quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Leonardo Padura: “O homem que amava os cachorros” -por João dos Reis



“Naquele dia (...) soube com exatidão o que era ter Medo – um medo assim, com maiúscula, real, invasivo, onipotente e ubíquo, muito mais devastador que o receio da dor física ou do desconhecido...” diz Iván Cárdenas Maturell, ao receber a noticia do diretor da revista de que o conto que escrevera era contrarrevolucionário.

“O homem que amava os cachorros” de Leonardo Padura (Edit Boitempo, S.Paulo, 2013, 590 pp) reconstrói o exílio de Leon Trotstky e a “biografia” do seu assassino, Ramón Mercader. Iván é o personagem-escritor que renuncia ainda jovem ao “oficio literário demolidor” – e só retoma a escrita anos depois de vários encontros com Mercader em uma praia cubana.

Há vários tempos históricos nessa reconstrução: as reflexões do revolucionário russo desterrado, do militante do PC espanhol destinado à missão de matar Trotsky, e de Iván, o escritor. É também uma retomada do socialismo no século XX, da Revolução Bolchevique e da construção do comunismo em Cuba.

Em um século em que milhões perderam a vida em conflitos armados, o autor nos leva a pensar na contingência inevitável da morte. “Na guerra ou matamos ou nos matam. Mas eu vi o que há de pior nos seres humanos, sobretudo fora da guerra. Você não pode imaginar do que o homem é capaz, o que podem fazer o ódio e o rancor...” diz Mercader a Iván.

O “personagem” Trotsky reflete sobre os rumos da revolução de 1917. Quais batalhas foram mais árduas? Entre bolcheviques e mencheviques? As do período revolucionário de 1917? As da guerra civil após a revolução? As das disputas pela sucessão e controle do partido? Com a ascensão de Stalin após a morte de Lenin, inicia-se um período de expurgos, julgamentos sumários, campos de trabalho forçado (os gulags) e execuções de antigos militantes bolcheviques. É o terror do Estado em nome da sobrevivência do socialismo.

Ramón Mercader se transforma ao aceitar a conspiração do stalinismo. O que o levou a abandonar a luta da Frente Popular na guerra civil na Espanha para engajar-se no plano de assassinar Trotsky? O que pensava do seu ato suicida? Teve dúvidas em cometer o atentado? O autor do livro reconstrói o personagem e o traz de volta ao local do crime. E depois de 20 anos de prisão no México, parte para Cuba e Rússia, onde foi condecorado como Herói da URSS.

Iván recorda o inicio da revolução cubana: os anos de fidelidade, obediência, disciplina faziam parte dessa empreitada heróica para a saída do subdesenvolvimento, da miséria. O espírito de sacrifício desses anos é abalado com a crise dos anos 90: as decepções, os fracassos, as fugas abalam as esperanças. O personagem-escritor é o retrato trágico de uma geração que concordou em adiar os sonhos por um futuro utópico.

O destino de 2 personagens reais – Trotsky e Mercader – e de um narrador nos conduzem à reflexão dos rumos da esquerda, hoje. No século XXI, Cuba ainda resiste – e Padura nos revela os dilemas do presente.

Na nota final, o autor recorda como surgiu a ideia do livro, dos sonhos que embalaram a sua geração, do exercício entre a realidade verificável e a ficção. Houve “a mediação de anos para refletir, ler, investigar, discutir e, sobretudo, penetrar com assombro e horror pelo menos numa parte da verdade de uma história exemplar do século XX e da biografia desses personagens obscuros mas reais que aparecem no livro”.

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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O Lobo da Estepe: os anos sem esperança- Hermann Hesse - por João dos Reis




Para Risomar Fasanaro

Em dezembro, em um almoço com os camaradas de Osasco, conversamos sobre Hermann Hesse – e Risomar me presenteou depois com o livro que me impressionou na juventude: “O lobo da estepe” (Edit. Record, Rio de Janeiro, 2000, 26ª tiragem, 240 pp). No final dos revolucionários anos 60 e inicio dos desesperados anos 70, os romances e contos do escritor alemão foram publicados - e eram os mais procurados na biblioteca onde trabalhava. Não resisti à curiosidade e li vários deles – confesso com certa displicência. Sabia que o escritor era o guru dos hippies, dos que negavam a cultura e a sociedade capitalista.

Disse aos meus amigos: teríamos muitos anos pela frente de governo ditatorial no Brasil. A resistência à repressão e à censura estava sendo destroçada; muitos dos combatentes estavam presos, exilados, mortos, desaparecidos. Tinha 22 anos: o que o destino me reservava para o futuro? Diante da crueldade e estupidez daqueles dias, me sentia condenado à solidão e ao isolamento. Foi uma surpresa a descoberta e a leitura desse livro.

“Sou, na verdade, o Lobo da Estepe (...) – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem alimento num mundo que é estranho e incompreensível” (p.41). Ao mesmo tempo, um homem com um mundo de pensamentos, de sensações, de cultura – que conheceu as delicias da meditação, o desprezo pelo senso comum, mas que sente-se estranho a esse mundo - um prisioneiro da burguesia.

Hermann Hesse nasceu em Calw, Alemanha, em 1877, e morreu em Montagnola, Suiça, em 1962. Filho de pais missionários protestantes, estudou em seminário. Abandonou os estudos, rompeu com a família; trabalhou como relojoeiro e livreiro. Seus livros fascinaram os jovens do pós-guerra com a pregação antibelicista, contra o estilo de vida burguês e as instituições (Estado, família, escola, igreja).

O que me impressionou na primeira leitura – e hoje também – foi a angústia e o abandono do personagem diante da morte. Harry Haller, o lobo da estepe, se debate entre a inutilidade das conversações, do trabalho mecânico – e reconhece-se à margem da vida, na angústia tenebrosa dos que são incapazes de exercer a crítica à própria vida. O aprendizado rumo à libertação - despir-se dos preconceitos, uma nova sensibilidade - terá as companhias das garotas de programa Herminia e Maria, e do músico Pablo.

A vida que o conduz ao niilismo e à destruição o impede de penetrar no mundo das imagens. No final, acaba aceitando o convite à loucura, à recusa da razão, das convenções – para entregar-se “ao mundo flutuante e anárquico da alma e da fantasia”: participa em uma noite do Teatro Mágico, uma viagem ao mundo dos sonhos.

“Quem quiser música em vez de balbúrdia, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro trabalho em vez de exploração, verdadeira paixão em vez do jogo, não encontrará guarida neste belo mundo” (p. 164), escreve o escritor que incendiou a imaginação dos jovens. A experiência da festa, a submersão no onírico só era possível pela literatura - e o escritor conseguiu conquistar mentes e corações com as palavras de rebeldia.

Na última página, Hesse escreve: “O livro trata, sem dúvida alguma, de sofrimentos e necessidades, mas mesmo assim não é o livro de um homem em desespero, mas de um homem que crê.(...) Eu me sentiria contente se alguns desses leitores pudessem perceber que a história do Lobo da Estepe, embora retrate enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas ao contrário, à redenção”.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O FILHO RENEGADO DE DEUS -URARIANO MOTA - POR Risomar Fasanaro


Abro o livro do escritor pernambucano Urariano Mota “O Filho renegado de Deus”, e lá encontro, no início do romance:
“- Senta, filho, que os mortos voltam.
Ela nada lhe disse assim, de viva voz, mas ele obedeceu à ordem. O que faz um homem quando reencontra a sua mãe falecida? Obedece-lhe, contrito, grato, louco doido de amor, de carinho e saudade.”
Sabendo que é a história de um filho que reencontra a mãe morta atiça minha curiosidade, principalmente por ser de Urariano, escritor que já provou seu talento em obras anteriores como “Os corações futuristas” e “Soledad no Recife”.
Mas é segunda-feira. Preciso lavar roupa, colocar feijão no fogo, fazer o almoço e todas essas miudezas que compõem o universo de tantas mulheres. De tantas Marias como as que povoam o romance de Urariano, e que desses afazeres só se livram com a morte. Largo o livro sobre o sofá e vou para a cozinha.
Antes ligo o som para ficar ouvindo Mozart. Mas enquanto descasco alguns legumes, as personagens não me largam. Dona Maria e Jimeralto parecem me puxar pelo avental. Mas agora não posso, digo em voz alta. A mim mesma, a eles ou ao fogão, à geladeira, ao micro-ondas, tal qual a Shirley Valentine do filme de mesmo nome? Mozart está lá. Indiferente, segue as faixas, sonata após sonata, sem se incomodar com minha inquietação.
Por que teria voltado aquela mãe para falar com o filho? O que não lhe disse quando viva e que era preciso dizer agora? A curiosidade não me deixa, preciso voltar ao livro. O que é tão importante para dona Maria que, vencendo as leis da vida, do universo , a levou a transpor o muro que separa o mundo dos mortos do mundo dos vivos?
Pronto, me rendo: boto bastante água no feijão, um truque que utilizo sempre que quero ler ou escrever sem queimar as comidas, agarro o livro, e retomo a leitura. Descubro mais um pouco da história: Jimeralto, a personagem central do livro, vai ao enterro de uma amiga de infância, e o que poderia ter sido apenas uma ida ao cemitério, tal qual o poeta Dante guiado por Virgílio em “A Divina Comédia”, reencontra a mãe morta
É a partir daí, que a história se desenrola. Revisitando o passado, o personagem mergulha em um labirinto que o leva a um passado que parecia completamente esquecido, tal qual um câncer que está lá, silencioso, e por isso dele não tomamos, não queremos tomar conhecimento. Mas há um momento em que ele começa a doer, já não nos é possível ignorá-lo. É preciso encará-lo.
E é assim, nos (des)caminhos desse labirinto que ele rememora a infância, começa a digerir sua história e a compreender àquela mãe tão doce, tão carente, e de quem nunca se vê revolta, nem se ouve reclamações.
A solidão dela, como a de tantas outras Marias daquela “vila, ou conjunto dividido em paredes na senzala” somente agora, a ele se revela. E nesse encontro com o passado, o personagem reencontra também o pai; aquele homem rude, grosseiro, já não lhe parece tão poderoso, tão ruim, como foi para o menino Jimeralto e sua mãe. Era apenas mais uma vítima daquele mundo injusto e preconceituoso.

Penso nessa Maria que me remete à Maria bíblica que tanto sofreu pelo filho, penso naquele menino perdido em meio à insensibilidade do pai, a todas aquelas carências... Há dores tão profundas, que é impossível sofrer em silêncio, por isso Jimeralto geme alto...
Pronto: o livro já me seduziu.
E durante a leitura encontro algumas passagens que revelam a beleza que só agora Jimeralto, adulto, percebe:
“Aquilo lhe chegava como borboleta sem música da crisálida.”
E ao relembrar o suplício do amigo Cecílio, filho de uma mulher linda, que o envergonhava com seu comportamento de mulher livre, já adulto se pergunta: “ por que todos os meninos não merecem ter mãe sem beleza?(...) Mãe mulher sem sexo de cobiça, por que, meu Deus?”
“Lá fora passava o menino que vendia pirulito, que era uma calda sólida em forma de cone comprido, embrulhado em papel barato e anunciado com um apito de madeira, num som que era açúcar, poesia e música em um sopro, “piuí”.”
“ Filadelfo deitado, sem forças, a conversar em inglês sobre prostitutas camaradas que perguntaram por sua saúde, porque as putas são humanas, companheiras, até elas saem dos esquemas rígidos de Jimeralto treze anos depois. Ali, quando estiver na pensão, na clandestinidade.”
E sentindo-se pequeno diante de tudo que vivera, das pessoas daquela Vila da Alegria, Vila Felicidade, Rua Alegre, Rua dos Sete Pecados, constata:
“ Meu Deus, como sou pequeno. Uma página é pouco para mim, ele disse. E a página era a vida em branco que não estava escrita.”
O romance está repleto de passagens líricas como essas, mas me é impossível reproduzir todas aqui, nesta curta resenha. Cabe ao leitor descobri-las.
Ao terminar a leitura, constato que este é, possivelmente, o mais belo romance de Urariano Mota.
Mota, Urariano- O Filho Renegado de Deus,Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2013


domingo, 4 de janeiro de 2015

RECORDANDO ESTEVÃO MIKLOS ARATO, a FNT e a redemocratização - João dos Reis



"Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas".

(Vinicius de Moraes, "Pátria minha")

(Para Alberto Abib Andery, que vive na Casa São Paulo na capital paulistana)


A violência do Estado chegou à educação durante a ditadura militar. A Filosofia foi proibida e eliminada do currículo escolar. Na escola “Thomaz Ribeiro de Lima”, em Caraguatatuba, me atribuíram aulas de várias outras disciplinas. Lecionei durante 5 anos Relações Humanas, Programa de Informação Profissional, Educação Moral e Civica, Cultura Contemporânea, entre outras. Tinha também o cargo de Orientador de EMC – criado pelo regime repressor para “despertar o patriotismo entre os jovens”.

Nos últimos anos no Litoral Norte tive a amizade, o companheirismo de ESTEVÃO MIKLOS ARATO.Paulistano da Vila Anastácio, era filho de imigrantes iugoslavos - viveu a história dos pais, saindo da Europa e de uma nação em crise. Era um adolescente de 16 anos quando foi meu aluno. Inteligente, critico, foi o meu irmão-camarada nesses anos de incertezas.

Conversávamos sobre os rumos da redemocratização no Brasil e na América Latina. Contei a ele do Centro de Direitos Humanos em Osasco, das viagens ao Chile, Argentina, Paraguai. Ele me emprestou o “Querida família”, cartas da prisão de Flavia Schilling. Com ele, um jovem amigo, pude debater política, literatura. Era um grande leitor, e procurei deixá-lo livre para descobrir o mundo dos livros.

Em 1980, perdi todas as aulas para os professores concursados. Como na adolescência, fiquei novamente desempregado, angustiado com o futuro. Albertino Souza Oliva e o grupo da Frente Nacional do Trabalho em Osasco fizeram uma proposta. Criar um projeto de educação popular para a periferia da Região Metropolitana Oeste (Osasco e cidades vizinhas).

Aceitei o desafio de confrontar a ditadura com a arma da conscientização. Tivemos o apoio das Pastorais (de Direitos Humanos, da Juventude, Operária), JOC, ACO, Encontro de Casais com Cristo, Comunidade Kolping, e comunidades eclesiais de base. Durante quase 4 anos, houve um debate mensal, em que convidamos aqueles que estavam marginalizados pela censura e repressão - Florestan Fernandes, Salvador Pires, Dalmo de Abreu Dallari, Waldemar Rossi, Maria Nilde Maschellani, Paulo Schilling, Paul Singer, por exemplo.

Apresentamos também temas para grupos de estudo – sobre Economia, Fé e Política, Educação, Saúde Mental, Filosofia, Psicologia, Comunicação. Alguns deles: Reginaldo C. de Moraes, Antonio Roberto Espinosa, Jorge Baptista Filho, Gabriel Roberto Figueiredo, Padre Agostinho (Marcelo Duarte de Oliveira), Paulo Proscurshim, Jorge Broide, Plinio de Arruda Sampaio, Paulo Freire, Helena Pignatari Werner, Francisco C.Weffort.

Estevão foi prestar o serviço militar em São José dos Campos, eu estava novamente em Osasco - e voltei para a escola pública em 1984. Ele terminou depois o curso de Jornalismo. Mantivemos contato por telefone ou por carta; às vezes combinávamos um encontro. Depois da morte do seu pai, ficou dois anos nos EUA. Na crise do inicio dos anos 90, era ele que esteve desempregado. Em 1999 fui para Curitiba e não tive mais noticias dele; deve ter ido de novo para a sua nova pátria.

Estevão partiu para o Norte, eu para o Sul. Apesar do tempo e da distância, as lembranças do jovem discípulo irrompem na memória e inundam meu coração de saudades.