apenas alguns instantes e saíam, e com a permanência dos líderes ali, junto com eles, se sentiam mais seguros. As fogueiras possibilitavam à liderança saber com quantos podia contar.

Inácio Gurgel, diz que elas davam um ar lúgubre ao ambiente e que até hoje aquela lembrança lhe traz uma sensação ruim. Para ele, o mais difícil naquele primeiro dia de greve foi ficar ali junto daquelas fogueirinhas que pareciam cena de um velório.

Para convocar os outros trabalhadores no segundo dia de greve, foi preciso redigir um panfleto futurista, pois só havia mimeógrafo a tinta, e o José Dirceu que se prontificou a ajudá-los, pediu o texto com quatro dias de antecedência pra dar tempo de rodá-los. Foi assim que Roberto Espinosa e Roque Aparecido da Silva imaginaram o que aconteceria e redigiram:

“Ontem, às 8h45 da manhã, um toque extra da sirene deflagrou a greve da Cobrasma; às 12 horas, horário do almoço, os trabalhadores da Barreto Keller também pararam e foram em passeata para o Sindicato e, em assembléia, decidiram ficar em greve por tempo indeterminado. Ás 14h, horário da troca de turno, os trabalhadores da Lonaflex também decidiram decretar greve e ocupar a fábrica por prazo indeterminado. Quando às 9h os operários ocuparam a Cobrasma, eles se reuniram dentro da fábrica e decretaram greve e ocupação da fábrica, por tempo indeterminado”.
Bons videntes, Espinosa e Roque viram até às 14h do dia 16, tudo acontecer exatamente como haviam escrito no panfleto. Depois houve algumas diferenças em função de interferências indevidas como a da repressão que começou a mudar o rumo dos acontecimentos, mas isso não quer dizer que não contassem com a repressão. Só que não sabiam que rumos e conseqüências ela traria.
No dia 16 a Cobrasma e a Lonaflex estavam ocupadas, e eles contavam com a paralisação da Brown Boveri e da Braseixos. Segundo João Joaquim, às 12h00 a Barreto Keller e a fábrica de fósforos Granada paralisaram e aproximadamente quatrocentas operárias, junto com os operários da Barreto Keller, saíram em passeata, passaram em frente ao portão da Cobrasma e se dirigiram ao Sindicato dos Metalúrgicos, em Presidente Altino. As operárias aplaudiam os metalúrgicos e davam vivas à greve.
Enquanto isso, no Sindicato dos Metalúrgicos, sob a liderança de Ana Maria Gomes, a Aninha, as mulheres se reuniam em uma sala, para discutir os problemas que enfrentavam na fábrica e que as levara a paralisar.

Às quinze horas chegaram alguns representantes do Ministério do Trabalho ao Sindicato, para tomar conhecimento oficial das reivindicações dos grevistas e tentar iniciar negociações com os dirigentes sindicais. José Ibrahim, então presidente, recebeu-os informando quais eram as reivindicações, e esclarecendo imediatamente que o sindicato apoiava a greve, mas que não estava autorizado a negociar em nome dos grevistas. Essa era uma das resoluções tiradas na assembléia dos trabalhadores em greve na Cobrasma. A de que todas as negociações com os representantes do Ministério do Trabalho e com os patrões, seriam efetuadas pelos grevistas em assembléia. Esta posição refletia o radicalismo da nova liderança sindical que buscava romper com a prática anterior das direções anteriores.

Antes, as greves eram decididas em assembléias sindicais minoritárias e impostas à grande massa através dos piquetes. Os acordos e decisões de volta ao trabalho muitas vezes aconteciam sem nenhuma consulta aos trabalhadores em greve.
Com aquela decisão, os representantes do Ministério do Trabalho decidiram ir à Cobrasma, para saber quais as decisões da assembléia dos grevistas. Eles as apresentaram, deixando clara a firme decisão de que não voltariam ao trabalho, enquanto suas reivindicações não fossem atendidas.

Sentindo a firmeza dos grevistas, os representantes do Ministério disseram que estudariam as reivindicações e depois voltariam para dar uma resposta. Em poucas horas chegava a resposta: às 20h30 tropas de choque da polícia militar cercaram a Lonaflex com cavalaria e carros de combate (brucutus e tatus), sob o comando de um major do Exército. Ao mesmo tempo, pelotões da Polícia Militar ocupavam os principais pontos da cidade.

Em uma operação rápida, as tropas ocuparam a fábrica e cercaram o refeitório, onde os operários estavam reunidos em assembléia. Após um rápido diálogo e a garantia do major de que nenhum operário seria preso, os trabalhadores aceitaram desocupar a fábrica. Foram saindo em grupos, protegendo os líderes, e ninguém foi preso.

Enquanto isso, trabalhadores da Brown-Boveri e da BRASEIXOS se encontravam em assembléia no Sindicato, para decidir como seria a adesão à greve na manhã do dia seguinte. No momento que chegou a notícia do início da repressão e da invasão à Lonaflex pela polícia, houve uma grande tensão entre os trabalhadores, mas mesmo assim mantiveram sua posição.

O comando geral da greve comunicou à coordenação dos trabalhadores que ocupavam a Cobrasma o que tinha ocorrido na LONAFLEX e imediatamente eles iniciaram os preparativos para a chegada da repressão.

Na verdade, muitos trabalhadores tinham medo, a participação não foi do jeito que eles tinham planejado.

Em pouco tempo a Rua da Estação ficou totalmente tomada pela tropa de choque. Os operários assumiram a posição de resistência passiva, para evitar um massacre. Todos os trabalhadores concentraram-se em frente ao portão da entrada principal, por onde a polícia deveria chegar. Não houve tempo para se definir uma posição sobre como se enfrentar a repressão. Em pouco tempo a rua em frente à fábrica, já estava totalmente tomada pela tropa de choque.

Enquanto o comandante organizava o pelotão em posição de ataque, Barreto proferiu um discurso histórico. Como fazia pouco tempo que ele tinha dado baixa do quartel, dirigiu-se aos soldados com aquela linguagem militar que aprendera no GCAN-90, em Quitaúna: atenção, soldados! Imediatamente os soldados, habituados a obedecer, nem se deram conta de que a ordem partira de alguém que eles tinham vindo para reprimir e ficaram em posição de sentido. Barreto então começou a falar, e naquele discurso colocou toda a alma do poeta que compunha lindas canções que cantava e tocava com o violão.

Emocionado, lembrava aos que tinham vindo para reprimi-los, que ali todos- tanto eles, operários, quanto os soldados, vinham das camadas mais humildes da população e que muitos ali eram primos, irmãos e até pais daqueles soldados. Mostrou os objetivos da greve; disse que a repressão só servia para defender os interesses dos patrões e que os soldados também recebiam baixos salários, e conclamou-os a não acatar as ordens do comandante e a não reprimir os trabalhadores. E acrescentou desafiante: por que em vez de reprimir aqueles operários eles não voltavam as armas contra o comandante?

Naquele momento os soldados vacilaram. O carisma de Barreto era muito grande, ele subira em um vagão de trem e com a altura, sua figura tornava-se mais altiva, mais imponente. Por um momento teve-se a impressão de que os soldados agiriam sob o seu comando e não mais o do militar que os conduzira até ali.
Percebendo isso, o comandante, muito nervoso, reagiu violentamente dando ordens enérgicas de invasão à fábrica. Então, os carros de combate entraram na frente derrubando as barricadas, e nesse momento o comando de greve ordenou que desligassem as luzes da fábrica, ficando todos no escuro.

Houve muita luta corpo-a-corpo e saíram vários trabalhadores e soldados feridos, e mais de sessenta trabalhadores foram levados presos. Enquanto se travava a luta entre os grevistas e a polícia, Barreto organizou rapidamente um grupo de apoio aos que tentavam fugir, e para amedrontar os soldados ameaçou incendiar uma bomba de gasolina. Dessa forma conseguiu que a tropa parasse por alguns instantes e, dessa forma, possibilitou a retirada de muitos dos grevistas.

Não só naquela noite a polícia esteve presente na rua da Estação. No dia seguinte ainda permanecia lá. O Sr. Antônio, proprietário do Restaurante do Mineiro, que fica a uns cem metros da Cobrasma, na rua da Estação, contava até poucos meses antes de falecer, em 2006, que no segundo dia vários soldados invadiram o restaurante, montados a cavalo, à procura de grevistas, assustando os clientes que estavam no local. Esses fatos poderão dar uma visão aos que não viveram os horrores da ditadura, o que ela representou para o país.

Naquele segundo dia a Brown Boveri também paralisou suas atividades. Lá também havia uma comissão de fábrica. Otaviano Pereira dos Santos, atual presidente da UAPO, na época era Vice-Presidente do Sindicato e Presidente da Comissão de Fábrica da Brown Boveri, ele era o líder lá dentro e mobilizou o pessoal todo lá.


À noite houve a última assembléia no sindicato e entre as várias propostas, foi aprovada a de resistência passiva. Quando a polícia chegou ao sindicato, ficou claro que não havia condições de resistir. Alguns conseguiram escapar pelos fundos e não foram presos.

Umas 300, 400 pessoas foram presas naqueles dias da greve.. Alguns ficaram vários dias na prisão, mas o único que ficou um longo tempo foi o Barreto. Ele ficou 98 dias preso; justamente porque foi o que teve mais diretamente uma atitude de confronto à repressão.


segunda-feira, 9 de julho de 2018

Osasco, a cidade proletária: recordando José Groff - João dos Reis


Caraguatatuba, 1973: almoçava em uma cantina com Gilmar Rodrigues da Rocha, 18 anos, meu aluno de Filosofia e Cultura Contemporânea no curso colegial da Escola Estadual “Capitão Deolindo de Oliveira Santos”, em Ubatuba. Ele me perguntou sobre a repressão e a participação política no momento político que vivíamos. Disse a ele que nós, brasileiros, somos conhecidos pela habilidade do drible no futebol – e que devemos usá-la na sala de aula, na vida cotidiana, na militância partidária.

Recordando essa cena, José Groff reapareceu na memória. Foi um dos meus irmãos-camaradas mais presentes e queridos na minha juventude. Foi da Comissão de Fábrica da Cobrasma e um dos lideres da greve de 1968. Militante da Pastoral Operária, Frente Nacional do Trabalho, do Secretariado Justiça e Não Violência (depois Serpaj, Serviço Paz e Justiça), do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco, do PT. Descendente de austríacos e italianos (os Martini), nasceu em Itu, SP; veio com a família para Osasco em 1954; foi um metalúrgico-ativista que se engajou na luta da classe trabalhadora.

Estivemos juntos na longa trajetória de resistência à tirania e ao terror do Estado policial criado pelos militares golpistas de 1964. A partir de 1980, fui contratado como assessor do projeto de educação popular da FNT de Osasco, e o convivio foi muito próximo: eu era o “intelectual”, Groff o operário – ele dizia que não eram duas ocupações necessariamente contraditórias para compreender a realidade do proletariado.

Realizamos visitas aos padres Rafael Busatto da Igreja Imaculada Conceição no Km 18; Angelo Grando da Igreja do Jardim Piratininga; Padre Zezinho da Igreja N.Sª Aparecida de Carapicuiba; padre Paulo da Comunidade Kolping de Vila Dirce e Cohab ; aos participantes do movimento católico italiano da Vila Analândia em Jandira; ao bispo Dom Francisco Manuel Vieira – para pedir o apoio ao projeto de conscientização, educação sindical e política da FNT. Como cristão que optou pela Teologia da Libertação, disse nessas conversas: queríamos uma nova sociedade – e ela só será possível com um trabalho de educação permanente.

Depois, ele passou a atuar na sede central da FNT e no Serpaj em São Paulo. Sabia das viagens e dos contatos com os excluídos e marginalizados pelo capitalismo – dos desalojados pelas empresas madeireiras de Teixeira de Freitas na Bahia; dos pequenos proprietários do Vale da Ribeira, SP: e em Ronda Alta no acampamento de sem-terras do Rio Grande do Sul. Não eram anos de esperança no futuro, mas ele estava sempre confiante: é preciso acreditar em um novo mundo com justiça e igualdade para os explorados.

Em 2007, reencontrei-o em um almoço-reunião dos camaradas da FNT na casa de Caio Grizzi Oliva. Conversamos rapidamente – e deveria ter dito a ele como era grato e como foi importante o apoio amigo, sempre solidário. Nunca houve distanciamento entre nós – acredito que sempre fui aceito como um “aprendiz de filósofo” comprometido com a luta dos trabalhadores.

Fui padrinho-testemunha dele e de Marlene no casamento civil. Foi uma cerimônia simples, sem convidados: os militantes da Igreja Católica e do movimento operário tornaram-se meus afilhados.

Não houve tempo para enviar a ele os meus relatos autobiográficos da aproximação com o comunismo libertário e com o movimento de resistência armada à ditadura – essa retrospectiva estava proibida pela censura e repressão . Groff não lerá meus “escritos de um operário da palavra”, como talvez ele os chamaria.

Depois de tantos anos, relembro o encontro com o jovem Gilmar – e dos diálogos com o companheiro Groff - com muitas saudades. Foram momentos em que reafirmamos nossa crença em um novo tempo.

Gilmar Rocha cursou Arquitetura – há duas décadas não tenho noticias dele. José Groff faleceu em 2010 – eu continuo acreditando, como ele, no socialismo, onde cristãos e comunistas, operários e intelectuais, professores e alunos, artistas e camponeses, possam confraternizar, comemorar juntos a realização dos nossos sonhos.

Alguns poemas de risomar Fasanaro


felicidade:
gaivota de crepom
contra a tempestade
**

mora a felicidade
bem no fundo de um poço
se virmos em suas águas
refletido nosso rosto
logo desaparece e
dá lugar ao desgosto
**
tento repovoar
o deserto
que tua ausência deixou
**
vi teu recado nas nuvens
mas não consegui ler
a chuva
derreteu tuas palavras
manda-me outra mensagem
no voo de um pássaro
ou nas pedras de um rio
também sei ler
palavras escritas
no ar, no fogo, na terra
escreve no que quiseres
que te entenderei
**
duas xícaras de chá
uma está vazia:
-saudade
**

terça-feira, 3 de julho de 2018

A Fome é Amarela- Risomar Fasanaro




Um repórter da “Folha” é escalado para fazer uma matéria sobre a primeira grande favela de SP, no Canindé. Lá, conversando com os moradores, descobre uma mulher semialfabetizada, catadora de papel, que escreve um diário. Ela lhe conta que aproveita os restos de cadernos que encontra no lixo, e escreve todo tempo que tem livre.
Carolina Maria de Jesus é seu nome, o repórter o jornalista Audálio Dantas. Ele pede para ver o diário, e ela lhe mostra : são vinte cadernos, escritos entre julho de 1955 e janeiro de 1960. Lendo algumas passagens ele conclui que nem ele, nem nenhum outro repórter descreveria melhor o que é viver ali. Além dos cadernos, Carolina encontrava muitos livros, e lia muito.
Audálio Dantas publica uma matéria na revista “O Cruzeiro”, e faz mais: leva os diários a uma editora, e consegue a publicação do livro “ Quarto de despejo”.
Nesse diário, Carolina divide a cidade como se fosse uma casa em que o centro é uma sala de visitas, com todo seu requinte, todo seu luxo, e a favela o quarto de despejo dessa casa. Esta é a razão do título da obra.
O dia a dia dessa mulher negra, mãe solteira de três filhos está ali, escrito a suor e sangue a sua batalha diária, para conseguir alguns cruzeiros (a moeda da época) que lhe possibilitem levar alimento para casa.
É batalha dura, indo buscar água de manhã para poder fazer comida, lavando roupas numa lagoa, e catando papéis, garrafas, latas e ferro velho. Vende o que encontrou no lixo, mas nem sempre consegue comprar o mínimo de que precisa, e volta para casa desanimada, sem conseguir nada que aplaque a fome dela e dos filhos. E a fome não os deixa dormir.
E tão grande é a fome que ela diz que passava a ver tudo amarelo, por isso deu a ela a cor: a fome é amarela. Mas não é carência só de alimentos, é de tudo. Muitas vezes os filhos não tinham sapatos para ir à escola. Ela ficava dias sem lavar roupa por não ter sabão...
E enquanto essa mulher corajosa fica escrevendo ou lendo, a favela fervilha. São vizinhos que brigam, fazem fofoca e a bebedeira corre solta. As mulheres sofrem violência, apanham dos maridos, e isso tanto se repete, que deixa de ser novidade. Faz parte da rotina. Ali, tudo se sabe:quem traiu, quem se prostituiu, quem saiu com o marido de quem...Mas ela diz : “ não tenho tempo para ir na casa de ninguém”.
Há momentos de lirismo como: “O mundo das aves deve ser melhor do que dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer.” Deixei o leito as 4 horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado.” Em outra passagem ela escreve : “contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil. O meu olhar posou nos arvoredos que existe no início da rua Pedro Vicente.”
Algumas vezes a revolta se manifesta:” O que eu aviso aos pretendentes a política, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la. O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora (... ) Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar.”
Quem estiver à procura de um bom livro para ler durante as férias, recomendo essa obra. Carolina é a escritora pioneira da literatura marginal no Brasil. Seu diário foi traduzido para mais de treze línguas. E ela tem além deste primeiro, vários outros: Casa de Alvenaria é o segundo, e nele ela faz algumas denúncias. Tanto esse como Quarto de Despejo hoje são raridades. Alguns livreiros vendem um exemplar por 300, 400 reais.
Risomar Fasanaro