quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Guarani-Kaiowá à sombra da morte Paulo Roberto da Silva ( texto e fotos)








Um dos maiores povos indígenas do Brasil está sendo dizimado na frente dos nossos olhos, sem que ninguém consiga impedir. Ao longo dos anos foram atacados em todos os aspectos, seja pela expansão agrícola de empresas de capital externo, ou por sojeiros e pecuaristas sem
coração, que enxergam a terra como um grande banco onde podem sacar suas riquezas a hora que quiserem, sem nenhuma contrapartida social; pelo contrário, eles derrubam as matas e as florestas aceleradamente, deixando atrás de si morte e destruição.

Um exemplo disto foi o que aconteceu recentemente com um grupo Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Após uma retomada da terra, no município de Amambai, 40 homens encapuzados entraram na aldeia e mataram o cacique Nísio Gomes, e segundo relatos dos índios, três crianças desapareceram, deixando o Acampamento Guaiviry em desespero.

Os quatros primeiros dias foram de muita privação disse-me o filho do Nísio, para não chamar a atenção dos fazendeiros só comíamos milhos e não acendíamos o fogo para não denunciar nossa presença. E agora, tem comida? pergunto ao Genito, ele me responde que o grupo está padecendo de tudo, sobrevivendo apenas de tilápias, algumas raízes, e um pouquinho de arroz que ainda resta.








Eles passam o dia na mata dando entrevistas a jornais e a canais de TV de vários lugares, pois o fato tornou-se conhecido em todo mundo, devido à barbaridade dos assassinos.

Sensibilizado com esta situação, resolvi fazer uma visita solidária aos kaiowá e para não chegar de mãos vazias comecei a fazer uma campanha para levar leite para as crianças, e assim amenizar um pouco a situação de fome existente na aldeia. Logo no início da campanha, me deparei com um primeiro problema no Face book quando um intelectual de carteirinha me criticou por levar leite em pó e assim descaracterizar a cultura dos kaiowá. Como percebi que ele conhece a questão indígena apenas de literatura que idealiza o índio como puro e intocável, resolvi não dar trela para suas afirmações e fui em frente na campanha do leite.

Em pouco tempo consegui 177 sacos de leite de 400 g , que foram acomodados em duas malas gigantes totalmente lotadas e pesadas. Recebi ajuda de instituições e amigos, em sua maioria religiosos da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, mas tivemos uma ação macroecumênica que uniu pessoas de boa vontade para ajudar na minha viagem.

Eu tinha comigo uma literatura Bíblica que estava em minha casa, um livrinho infantil da SBB (Sociedade Bíblica do Brasil) e alguns exemplares do Novo Testamento que resolvi levar também. Este foi o segundo ponto de conflito, levar a Bíblia para os índios que já foram massacrados por missionários do passado? Não se lembram da cruz e da espada? Da morte da cultura imposta por um deus branco e ocidental? Sabe, né? aqueles discursos já bem batidos pelos historiadores, antropólogos e sociólogos e artistas também...Rs. Como eu sei que a bíblia é uma ferramenta perigosa e pode tanto libertar como escravizar, dependendo de quem a maneja, resolvi arriscar, pois afinal quem conhece o movimento profético de Amós, Miquéias e Isaías, sabe que eles foram homens totalmente comprometidos com as causas sociais dos mais fracos e oprimidos, e que Javé ergue do pó o desvalido e do monturo o necessitado, e dá pão ao que tem fome e viu a opressão dos ricos sobre os pobres.

Lembrei do Deus que Frei Beto, Pedro Casaldáliga, Dom Helder, Dietrich Bonhoeffer, Luther King e Jaime Wright acreditam, e resolvi levar o pão da alma para meus irmãos kaiowá. É bom lembrar que foram dois religiosos que fizeram todo o processo do “Brasil: Nunca Mais”, patrocinado pelo CMI, que há pouco tempo fez a repatriação de toda documentação e a devolveu ao Brasil, através do Rev. Olav Tveit da Noruega.







Voltando à viagem: vi que somente uma força muito grande me fez chegar à aldeia. Há poucos metros da minha casa, a primeira mala deu sinal de que iria me deixar na mão, as rodinhas quebraram e o jeito foi pedir socorro a Risomar que veio para me ajudar a levar até o trem de Osasco na estação Presidente Altino. Subi no elevador e a Riso dando marcha a ré, bate no poste da estação, me deixando com a impressão de que coisas piores iriam acontecer. E aconteceram logo mais na frente, quando desci errado na estação da Lapa e um jovem tentando me ajudar a tirar a mala do trem, arrasta-a entre o trem e a plataforma e a haste que segura a mala se desprende. Voltando a pegar o outro trem desço na Barra Funda e não conseguindo carregar as duas ao mesmo tempo deixo uma perto da catraca e desço para o local da saída do ônibus que me levaria a Guaíra(PR). Volto para apanhar a outra que no trajeto quebra a segunda haste, e daí levo uma mala sem alça.

Finalmente embarco e tomo todo cuidado para o cobrador não pegar nas malas, eu mesmo as colocava no bagageiro, com medo de pagar excesso de peso. Chego a Guaíra e apanho outro ônibus até Mundo Novo ou Novo Mundo e depois para Amambai. Me instalo em um hotel junto da rodoviária e aguardo o dia amanhecer para levar as malas para a aldeia. Tive a ideia de pedir ajuda a um pastor da cidade, disse-lhe que compraria a gasolina e ele me levaria até a aldeia, ele pediu desculpas e disse que cinco fazendeiros fazem parte da sua Igreja, e que politicamente era inviável ele me servir. Os índios são discriminados nas cidades do MS e são vistos como mendigos, vagabundos e invasores de terras.



Na manhã seguinte embarco em um ônibus com destino a Ponta Porã e desço na entrada do Guaiviry. Por sorte havia três rapazes indígenas e uma moça da aldeia no ônibus e levaram as malas até a aldeia, vi que eles deixaram a mala cair várias vezes no trajeto. Que bonito foi ver sair de dentro das matas homens com armas e instrumentos musicais para meu encontro. As mulheres e crianças começaram a dançar e a cantar e logo eu estava totalmente à vontade.
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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Vento do amanhecer em Macambira- Antonio Belo

A primeira vez que li "Vento do Amanhecer em Macambira", foi em 1967. Naquela ocasião, tal como agora, fiz uma leitura contínua e li todo o livro. Não é muita coisa em termos de volume: oitenta páginas de uma narrativa densa e fluente que prende o leitor do início ao fim, não deixando margem para interrupções. Eu, nordestino, sertanejo, senti-me totalmente identificado com o personagem: tornei-me engenheiro e decidi que se tivesse uma filha ela se chamaria Lívia; desejos esses, que consegui realizar. Somente para efeito de aferição de tempo; na leitura de hoje, consumi apenas o conteúdo de duas latas de cerveja, sem ir ao banheiro uma única vez...
O universo onírico do livro retrata um nordeste (sertão) que já não existe mais, coisa que o meu amigo e poeta Alberto Oliveira, com muita propriedade, já falou; mas que pode ser reencontrado, por exemplo, na poesia do Zé Marcolino ou em Jessier Quirino; esse, em tempos atuais.
É claro que, só quem viveu no nordeste pode sentir a densidade narrativa do autor: dá pra sentir o cheiro das velas nas igrejas, bem como o cheiro do mato após a primeira chuva, ou o da poeira na ausência dela.
Isso é ser saudosista? Pode ser...mas, o que vem a ser "saudade"?
Em torno dessa palavra é que se desenvolve toda a magia do livro: O personagem teve um amor na adolescência, cuja lembrança insiste, teimosamente, em voltar; num crescente que implicava em questionar sua própria opção de vida. O velho dilema: " o que sou,o que fiz, o que serei?". "por que é que eu também não fui feliz?" O destino não quis? Ou sou o resultado do que eu próprio escolhi?
A saudade é algo que não se pode traduzir. Não existe sequer no dicionário português (de Portugal). Seria a saudade um sentimento exclusivamente dos brasileiros? Por que será? Um dos momentos mais intrigantes do livro é quando aquele bêbado diz: "Estive pensando no que me disse. Sobre aquela história da gente sentir saudade”... (reticências minhas).
Mas, como definir saudade? Lembrança, somente, não satisfaz. Pois, como disse o poeta Pinto do Monteiro: "Saudade de quem está perto, não é saudade, é lembrança; saudade só é saudade quando morre a esperança".
Basicamente, a lembrança é tudo que envolve um passado, vivido ou não, que a gente recorda e que pode envolver pessoas, tempos, lugares; coisas boas ou ruins, coisas daqui e dali.
A saudade, por outro lado, é o sentimento da tua falta; agora, aqui!
Leia o livro e sinta o que quero dizer.

domingo, 27 de novembro de 2011


“Vento do Amanhecer em Macambira”

O que mais fica na gente
é a sensação das coisas
inacabadas
(risomar)
Enquanto ouço as “Bachianas” de Villa Lobos releio “Vento do amanhecer em Macambira” de José Condé, presente de meu amigo Antonio Belo. São apenas oitenta páginas: um tesouro.
Ouvir música instrumental enquanto leio ou escrevo é um hábito antigo, e não poderia escolher trilha sonora mais adequada. Não sei por quê. Não conseguiria explicar.
Nunca havia lido nada do Condé e a primeira sensação é de deslumbramento. Nenhuma palavra a mais, nenhuma palavra a menos neste romance denso, em que dois polos se opõem: o passado e o presente, a cidade e o sertão, o que se teve e se perdeu.
Um homem vai em busca de um grande amor que ficou no passado, mas não consegue resgatar nem a paisagem, nem a mulher, e na verdade nem ele mesmo, que hoje é outra pessoa, e tudo que pertencia àquele mundo que ele busca está morto.
Na pequena vila um bando de cangaceiros ameaça a calma da cidade, assim como as lembranças ameaçam a vida do engenheiro. Seria ele a mesma pessoa se reencontrasse Lívia?
Ou seriam os cangaceiros uma metáfora do tempo, esse senhor que tudo devora?
Constatamos neste belíssimo romance a força da imaginação de uma pessoa que ainda guarda lembranças de alguém, e que por isso é capaz de trilhar o tênue fio que separa a lucidez da loucura e materializar o ser amado.
Lívia no romance simboliza aquele sonho inacabado que se perdeu ao longo da existência de muitos de nós, e que a vida inteira iremos buscar em um rosto, um jeito de sorrir, o modo de olhar. Busca inútil. A imaginação preenche as lembranças do que, na verdade, é irrecuperável.

E como tão bem disse Bandeira: “a vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Ou como diria Drummond: Lívia “é apenas um retrato na parede”.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Belo, BELO é tecer palavras, é fazer poesia...Risomar Fasanaro

20 de novembro de 2011




Algumas vezes o destino brinca de esconde-esconde com a gente. Alguém nos fala sobre uma pessoa e você não se liga, não dá a mínima importância, não procura conhecê-la, nem sequer faz perguntas sobre ela.
Os anos passam, e um dia, inesperadamente você conhece a pessoa, assim, sem perguntar, sem procurar...Alguém chega perto de você e diz: este é fulano, irmão de fulana...
E você sente o puxão de orelha do Destino colocando diante de você aquela pessoa que será tão especial na sua vida. E você vai descobrir quanto perdeu por não ter conhecido antes quem tem tanto a ver com você.
Descobre que ela ama os índios tanto (ou maquis ) do que você, que se preocupa com os desfavorecidos, que se interessa pelos mesmos assuntos, e que tem aquela espontaneidade, aquele bom humor que você tanto admira, e que de brinde traz até você outras pessoas, e neste caso que estou contando, que é pessoal, o Destino me trouxe um amigo que parece que conheço há cem anos, e de quebra dois poetas.
Como não sou egoísta, divido com vocês os poemas dos dois irmãos, Antonio e Joaquim,e futuramente escreverei sobre meu novo Amigo, Paulo Roberto.
ATENÇÃO: Atendi hoje o desejo de vários leitores que me escreveram querendo daber quem era esse Poeta que gosta de João Cabral e escreve tão bem.








Queria mostrar que não só ele é artista na família, mas que há também JOAQUIM BELO, que vai surpreender vocês, tem PAULO ROBERTO, também poeta e INEZ OLUNDÉ,artista plástica.FUI TRAÍDA PELO ESPAÇO RESTRITO, NÃO PUDE POSTAR A FOTO NEM OS TEXTOS DO jOAQUIM, QUE FICAM PARA A PRÓXIMA SEMANA, talvez por incompetência minha em lidar com a diagramação do Blog. Sim, falta dizer que, modéstia à parte, todos são pernambucanos...rs
Antônio Belo da Silva (na prática, sempre dispensa a acento), nasceu em Custódia, Pernambuco, em 09 de julho de 1948; porém é registrado como nascido em Sertânia, cidade de sua mãe e onde viveu os melhores anos de sua vida. É filho de Augusto Belo da Silva e Julieta Januária da Silva. É o quarto de dez irmãos, dos quais, nove continuam vivos. Viveu até os dezenove anos no interior do sertão de Pernambuco, tendo-se mudado para Recife em início de 1968, para fazer o terceiro ano científico. Cursou engenharia civil na Universidade Católica de Pernambuco (1970-1975) e trabalhou na profissão até 1998, quando se aposentou. No entanto, ainda trabalha, sendo perito criminal e professor do ensino médio (ambos através de concurso público) no estado do Tocantins, onde reside desde 1991. A poesia entrou na sua pauta por acaso. Apesar de gostar de poesia, nunca pensou em escrever, o que somente veio a ocorrer depois dos 30 anos, mesmo assim, esporadicamente. Além de literatura, gosta e admira pintura e música, embora não tenha o dom para a prática dessas artes. Escreve crônicas, poesias e está "ensaiando" escrever uma peça teatral há uns doze anos e nunca tem tempo de concluí-la. Está no terceiro relacionamento conjugal e tem cinco filhos "espalhados" por esses relacionamentos afora... A mudança para o Tocantins deu-se em virtude de trabalho como engenheiro rodoviário, pois o estado estava sendo criado e as estradas eram precárias.

Além de engenharia civil, fez uma Complementação Pedagógia em, Licenciatura em Química (2001/2002), pela Universidade do Tocantins - Unitins e uma Especialização em Metodologia do Ensino Superior - Unitins - 2007/2008, em Palmas-TO.

A mudança para Palmas deu-se por motivo de transferência na função de Perito Criminal, em virtude da qualificação como engenheiro, para a Seção de Engenharia Legal e Meio Ambiente, em virtude da carência de profissionais engenheiros no quadro de peritos do Instituto de Criminalística do estado do Tocantins, pois o concurso dá prioridade da formados em Direito, mesmo em detrimento à qualidade dos serviços periciais. Tenho dito!!! (olha a concordância hein!!!, o texto está na 3ª pessoa!!!). Mas, “Tem dito” não tem a mesma força...







A linguagem do olhar

A linguagem do olhar
Não é coisa desse mundo
Pode nos levar às estrelas
Ou ao abismo profundo.

Não é um idioma
Nem um “fato consumado”
Mas quem lê nas “entrelinhas”
Antecipa o resultado.

O olhar, é o espelho da alma...
Representa aquilo que desejamos fazer
Mas não ousamos dizer...

A magia do olhar
Não está em decidir,
Mas, sobretudo, em sonhar.

03.08.07
00:03h


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Show de Ringo Star Risomar Fasanaro




À porta do Credicard Hall nos preparamos, minha amiga Cira e eu, para viver a grande emoção de assistir ao show de Ringo. Vamos ficar 1:30h esperando que as portas se abram para entrarmos, mas não sinto o menor desânimo, o menor cansaço. Vou rememorar um pedacinho da minha juventude, mesmo sabendo que Ringo tocará poucas composições dos Beatles. Mas antes pouco do que nada, penso.
Uma juventude bonita divide o espaço com a geração dos anos sessenta. Quase todos vestem alguma peça em homenagem ao Ringo, a estrela da noite. Às 19 h abrem as portas e podemos entrar no saguão. Encontramos algumas poltronas e logo fizemos amizade com duas adolescentes, Rafaela e Priscila, que pela segunda vez vieram ao show do ídolo.
Rafaela trouxe uma estrela prateada e um cartaz onde pergunta se ele leu a carta que ela jogou sobre o palco, na noite anterior. Priscila também trouxe um cartaz. As duas declaram seu amor ao ex-Beatle.
A paixão de Rafaela pelos Beatles começou com um trabalho que a professora de inglês pediu sobre os Beatles, nos conta Rafaela, que cursa o ensino medio. A garota pesquisou tudo que encontrou e, é claro, a pesquisa lhe rendeu muitas conversas com a mãe que é fã dos Beatles até hoje.
Fotografamos as duas, e sem que percebêssemos já era hora de entrar e esperar o show.
Ringo Star acompanhado pela All Star Band empolga a plateia que logo se levanta e começa a dançar.
“With a litlle help from my friends”, “Is Don’t come Esy”, são alguns dos sucessos que eles apresentam, mas o que leva a plateia ao delírio é Choose Love”, que o público canta com eles.
Ringo esbanja carisma e simpatia, muito sorridente lê os cartazes que as fãs levantam na plateia: Ringo eu te amo. Sorrindo muito, ele responde cada pergunta, cada declaração, para alegria delas.
Champagne e vinho branco circulam pela plateia. O show está terminando e procuro as duas adolescentes: estão lá na frente, perto do seu ídolo. Quem sabe até consigam falar com ele. No final do show. Quem sabe? Para os jovens, nada é impossível.
São Paulo está naqueles dias em que todas as estações se confundem. Não há calor nem frio, não chove. Enquanto caminhamos até o estacionamento, penso em Ringo, o único Beatle ali no palco, e vou deixando em meus rastros as lembranças do tempo em que colecionava todos os LPs dos Beatles, tentava traduzir todas as letras do grupo, e era tão jovem que pensava que tudo era para sempre.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Meu Caminho - Antonio Belo da Silva

Se um dia
Eu tiver que ceder
Aos caprichos do destino
Chegou a hora,
Podem crer!
A hora de tocar o sino.
Que com certeza não melhora
A parte que por instinto
Forçou-me a percorrer
Metade do meu caminho.
A outra metade eu fiz!
Cometendo ou não, desatino.

Só conheci Pernambuco
Depois de ler João Cabral
Coisas do arco da velha
E da nossa tradição
De Capiba, do Quinteto
E da Orquestra Armorial

Se na minha geração
Eu não comi fruta-pão
Abundante no litoral
Mas, ausente no sertão
É que a charque era pouca
Mal dava pra acompanhar
A cachaça com limão.

Não me banhei
No Rio Capibaribe
Ou águas do litoral
Só em rios de água pouca
Daqueles que,
Sem embornal,
Um burro seca com a boca.

Não percorri os canaviais.
Pés descalços não pisaram
As pedras úmidas do cais...
Só caminhei terras secas
Ausentes de coqueirais
Areias brutas que furam
Como facas e punhais!
As armas dos cangaceiros
Do nordeste e das Gerais
Daqueles tempos distantes,
Que não voltam,
Nunca mais...

Caminho de pedra e areia
E, não raro, de espinho.
Por isso, exijo respeito:
Eu não fiquei,
Estou indo!
E se desacompanhado
Vou seguir,
Mesmo sozinho. Palmas, 20/12/2006 ( 01:12h)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Aniversário do Poeta - Risomar Fasanaro




Os anos escorreram pela ampulheta da memória. Por ela passaram meus sonhos, meus temores, meus anseios. Só não passou essa saudade, essa lembrança, essa falta que você faz.
Hoje especialmente, ao receber o e-mail de meu amigo Romain Leal, (Land), com dois poemas seus, me voltou aquele travo na garganta, o gosto de fruta verde que senti naquela manhã do dia dezoito de agosto de 1987.
Saudade daquilo que nunca tive e que perdi, como dizia um comercial em um velha estação de rádio do Recife. Era o amigo cujas palavras me vinham pelo correio, em um tempo ainda sem internet.
Você havia partido, e mais uma vez eu vivia a terrível sensação da impermanência das coisas a nos pegar sempre descalços, com roupa imprópria, os cabelos desalinhados.
Naquela manhã eu me perguntava o que seria, Drummond, o país sem você? Sem o grande Poeta, quem sabe o maior de todos? O que foi mestre de tantos outros que lhe seguiram os rastros antes de encontrar seu próprio caminho?
Quantos de nós sentiriam o que significava o nunca mais de um novo verso , um novo poema escrito por aquelas mãos? Não sabia, assim como até hoje não sei...
Lembro-me de que naquela manhã. Com aquela incerteza e aquela saudade juntei fotos, revistas, jornais que noticiavam sua morte dentro de uma pasta e guardei-os, sem coragem de lê-los.
Hoje seria seu 109° aniversário... Seria coincidência nascer no dia 31 de outubro aquele que foi um bruxo das palavras?
Neste 31 de outubro procurei nos jornais que nova velha verdade revelariam sobre você, e constatei mais uma vez que este é um país em que a memória é tratada com descaso. Ontem um jornal da “grande imprensa” trouxe um texto sobre você, e dois canais de tevê relembraram seu aniversário, mas um deles apresentou dados incorretos sobre você, e o outro gravou seu nome com um m apenas.
Talvez fosse mais fácil dividir com você, ainda que por carta, a revolta causada pela devastação das nossas florestas, o caos em que se encontra a Saúde, o medo que invadiu nossas escolas, os assassinatos dos que defendem os sem-terra, os sem-teto, a natureza.
Penso o que você diria sobre os assassinatos de Bin Ladin, Saddhan Hussein e Kadaffi, executados sem julgamento algum...
Mas não encontro respostas, o que tenho é o silêncio de sua ausência...

recado - Risomar Fasanaro

teu silêncio me diz
sem mim
é mais feliz

-sangro

mas um dia
viro cicatriz

domingo, 11 de setembro de 2011

"Pra sempre é por um triz" Risomar Fasanaro


Quando Chico Buarque escreveu o lindo verso “pra sempre é por um triz” da canção “Beatriz”
disse tudo. E hoje, 11 de setembro volto a pensar na impermanência de tudo na vida.
Uma palavra maldita mal dita no momento errado pode, e quase sempre abala estruturas e relações que qualquer um consideraria eternas.
Uma observação infeliz, uma frase grosseira, apenas um tom de voz mal colocado, basta isso, e lá se vai o que poderia ser pra sempre.
Volto a pensar nisso hoje, e tento adivinhar os bastidores daqueles dois edifícios. Quantos dos que ali estavam teriam dito ou feito a alguém algo que jamais fariam se soubessem que minutos depois aconteceria aquela tragédia? Se soubessem que não teriam tempo de reparar suas palavras, seus atos?
Uma das lições mais difíceis é viver como se fosse aquele nosso último dia. Não adiar, não deixar para a tarde o que se pode fazer pela manhã.
Adiamos. Adiamos sempre, e assim as horas passam, os dias passam, os meses, os anos, por acreditar que teremos um amanhã, e assim quantas vezes deixamos de falar, de agir, acreditando que outra chance surgirá. Pois é...Muitas vezes aquela é nossa única chance, e quando nos decidimos a recuperar o que perdemos já não há mais tempo.
Recebi ontem, pelo celular, um pensamento que achei valer a pena reproduzi-lo aqui:
“Lembrar que em breve estarei morto é a ferramenta mais importante que já encontrei para me ajudar a tomar grandes decisões. Porque quase tudo- expectativas externas, orgulho, medo de passar vergonha ou falhar- caem diante da morte, deixando apenas o que é importante. Lembrar que você vai morrer é a melhor maneira que eu conheço para evitar a armadilha de pensar que você tem algo a perder. Você já está nu. Não há razão para não seguir o seu coração. ( Steve Jobs).
É isso.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Denúncia : TV não pode denunciar uso de agrotóxicos

http://www.sinpaf.org.br/modules/smartsection/item.php?itemid=518
CNA foge de debate sobre agrotóxicos

Maria Mello

Um episódio estarrecedor marcado pela falta de respeito à democracia e
ao livre debate de ideias provou, mais uma vez, que os ruralistas não
têm como defender o indefensável.

Na tarde desta terça-feira (6/9), um dos representantes da Campanha
contra os Agrotóxicos e Pela Vida no Distrito Federal e integrante do
SINPAF, Vinícius Freitas, participaria da gravação do programa “Meio
ambiente por inteiro”, da TV Justiça, em Brasília, para debater o
problema do aumento do uso dos agrotóxicos no Brasil. Além de
Vinícius, a produção do programa convidou também o integrante da
Confederação da Agricultura e Pecuária no Brasil (CNA) José Mário
Schereiner, para expor a visão da entidade em relação ao tema.

Após serem recebidos pela equipe do programa, os debatedores foram
informados da linha de condução das perguntas. No roteiro da
entrevistadora, a primeira pergunta seria direcionada ao ruralista e
afirmava ser utópica a possibilidade de acabar com o uso de
agrotóxicos no país.

No início da gravação, a jornalista apresentou os participantes e
chamou o VT de um trecho do documentário “O veneno está na mesa”,
recém-lançado pelo cineasta Sílvio Tendler e que ganhou repercussão
nacional, que serviria como pontapé inicial para o debate.

Antes que a transmissão do trecho do filme terminasse, porém, um dos
três assessores de Schereiner que acompanhava a gravação dentro do
estúdio correu até a apresentadora e determinou a interrupção do
andamento do programa. “Não sabíamos que vocês iriam exibir esse
filme, podem parar”, bradou o assistente.

O dirigente ruralista, por sua vez, passou a argumentar de forma
agressiva com a equipe de jornalistas que não continuaria com a
gravação e que não estava ali “para que seus filhos o vissem como
assassino”.

No intuito de garantir o debate, a produção se desculpou e propôs que
a exibição do VT fosse excluída, o que de pronto foi negado por
Schereiner. O grupo deixou o local alegando “insegurança” para
continuar a gravação.

“Lamentamos não ter podido promover um debate saudável sobre um
assunto tão importante para a população. Continuamos à disposição do
programa e da sociedade brasileira para ouvir e argumentar”, afirma
Freitas.

Por fim, o programa não foi gravado, mas a produção do “Meio ambiente
por inteiro” afirmou que pretende convidar novamente o SINPAF para
debater o tema.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

100 anos do General Giap- Sílvio Tendler

O General Vietnamita Giap completou cem anos em 25 de agosto, É o
maior guerreiro do século XX. Professor de história que se tornou
militar para combater os invasores de seu país, derrotou o Japão
(1945), A França (1954) e os Estados Unidos (1975)'
Em entrevista que fiz em 2003 vocês poden vê-lo contando um pouco de
sua história,
Basta acessar "Giap, memórias centenàrias da resistência, no you tube, Sáo
16 minutos que lavam a alma,

Assista aqui
http://youtu.be/Tq8c72PKSC

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Arte e doença Mental




A primeira coisa que quero registrar é que pintura pra mim é puro diletantismo, jamais me considerei pintora. O que levo a serio é a escrita, a pintura é puro desejo de mexer com as cores, com as tintas.e quase sempre uma forma de me fazer feliz.
Agora, analisando à distância no tempo, percebo que minhaa escolha de temas para pintar recai quase sempre em modelos geralmente discriminados: índios, negros, ciganos.
Noto também que durante a doença dos meus pais, minha pintura era sempre em tonalidades de amarelo ocre.
Depois da morte deles minhas telas ficaram mais claras, mais coloridas. Não só isso, ficaram também mais soltas.
Vou colocar aqui fotos dessa telas em minha próxima postagem.Posso intuir o que isso significa, mas não é uma análise psicológica. Isso caberia a um psicólogo ou psiquiatra observar.
Tenho a impressão de que os profissionais de saúde mental obteriam mais sucesso se propiciassem o convívio dos seus pacientes com a arte.
Conheço um psiquiatra que faz isso. Trata-se do meu amigo Dr. Alcides Neves que leva seus pacientes a trabalharem com música. E sua dedicação a esse trabalho é tanta que ele grava o trabalho dos doentes.
Não sei se todos teriam condições de desenvolver um trabalho como esse. Alcides Neves além de ser uma pessoa extremamente sensivel é um grande músico, além de compositor talentoso.
Mas acredito que mesmo não sendo um artista, é possível propiciar aos doentes mentais um tratamento digno, humano, muito melhor que pancadarias e humilhações.
Com a palavra os que concordam ou não...

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

sem título- Risomar Fasanaro


duas xícaras de chá
sobre a mesa
uma está vazia:

-saudade

Pacientes do hospital de Franco da Rocha fogem - Daniel Favero*






Sete pacientes do Hospital de Custódia e Tratamento de Franco da Rocha 1, região metropolitana de São Paulo, fugiram na madrugada de deste sábado após cavarem um buraco. Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), cinco foram recapturados. Ex-funcionários e militantes de entidades de defesa aos diretos humanos denunciam torturas e abusos sexuais contra os pacientes, que deveriam receber tratamento psicológico no local que possui capacidade para 465 pacientes, mas abriga 526.

A SAP informou que a corregedoria administrativa do sistema prisional vai apurar as circunstâncias da fuga. Sobre as denúncias de maus-tratos, a secretaria só deve se pronunciar no decorrer da semana que vem.

Segundo uma ex-funcionária que não quis se identificar, a fuga é resultado de um regime de "terror" que começou a ser implantado com a chegada da nova diretoria comandada por Luiz Henrique Negrão.

Ao invés de aplicar o tratamento aos pacientes, em um local que abriga presos com problemas mentais, ele teria suprimido medidas recreativas aos detentos ou cuidados especiais que as suas doenças requerem, e promovido uma política de presídio com tortura e isolamento dos internos, que estariam prestes a se rebelar.

A funcionária, que trabalhou por mais de 20 anos no local, afirma que os funcionários que não compactuam com o regime de tortura estariam sendo transferidos para presídios comuns, muito mais violentos do que os hospitais de custódia psiquiátricos. Ela afirma que diversos funcionários, inclusive o diretor, já esperavam pela fuga, mas nada foi feito para impedir.

O psiquiatra Paulo Cesar Sampaio, ex-coordenador de Saúde do Sistema Penitenciário, disse que pediu exoneração do Manicômio Judiciário de Franco da Rocha porque a atual administração, apoiada pela Secretaria Administração Penitenciária de São Paulo (SAP), tem promovido torturas e repressão nessas unidades. Esse ambiente teria motivado a fuga, algo que, segundo ele, não acontecia havia mais de 20 anos.

"Pedi exoneração pela forma como estavam tratando os pacientes. Eu sou integrante do Movimento dos Direitos Humanos, e eles querem repressão, tortura espancamento, e não concordo com isso (...) O sistema prisional de São Paulo não está tratando eles como doentes, mas sim torturando, pressionando, querendo afastar da família e isso criou um clima de tensão". Segundo Sampaio, as mulheres estão sendo trancadas por 20 horas diariamente, além de denúncias de espancamentos e abusos sexuais. "As mulheres estão ameaçando de se rebelar porque estão sendo trancadas por 20 horas".

Ele diz que em Franco da Rocha está sendo aplicado o mesmo tratamento que era aplicado aos pacientes do Hospital de Custódia e Tratamento de Taubaté. "Alguns funcionários não aceitam o tratamento de tortura, então, além de punir os pacientes estão punindo os funcionários que não aceitam a tortura".

*Colaborou Maria Clara Dutra, Especial para o Terra.









sábado, 20 de agosto de 2011

Ah! Gilberto Gil perdoe-me! - Wilma Leal de Lyra









Quando Gilberto Gil aceitou o convite para ser Ministro da Cultura juntei-me ao coro dos descontentes sem procurar saber dos seus planos nem dos motivos para o sim, apenas rejeitei o fato.

Durante os anos em que ficou como titular do ministério os ataques vieram de todo lado e o mais emblemático foi o silêncio dos amigos: poucos lhe deram o abraço de que se precisa nas horas de dificuldade e de solidão.

Então, comecei a entender o nó da jogada: o ministério da Cultura é mero apêndice num corpo que não lhe pertence e tanto faz que exista ou não, portanto Gilberto Gil, essa fruta rara, não passou de laranjada em mesa de Whiskie e champanhe, sorvidos entre sorrisos, cochichos ao pé do ouvido e tapinhas nas costas.

Quando pediu pela primeira vez para sair do cargo recebeu a solidariedade política do Presidente, quem sabe tenha entendido como apoio e ficou. Mas a gritaria dos afoitos pelo cargo aumentou o que talvez o tenha feito sentir que estava na hora de limpar as gavetas, levando-o a fazer o segundo pedido para sair que foi ladinamente aceito...

Gil saiu do ministério da forma elegante como entrou, não disse nada e foi para junto da sua Flora buscar um lugar tranqüilo aonde pudesse cuidar da sua paz. Ficou como os pássaros na muda: não piou.

O documentário a que assisti meio por acaso, mesmo sabendo que não existem acasos, me fez parar em frente à TV bem no momento em que o via chegando em Ituaçu- BA , onde passou boa parte da sua infância e um pedaço da juventude. Era um cenário parecido ao do distante Guaporé onde nasci que ficaria conhecido nos versos do belo reagge Vamos Fugir, que compôs.

Meu coração chorou de saudade e de vergonha.

De saudade porque só num papo entre negros é possível entender certos sinais de uma linguagem cifrada, repleta de mungangos, pantins e patifumês

Possivelmente essa afirmação seja entendida pelos eternos contestadores do nada para coisa nenhuma, como um pensamento racista ao inverso: a de que seja preciso ter uma porcentagem de negritude, para entrar em roda de samba.

Não me importa, no momento o que conta é que Gilberto Gil com toda a sua majestade aceite o meu pedido de perdão e me ofereça um lugarzinho na roda de samba onde eu possa dançar toda a negritude escondida durante tantos anos dentro de mim acompanhada pelos irmãos planetários de todas as cores, sempre chamados por ele em suas músicas.

Quem sabe as lágrimas de vergonha por ter deixado tão longe o dendê, o samborocô, o batuque, o mingau de banana e tantas delícias afro-brasileiras se transformem em chuva que regará a sementeira do CONHECIMENTO tão necessário a um povo que só precisa de uma coisa: saber da sua história e do orgulho de ter orgulho dela.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

poema para Che Guevara Risomar Fasanaro


eu vi o rio que viu
o Che nascer
eu vi o rio que viu
o Che crescer
meus olhos mergulharam
nas águas daquele rio
desde então
sempre que penso em Che
elas teimam em desaguar

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

68: a Geração que queria mudar o mundo - Risomar Fasanaro

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Recebi e estou lendo “68: a Geração que queria mudar o mundo”, obra editada pela Comissão de Anistia e pelo Ministério da Justiça.
Esperei por esse livro tal qual a personagem de “Felicidade Clandestina”, conto de Clarice Lispector, em que a menina, personagem central, ao ter entre as mãos “Reinações de Narizinho” de Lobato, deixa de ser menina e, nas palavras da Autora, passa a se sentir mulher, uma mulher com seu amante.
Pois é, “uma mulher com seu amante”. É assim que me sinto, tal a excitação, que me toma da cabeça aos pés, ou “do cóccix até o pescoço”, como diria Elza Soares, tal o desejo de devorar aquela obra.
São 687 páginas, e embora já tenha lido metade do livro, a sede não passa. É sede de retirante quem sabe de lobo no deserto.
Edição muitíssimo bem cuidada, a obra é dividida em tópicos, o que possibilita uma leitura a partir do meio, do fim, ou quem sabe, aos mais organizados e menos ansiosos, do início ao final. É o que não faço. Começo pelos autores que conheço, pelos títulos que me atraem mais, embora todos me atraiam. Mas vamos lá. Mesmo este comentário deixando a desejar por ser incompleto, não resisto à tentação de passar minhas impressões sobre tantos textos reveladores e interessantes.
Nesta obra caleidoscópica, textos dramáticos convivem com outros em que a ternura, a solidariedade, e não poucas vezes o humor, nos levam a chorar e a rir, e quando isso acontece, amenizam as lembranças do que vivemos.
Acredito que nunca mais o mundo terá uma geração como a nossa. E com isso não quero desmerecer a juventude atual. Apenas constatar que a situação que vivemos exigiu aquele tipo de atuação. Não concordo com os que dizem que a juventude de hoje é alienada e nada faz. Apenas vejo que os interesses e os objetivos são outros.
Mas voltando ao livro: nele encontrei textos para ler e reler muitas vezes. Começaria pelo do poeta pernambucano Marcelo Mário que escreveu sobre o líder camponês Francisco Julião, e diz que ele era “o único a levar a multidão às ovações”. E mais adiante comenta que Julião era poeta, e pura poesia eram seus discursos. O líder utilizava em suas falas metáforas e comparações que tinham a ver com sua vivência de camponês, e assim se fazia compreender tanto pelo intelectual como pelo homem do povo. Belíssimo o texto de Marcelo Mário.
Logo adiante “Geração 68 e avalanche Cultural”, de Leôncio de Queiroz”. O autor relembra que a de 68 foi a geração que leu Monteiro Lobato, e completo: a figura de Emília se eternizou em cada um de nós, e é ela que até hoje nos cutuca quando nos vemos diante de alguma injustiça.
Leo faz justiça aos governos Juscelino e Jango, além do curtíssimo período do Jânio, quando diz que foram “os de mais fecunda criação artística e cultural no Brasil”. E relembra que foi durante aqueles anos que surgiu o cinema novo, os grandes compositores, escritores, os grandes nomes do teatro e da arquitetura, além do destaque que dá aos geógrafos e educadores. Nunca mais o país foi o mesmo. Sim, nossa geração não apenas quis, ela conseguiu mudar muita coisa no mundo.
Dos mais importantes esse registro do Léo, pois não se faz uma revolução só com armas, mas também, e principalmente, com Arte. E ele reconhece isso.
Mais adiante me deparo com o depoimento de Affonso Henriques G. Correa, em “Agitação no Salão de Tortura” que nos leva às lágrimas ao contar que na autópsia de Virgílio Gomes da Silva, preso assassinado pela repressão, consta que todos os ossos foram quebrados, e todos os órgãos danificados. Apenas um ficou intacto: o coração. Hoje quando emoção e sensibilidade parecem estar fora de moda, é bom parar a leitura, descansar o livro sobre a mesa, e refletir.
É de Ivan Cavalcanti Proença um dos mais belos textos da obra. “Aquele Primeiro de Abril”, saído das mãos de um mestre da escrita, a que se alia a emoção do que registrou. É preciso não perder uma palavra, uma vírgula desse texto, ler as entrelinhas, e saber a que leva a dignidade de um homem quando toma uma decisão que irá mudar para sempre sua vida.
Mas tem também os textos com um humor leve, deliciosos, que se mescla à tristeza, nas palavras de Inês Oludé da Silva ao relembrar, em um deles, o amigo que fingia estar sempre a morrer. Inês nos prende do início ao fim do seu relato.
E há o maravilhoso “Paissandu e Oklahama” de Eliete Ferrer, que coordenou a publicação do livro. Tenho a impressão de que poderia ser assinado por qualquer um de nós. Foi a sensação que tive, tão bem ela retrata o modo de viver da nossa geração. É só trocar os nomes dos bares, os endereços das repúblicas, os nomes dos amigos, e teremos o mesmo clima, as mesmas casas, os mesmos bares, as mesmas faculdades...Belíssimo texto.
Vou ao texto do Velso Ribas que escreveu sobre seu pai . Que saudade me deu das suas mensagens ao Grupo “osamigosde68”. Não cheguei a conhecê-lo pessoalmente, embora tenha ido ao hospital visitá-lo dois dias antes de seu falecimento, e o reencontro nesse texto que me levou às lágrimas, não sei se pelo pai, não sei se pelo filho.
Mas é impossível parar sem ler o que Urariano escreveu. Em todos se revela a sensibilidade do autor. A mão do mestre a relembrar os amigos e as situações vividas com eles.
Uma das coisas a me chamar mais a atenção é o sentimento de amizade que perpassa nas páginas do livro. Em quase todas nas lembranças que revivem existe a presença de algum amigo. Alguns não falam de suas dores, mas sim do que presenciaram de sofrimento em alguém.
Sinto uma ponta de tristeza ao constatar que Sílvio Tendler não conseguiu realizar seu primeiro filme aos 18 anos, por culpa da repressão. Que as filmagens de João Cândido que ele confiara a uma pessoa, foram queimadas por medo da repressão. Perdemos com isso as últimas palavras do almirante negro, que já bem doente deu sua última entrevista ao hoje nosso grande cineasta.
No depoimento de Roque Aparecido da Silva revivo a greve de Osasco de 68, que acompanhei de perto na época. Situações difíceis que o autor superou driblando a polícia. Ora trocando de nome, ora fingindo que sua mulher na época, Ana Maria Gomes, desconhecia sua participação.
E há o relato de Lao, que narra a sua cerimônia de casamento em 1970, escondendo dos familiares sua participação na luta contra a ditadura, e falando das marcas que a ditadura lhe deixou, a ponto de até hoje sentir dificuldade de visitar o Memorial da Resistência.
Há os belos textos de Pedro Viegas, herói do movimento dos Marinheiros. Em um deles, "Operação Salvamento" ,conta uma passagem em que ele era um dos que precisaram resgatar um companheiro de luta sob a suspeita do resgatado, que achava estar sendo levado por inimigos. Texto que mostra bem o clima de desconfiança existente nas relações, e como para salvar o amigo ele enfrentou aquelas suspeitas.
Há ainda o belo texto de Luzia Jakomeit e seu Natal solitário e triste que de repente se ilumina. Grande escritora, Memélia mais uma vez se revela nesse texto.
Mas o livro não traz apenas textos em prosa. De repente em meio às paginas nos deparamos com “Claros Sonâmbulos da noite”, a belíssima canção do Exílio de Guilem Rodrigues da Silva, em que vê na pátria distante a mulher amada que se é forçado a abandonar.
Continuo lendo a obra aleatoriamente. Em cada página encontro um motivo para recordar, me emocionar, me entristecer, me revoltar...e também para rir.
Vou ler todos os textos. Não perderei nenhuma vírgula, nenhum espaço. E cada vez mais me convenço: que linda é a história da nossa Geração!

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Grafite + poema de Risomar Fasanaro


Este mural com um poema de Risomar Fasanaro está na Escola de Artes "César Salvi", foi grafitado por Dingos e companheiros do Chile e de Osasco
,SP

O poema:

a vida inteira cavei
o chão em busca de estrelas
sem saber que me bastava
olhar o ceu para vê-las
***

terça-feira, 19 de julho de 2011

domingo, 10 de julho de 2011

Carrego comigo

Carrego comigo a folha de acácia que o vento depositou em teus cabelos naquela tarde de outono, e você nem percebeu. Carrego comigo aquele Cd que ouvimos tantas vezes que se estragou. Guardo ainda um guardanapo de papel com o primeiro poema que te escrevi. Está manchado de batom, mas me recuso a jogá-lo no lixo.

Carrego comigo aquele postal que você me enviou de Paris, já está amarelado,  um pouco amassado, mas a emoção está lá. Faz tantos anos...Também ficaram algumas folhas de canson com minhas  tentativas de te desenhar. São sombras, são rascunhos, são perdidas recordações, inutilidades dirias, coisas de gente  que guarda tudo, como dizias que  eu era. Sim, são inutilidades que já não cabem no mundo de hoje. Quem sabe um dia eu venha a escanear tudo arquive no computador, e jogue os originais.   
Ainda assim há tanta coisa: colares, botons, livros, talismã vindo da Guatemala, mas o principal, o que ficou, aqui não falarei, está dentro de mim não me disponho a revelar. 

sábado, 9 de julho de 2011

Apocalípse no Sertão - Risomar Fasanaro





A mãe serviu a sopa de palavras e toda a família tomou-a em silêncio. Era noite. Uma noite de névoa e trevas. Tão escura que os escombros da vida se escondiam entre as frestas do silêncio. Por isso, nem o pai nem os filhos perceberam que ela lhes servira o que de último lhe restara: palavras.

O pai voltava mais uma vez dos longos túneis de suas buscas, sem encontrar sequer a si mesmo. De todos os males, talvez o desemprego fosse  para ele  o de menor importância.

Todos tomaram a sopa e foram dormir. No meio da madrugada, um dos filhos  passou mal; suava frio e sentia dores abdominais. Só poderia ser consequência  daquela sopa, pensou a mulher. E se nem isso pudessem mais comer, o que seria da família?

Resolveu que no dia seguinte iria escolher melhor as palavras, lavá-las muito bem; quem sabe ficara alguma impureza e por isso o pequeno passara mal?

Serviu um chá ao filho que logo melhorou e voltou a deitar-se, pensando no que prepararia para o almoço do dia seguinte. Não permitiria que suas revoltas substantivas, nem as (des) conjunções da vida prejudicassem sua grande descoberta.

Agora, mais segura, poderia dar-se ao luxo de demorar-se nessa escolha, de aprimorar suas receitas. E foi então que escolheu a palavra de que mais gostava: saudade. Por certo, uma palavra tão bonita não faria mal a ninguém.

Tomou-a  entre as mãos, sentindo a maciez e a doçura que dela emanavam. Lavou-a bem, deixando que reluzisse ao sol cada curva, cada haste das letras que a compunham. Depois a temperou com sal e limão, e sozinha, colocou-a na boca e saboreou cada letra, cada sílaba. Sentiu-a fria na boca, e quando tentou  engoli-la, foi como se  de repente ela crescesse, formasse um nó, um travo na garganta.  Fez força e conseguiu que  passasse pela garganta, provocando no mesmo instante um frio, um peso no estômago que lhe tomou o peito,  com travo de fruta verde.

Algum tempo depois o mal estar passou, mas quando menos esperava voltou a sentir o nó na garganta e uma dor no peito dificultando-lhe a respiração, como se fosse morrer. Sentiu medo. Ainda bem que experimentara antes de servi-la ao marido e aos filhos. E pensou: se depender de mim, jamais eles comerão isso.

Já não sabia o que cozinhar, mas decidiu insistir, já que nada havia para comer, até encontrar uma forma de servir as palavras de modo que não fizessem mal.

Escolheu os vocábulos attonitta, inamorare, inodio e acumene. Com uma faca bem afiada, provocou aférese em todas elas. Depois, lavou-as bem em uma bacia de ágata que ganhara de uma ex-patroa, cozinhou-as com sal, pôs coentro e serviu à família.

Mesmo com todos esses cuidados, algumas palavras ainda eram indigestas, e no final da tarde o marido estava com febre. Foi aí que ela resolveu podar, limpar todas as arestas, provocando síncope, crase, haplologia e sinalefa. Ia cortando tudo e de malu fez mal, de amare fez, amar e continuou com lepore, manica, liberare, atroce, legale, dolore, rodador, idolatria...

O dia e a noite transcorreram tranquilos. A família, enfim, acostumara-se à nova alimentação, e como já não recolhia os restos da feira, passou a ser motivo de curiosidade na favela. O que estava acontecendo? Alguém estaria  lhes doando alimentos?

A mulher, sem nenhum mistério, contou o que descobrira, e ante a descrença dos vizinhos, explicou como preparava os alimentos. Ali mesmo explicou às outras mulheres como fazer um refogado de dígrafos, com molho de consoantes.

É claro que ela não dava aos ingredientes os mesmos nomes que eles receberam dos gramáticos. Jamais em toda sua vida tivera entre as mãos uma gramática, muito menos histórica. Se lhe dissessem que servira metaplasmos à família, por certo  ficaria horrorizada, ou riria...

-Mas onde a gente encontra esses negócios? Perguntaram-lhe os vizinhos.

-Ora, e vocês não sabem?

Depois de ensinar onde buscar palavras advertiu:

-Vão com cuidado. Comecem do jeitinho que eu  falei. Primeiro a, e, i, o, u. As palavras, às vezes são muito perigosas...

Façam sopa primeiro só com  a,e,i,o,u, depois usem as outras letras, vão juntando, e só depois de bem acostumados, usem palavras. Primeiro as pequenas, depois as  grandes, ouviram? Vão cortando, limpando, depois de um tempo vão poder comer qualquer uma. Nada mais vai fazer mal a vocês.

A partir daquele dia, os estômagos da favela acostumaram-se àqueles novos alimentos. Alguns dentro de pouco tempo puderam dar-se ao luxo de comer palavras que haviam sofrido prótese, epêntese, paragoge e anaptixe.

Tudo corria bem, nem mesmo a polícia apareceu durante vários dias. E assim continuaria se um incidente  não viesse atrapalhar a vida daqueles moradores. É que alguns políticos resolveram realizar ali um comício. Os moradores aguardavam ansiosos aquele evento.

E finalmente chegou o dia. Vieram os candidatos às eleições para deputado, senador, e até, um ao governo do Estado.

O comício teve início às dezessete horas, mas desde as oito as pessoas começaram a chegar com suas sacolas, para guardar lugar. Postaram-se em frente ao palanque à espera deles. Houve empurrões, xingamentos e provocações, desde o início da aglomeração. Todos queriam ficar bem na frente, na primeira fila.

Um garoto com ginga e feição de quem não perde uma briga por nada desse mundo, gritava:

- Eu vou ficar é aqui, na fila do gargarejo. E quero ver se tem valente aqui que me tire. E enquanto dizia isso, deixava que reluzisse ao sol o brilho de uma peixeira.

Quando  os candidatos chegaram e viram todos aquela multidão reunida, gritando e pulando, ficaram maravilhados, pois se há coisa que político gosta é de ver  é plateia para seus discursos. Era preciso saber quem era o cabo eleitoral que organizara tão bem aquele comício.

Subiram ao palanque, e deram início aos discursos. Um deles dizia:

- Exigiremos do governo federal uma reforma tributária e um rígido controle dos juros. Não permitiremos que se comprometa o crescimento.

Logo depois outro dizia:

- Jamais permitiremos que a crise nos alcance. Ela que fique por lá, pelos Estados Unidos, pela Europa, aqui ela não entra. Nosso povo não merece e não quer mais sofrer, e a vontade do povo é soberana. Pelo povo, tudo sacrificaremos. Cortaremos até nossa própria carne, se preciso for!

Em seguida, o que pretendia o cargo de governador do Estado, um  sujeito magrinho, raquítico, inflamava-se todo e, na ponta dos pés, e gesticulando muito, prometia:

-Nenhuma criança ficará sem escola, e as secretarias da saúde e da Educação irão receber, no meu governo, as maiores verbas do orçamento do estado. Nenhuma  criança ficará sem escola. NE-NHU-MA, eu repito. Este é um compromisso que eu assumo e que vocês poderão cobrar lá no Palácio. Sim, porque serei eleito, com toda certeza, e então, meus amigos, farei daquele palácio a casa do povo, onde as portas estarão sempre abertas, para recebê-los!

As pessoas pulavam, gritavam agarravam as palavras, as frases e as guardavam nas sacolas. Algumas eram tão espertas, que conseguiam alcançar parágrafos inteiros.

Os oradores estavam eufóricos com aquele público tão vibrante, e que manifestava seu entusiasmo com as mãos, os pés, o corpo todo. E continuavam os discursos:

-Vamos restaurar a tranquilidade. Não haverá mais seca, pois construiremos um açude a cada quilômetro deste município. Também não haverá enchentes, pois não permitiremos que vocês percam seus pertences, suas casas, seus familiares. Para isso temos projetos de abastecimento de água durante o verão e de escoamento da água na época das chuvas.

Com  voz forte, um candidato a deputado estadual dizia:

-Vamos restaurar a tranquilidade. A população não sofrerá mais ataques de bandidos. Para isso nosso governador aqui presente já assumiu que colocará centenas de policiais  nas ruas...

Uma velhinha sentada à porta de um armazém murmurou baixinho: mas aqui nunca houve ataque de bandidos...

Lá embaixo, o público se engalfinhava:

-Sai daí, seu vagabundo, essa população aí eu vi primeiro. Num toma não. É minha, dá aqui. E puxava a palavra pela cedilha, tomando-a do outro.

-Conversa, seu filho da puta, eu é que vi primeiro e já tinha até enfiado na sacola.. Num dou mesmo!

-E você  aí, vai ficar dando chute em mim, vai? Tomou a inflação que eu tinha agarrado no começo do comício e agora ainda quer o crescimento, é?

-Cuidado, sua ordinária, não vem me dando soco não. Passa o tempo todo dormindo e agora quer tirar o atraso, é? O controle é meu.

- Eu peguei pra fazer um omelete pro meu menino que tá com vontade faz dias...Sai daí, já avisei. Eu te dou um chute nesse bucho que tu vai ver!

-Por que tu não pegou os policiais que caíram ainda há pouco nos teus pés? Tu tava bem embaixo do homem que tava falando nele...

-Tu pensa que eu sou besta, é? Pega tu, seu lazarento!

Em poucos minutos a confusão era tamanha, que não era possível entender mais nada do que se dizia no palanque. A pancadaria foi tão grande que atingiu também os políticos, e esses tentaram com seus seguranças, controlar a situação. Inútil. Todos se agrediam, e de longe só se enxergava a poeira correndo solta.

A velhinha que estava na porta do armazém, quando viu que um dos oradores estava caído, criou coragem  e foi devagarinho até o palanque,  enfiou a mão na boca do candidato, e conseguiu recolher ainda  quentinhas , e molhadas de saliva o parágrafo inteiro:

-Puta merda, que miséria! Bando de marginais! Tinha que ter trazido mais seguranças. Pra essa corja, só no pau!

A velhinha, ainda apanhou mais algumas palavras daquele discurso do homem ferido, que escorreram pela terra, envolveu-as no avental, já que não levara sacola, por considerar-se incapaz de concorrer com os jovens no recolhimento das palavras. Depois desceu calmamente, rindo muito, e seguiu o caminho, para o seu mocambo, com seu almoço do dia seguinte garantido.

O restante do povo continuou ainda brigando, e já era madrugada quando a polícia chegou e levou muita gente presa.

 Uns apresentavam hematomas, outros sangravam e apresentavam fraturas. Clareava o dia quando os menos atingidos voltaram para casa.

No dia seguinte, todos, mesmo os detidos na noite anterior, felizes com a abundância, trocavam receitas pelas ruas da cidadezinha. Esquecidos das brigas, como se nada houvesse acontecido. Um dia de felicidade e fartura.

A lua começava a subir no horizonte quando as primeiras pessoas começaram a passar mal: vômitos, diarreia, convulsões, e uma fortíssima erupção no corpo todo. Em pouco tempo todos no pequeno lugarejo tinham sido atingidos.

Chamaram o único médico do lugar que, sozinho, não conseguiu atender a todos. Vieram ambulâncias da capital e dos municípios vizinhos. Conduziram os doentes aos hospitais da região que ficaram lotados com tantos pacientes. Entre os muitos internados 134 morreram, embora os jornais noticiassem  a morte de 27. Entre os mortos estavam a velhinha do avental e a primeira mulher que descobrira as receitas e ensinara a todo o lugarejo que era possível se alimentar com palavras.

Contudo, o mistério permaneceu: como é que pessoas tão fortes, acostumadas a comer até os restos  que recolhiam das feiras, tinham morrido tão rápido?

Para os médicos aquelas pessoas tinham sido vítimas de algum vírus desconhecido, e embora os cientistas tivessem  pesquisado muito, jamais descobriram o que causara a intoxicação e a morte de tantas pessoas...

Apocalípse no Sertão - Risomar Fasanaro

A mãe serviu a sopa de palavras e toda a família tomou-a em silêncio. Era noite. Uma noite de névoa e trevas. Tão escura que os escombros da vida se escondiam entre as frestas do silêncio. Por isso, nem o pai nem os filhos perceberam que ela lhes servira o que de último lhe restara: palavras.



O pai voltava mais uma vez dos longos túneis de suas buscas, sem encontrar sequer a si mesmo. De todos os males, talvez o desemprego fosse  para ele  o de menor importância.



Todos tomaram a sopa e foram dormir. No meio da madrugada, um dos filhos  passou mal; suava frio e sentia dores abdominais. Só poderia ser consequência  daquela sopa, pensou a mulher. E se nem isso pudessem mais comer, o que seria da família?



Resolveu que no dia seguinte iria escolher melhor as palavras, lavá-las muito bem; quem sabe ficara alguma impureza e por isso o pequeno passara mal?



Serviu um chá ao filho que logo melhorou e voltou a deitar-se, pensando no que prepararia para o almoço do dia seguinte. Não permitiria que suas revoltas substantivas, nem as (des) conjunções da vida prejudicassem sua grande descoberta.



Agora, mais segura, poderia dar-se ao luxo de demorar-se nessa escolha, de aprimorar suas receitas. E foi então que escolheu a palavra de que mais gostava: saudade. Por certo, uma palavra tão bonita não faria mal a ninguém.



Tomou-a  entre as mãos, sentindo a maciez e a doçura que dela emanavam. Lavou-a bem, deixando que reluzisse ao sol cada curva, cada haste das letras que a compunham. Depois a temperou com sal e limão, e sozinha, colocou-a na boca e saboreou cada letra, cada sílaba. Sentiu-a fria na boca, e quando tentou  engoli-la, foi como se  de repente ela crescesse, formasse um nó, um travo na garganta.  Fez força e conseguiu que  passasse pela garganta, provocando no mesmo instante um frio, um peso no estômago que lhe tomou o peito,  com travo de fruta verde..



Algum tempo depois o mal estar passou, mas quando menos esperava voltou a sentir o nó na garganta e uma dor no peito dificultando-lhe a respiração, como se fosse morrer. Sentiu medo. Ainda bem que experimentara antes de servi-la ao marido e aos filhos. E pensou: se depender de mim, jamais eles comerão isso.



Já não sabia o que cozinhar, mas decidiu insistir, já que nada havia para comer, até encontrar uma forma de servir as palavras de modo que não fizessem mal.



Escolheu os vocábulos attonitta, inamorare, inodio e acumene. Com uma faca bem afiada, provocou aférese em todas elas. Depois, lavou-as bem em uma bacia de ágata que ganhara de uma ex-patroa, cozinhou-as com sal, pôs coentro e serviu à família.



Mesmo com todos esses cuidados, algumas palavras ainda eram indigestas, e no final da tarde o marido estava com febre. Foi aí que ela resolveu podar, limpar todas as arestas, provocando síncope, crase, haplologia e sinalefa. Ia cortando tudo e de malu fez mal, de amare fez, amar e continuou com lepore, manica, liberare, atroce, legale, dolore, rodador, idolatria...



O dia e a noite transcorreram tranquilos. A família, enfim, acostumara-se à nova alimentação, e como já não recolhia os restos da feira, passou a ser motivo de curiosidade na favela. O que estava acontecendo? Alguém estaria  lhes doando alimentos?



A mulher, sem nenhum mistério, contou o que descobrira, e ante a descrença dos vizinhos, explicou como preparava os alimentos. Ali mesmo explicou às outras mulheres como fazer um refogado de dígrafos, com molho de consoantes.

É claro que ela não dava aos ingredientes os mesmos nomes que eles receberam dos gramáticos. Jamais em toda sua vida tivera entre as mãos uma gramática, muito menos histórica. Se lhe dissessem que servira metaplasmos à família, por certo  ficaria horrorizada, ou riria...



-Mas onde a gente encontra esses negócios? Perguntaram-lhe os vizinhos.



-Ora, e vocês não sabem?



Depois de ensinar onde buscar palavras advertiu:



-Vão com cuidado. Comecem do jeitinho que eu  falei. Primeiro a, e, i, o, u. As palavras, às vezes são muito perigosas...

Façam sopa primeiro só com  a,e,i,o,u, depois usem as outras letras, vão juntando, e só depois de bem acostumados, usem palavras. Primeiro as pequenas, depois as  grandes, ouviram? Vão cortando, limpando, depois de um tempo vão poder comer qualquer uma. Nada mais vai fazer mal a vocês.



A partir daquele dia, os estômagos da favela acostumaram-se àqueles novos alimentos. Alguns dentro de pouco tempo puderam dar-se ao luxo de comer palavras que haviam sofrido prótese, epêntese, paragoge e anaptixe



Tudo corria bem, nem mesmo a polícia apareceu durante vários dias. E assim continuaria se um incidente  não viesse atrapalhar a vida daqueles moradores. É que alguns políticos resolveram realizar ali um comício. Os moradores aguardavam ansiosos aquele evento.

E finalmente chegou o dia. Vieram os candidatos às eleições para deputado, senador, e até, um ao governo do Estado.

O comício teve início às dezessete horas, mas desde as oito as pessoas começaram a chegar com suas sacolas, para guardar lugar. Postaram-se em frente ao palanque à espera deles. Houve empurrões, xingamentos e provocações, desde o início da aglomeração. Todos queriam ficar bem na frente, na primeira fila.



Um garoto com ginga e feição de quem não perde uma briga por nada desse mundo, gritava:



- Eu vou ficar é aqui, na fila do gargarejo. E quero ver se tem valente aqui que me tire. E enquanto dizia isso, deixava que reluzisse ao sol o brilho de uma peixeira.



Quando  os candidatos chegaram e viram todos aquela multidão reunida, gritando e pulando, ficaram maravilhados, pois se há coisa que político gosta é de ver  é plateia para seus discursos. Era preciso saber quem era o cabo eleitoral que organizara tão bem aquele comício.



Subiram ao palanque, e deram início aos discursos. Um deles dizia:



- Exigiremos do governo federal uma reforma tributária e um rígido controle dos juros. Não permitiremos que se comprometa o crescimento.



Logo depois outro dizia:



- Jamais permitiremos que a crise nos alcance. Ela que fique por lá, pelos Estados Unidos, pela Europa, aqui ela não entra. Nosso povo não merece e não quer mais sofrer, e a vontade do povo é soberana. Pelo povo, tudo sacrificaremos. Cortaremos até nossa própria carne, se preciso for!



Em seguida, o que pretendia o cargo de governador do Estado, um  sujeito magrinho, raquítico, inflamava-se todo e, na ponta dos pés, e gesticulando muito, prometia:



-Nenhuma criança ficará sem escola, e as secretarias da saúde e da Educação irão receber, no meu governo, as maiores verbas do orçamento do estado. Nenhuma  criança ficará sem escola. NE-NHU-MA, eu repito. Este é um compromisso que eu assumo e que vocês poderão cobrar lá no Palácio. Sim, porque serei eleito, com toda certeza, e então, meus amigos, farei daquele palácio a casa do povo, onde as portas estarão sempre abertas, para recebê-los!



As pessoas pulavam, gritavam agarravam as palavras, as frases e as guardavam nas sacolas. Algumas eram tão espertas, que conseguiam alcançar parágrafos inteiros.



Os oradores estavam eufóricos com aquele público tão vibrante, e que manifestava seu entusiasmo com as mãos, os pés, o corpo todo. E continuavam os discursos:



-Vamos restaurar a tranquilidade. Não haverá mais seca, pois construiremos um açude a cada quilômetro deste município. Também não haverá enchentes, pois não permitiremos que vocês percam seus pertences, suas casas, seus familiares. Para isso temos projetos de abastecimento de água durante o verão e de escoamento da água na época das chuvas.



Com  voz forte, um candidato a deputado estadual dizia:



-Vamos restaurar a tranquilidade. A população não sofrerá mais ataques de bandidos. Para isso nosso governador aqui presente já assumiu que colocará centenas de policiais  nas ruas...



Uma velhinha sentada à porta de um armazém murmurou baixinho: mas aqui nunca houve ataque de bandidos...



Lá embaixo, o público se engalfinhava:



-Sai daí, seu vagabundo, essa população aí eu vi primeiro. Num toma não. É minha, dá aqui. E puxava a palavra pela cedilha, tomando-a do outro.



-Conversa, seu filho da puta, eu é que vi primeiro e já tinha até enfiado na sacola.. Num dou mesmo!



-E você  aí, vai ficar dando chute em mim, vai? Tomou a inflação que eu tinha agarrado no começo do comício e agora ainda quer o crescimento, é?



-Cuidado, sua ordinária, não vem me dando soco não. Passa o tempo todo dormindo e agora quer tirar o atraso, é? O controle é meu.



- Eu peguei pra fazer um omelete pro meu menino que tá com vontade faz dias...Sai daí, já avisei. Eu te dou um chute nesse bucho que tu vai ver!



-Por que tu não pegou os policiais que caíram ainda há pouco nos teus pés? Tu tava bem embaixo do homem que tava falando nele.......



-Tu pensa que eu sou besta, é? Pega tu, seu lazarento!



Em poucos minutos a confusão era tamanha, que não era possível entender mais nada do que se dizia no palanque. A pancadaria foi tão grande que atingiu também os políticos, e esses tentaram com seus seguranças, controlar a situação. Inútil. Todos se agrediam, e de longe só se enxergava a poeira correndo solta.



A velhinha que estava na porta do armazém, quando viu que um dos oradores estava caído, criou coragem  e foi devagarinho até o palanque,  enfiou a mão na boca do candidato, e conseguiu recolher ainda  quentinhas , e molhadas de saliva o parágrafo inteiro:



-Puta merda, que miséria! Bando de marginais! Tinha que ter trazido mais seguranças. Pra essa corja, só no pau!



A velhinha, ainda apanhou mais algumas palavras daquele discurso do homem ferido, que escorreram pela terra, envolveu-as no avental, já que não levara sacola, por considerar-se incapaz de concorrer com os jovens no recolhimento das palavras. Depois desceu calmamente, rindo muito, e seguiu o caminho, para o seu mocambo, com seu almoço do dia seguinte garantido.



O restante do povo continuou ainda brigando, e já era madrugada quando a polícia chegou e levou muita gente presa.



 Uns apresentavam hematomas, outros sangravam e apresentavam fraturas. Clareava o dia quando os menos atingidos voltaram para casa.



No dia seguinte, todos, mesmo os detidos na noite anterior, felizes com a abundância, trocavam receitas pelas ruas da cidadezinha. Esquecidos das brigas, como se nada houvesse acontecido. Um dia de felicidade e fartura.



A lua começava a subir no horizonte quando as primeiras pessoas começaram a passar mal: vômitos, diarreia, convulsões, e uma fortíssima erupção no corpo todo. Em pouco tempo todos no pequeno lugarejo tinham sido atingidos.



Chamaram o único médico do lugar que, sozinho, não conseguiu atender a todos. Vieram ambulâncias da capital e dos municípios vizinhos. Conduziram os doentes aos hospitais da região que ficaram lotados com tantos pacientes. Entre os muitos internados 134 morreram, embora os jornais noticiassem  a morte de 27. Entre os mortos estavam a velhinha do avental e a primeira mulher que descobrira as receitas e ensinara a todo o lugarejo que era possível se alimentar com palavras.



Contudo, o mistério permaneceu: como é que pessoas tão fortes, acostumadas a comer até os restos que recolhiam das feiras, tinham morrido tão rápido?



Para os médicos aquelas pessoas tinham sido vítimas de algum vírus desconhecido, e embora os cientistas tivessem  pesquisado muito, jamais descobriram o que causara a intoxicação e a morte de tantas pessoas...