domingo, 3 de abril de 2022

Recordações: o último adeus a minha mãe, Gloria - João dos Reis

Duartina, a cidade onde nasci, foi fundada em 1926; em 14 de junho desse ano, minha mãe chegou ao Brasil, com um ano e oito meses de idade, vinda de Falgueiras/Penhas Juntas, Portugal, junto com os pais Elisa e Marcelino - e a irmã Isaura. Meus avós, tia Isaura e ela, viveram no campo, onde não havia escolas; somente quando vieram para a cidade, minha mãe e tia Isaura foram alfabetizadas. Ela e a irmã trabalharam nas lavouras de algodão desde criança na região de Bauru, e quando vieram para Duartina, se tornaram bordadeiras e costureiras. No quarto da minha mãe há um baú com peças de crochês e bordados - feitas pela avó Elisa (crochês) e pela minha mãe (crochês e bordados). Gostava de cozinhar. Mas desde 2003, quando fraturou o fêmur da perna esquerda, eu assumi o fogão – com ela aprendi as artimanhas da culinária - e outras tarefas domésticas. Lembro dela desde criança no cotidiano da cozinha, ainda de fogão a lenha, preparando o almoço e jantar, bolos, pudins, cremes, sopas, tortas. E os pratos especiais de domingo e dias de festa: macarronada, lombo, frango e pernil assados. Gostava de peixe – e de bacalhoada à moda de Trás-os-Montes, a província portuguesa onde nasceu. E descobri recentemente, para surpresa minha: de feijoada, um prato sempre ausente em casa. Há alguns anos tomava um cálice de vinho do Porto com um pouco de vinho tinto antes do almoço – era um dos seus raros prazeres. E também de almoçar às vezes em restaurante. Tínhamos uma alimentação saudável (frutas, legumes, verduras e, às vezes, carne). Possuía uma memória incrível para recordar fatos, conversas, frases, personagens do passado. Atualmente, realizava algumas tarefas em casa: lavava alguma roupa - e até três meses atrás se encarregava de passar toda a roupa da casa; e, na cozinha, descascar batatas e frutas para a sobremesa, cortar cebola, couve, salsa e cebolinha - e enxugar a louça do almoço e do jantar. Ela tinha boa saúde física e se esforçava para alcançar a tranquilidade da alma: com orações diárias, leitura da Bíblia e textos religiosos. Em 2005 descobrimos que estava com catarata e glaucoma, mas se recuperou com a cirurgia. O problema da retina era irreversível; e fazia acompanhamento regular com oftalmologista. Nunca reclamou do problema da visão, que a impedia de ler a Bíblia, que antes era sua leitura frequente. Tinha micose em algumas unhas, e não conseguimos curar, apesar dos tratamentos constantes. Em 2018 começaram os problemas: pressão alta, colesterol e, em 2021, duas infecções urinárias. Não reclamava de nada, mas há um mês me perguntou se não havia como resolver o problema de incontinência urinária; ela usava absorvente geriátrico desde 2019. Não fazia exercício físico; eu a levava todos os dias no início da manhã para a avenida. Sei que ela gostava da gentileza dos estranhos que passavam e nos cumprimentavam: bom dia! Há três anos, desinteressou-se pela televisão; antes, assistia junto com meu irmão aos jornais do meio dia e das dezenove horas. Eu comentava sempre com ela sobre as novidades da internet, e a mantinha sempre informada sobre a previsão do tempo, as notícias da política, da cidade, de São Paulo, do Brasil, do mundo; e, atualmente, sobre a evolução da pandemia. Desde que meu pai morreu em 1974, assumiu sozinha os cuidados da casa e com o filho Lourival, que lutou desde a adolescência contra uma doença incurável, a esquizofrenia – a doença da solidão porque vive em um mundo estranho, desconhecido e ignorado por todos. Desde maio de 2020, quando meu irmão faleceu, tinha dias em que estava mais calada, triste. Essa tristeza esteve muito presente nos últimos dias: nos olhos cabisbaixos, na ausência de sorrisos. Em vão tentei fazê-la sorrir contando acontecimentos engraçados do nosso cotidiano. Eu até pensei mais de uma vez: parece que ela está renunciando à vida. Eu sabia das dificuldades que enfrentara desde criança no trabalho braçal no campo e com a doença do meu irmão. Às vezes me perguntava: ela era feliz? Não dizia para mim, mas eu sabia que sentia a falta dos parentes do interior de São Paulo – a irmã Anna Rosa e sobrinhos, que visitamos há catorze anos, quando fomos para o velório de tia Adelaide – e eles não puderam vir para o funeral da minha mãe. No início da manhã e no final da tarde, eu a via beijando os porta-retratos da irmã Isaura e do filho Lourival, repetindo o que meu irmão dizia a ela todos os dias, nos mesmos horários: “na paz de Deus. Amém”. Eu trabalho desde os 13 anos, e cursei o antigo ginasial e colegial, e depois a faculdade de Filosofia na USP, porque tinha a colaboração inestimável dela: levantava de madrugada para preparar o almoço e fazer a minha marmita. Fui um leitor voraz de livros, principalmente de literatura - e de ouvir música clássica - desde a infância. E só conseguia a tranquilidade para ler e ouvir música porque a casa estava sempre limpa, a minha roupa lavada e passada, o almoço e o jantar prontos. E, quando ainda eu não havia me aposentado, era ela que ia às compras no supermercado, no açougue, na feira, pagava as contas no banco. Lembro dos anos rebeldes de 1968: a faculdade de Filosofia da rua Maria Antonia foi bombardeada pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas) da Universidade Mackensie; o prédio da USP foi ocupado e passei uma noite em vigília com os estudantes e professores. Ela e o meu irmão passaram também essa noite acordados em casa com o rádio ligado para saber as notícias. Era conhecida por todos pela discrição, pela gentileza e cordialidade nos gestos e nas palavras. Quase sempre calada, introspectiva, como o avô Marcelino e a irmã Isaura – os três foram importantes para a construção da minha personalidade. Não eram de revelar as emoções ou de demonstração efusiva de sentimentos. Com eles aprendi desde criança a descobrir a magia e o segredo das palavras, a não ter medo e compreender a linguagem do silêncio. Não consegui dizer a ela o que meu irmão, prevendo a morte dele (em maio de 2020), disse no início do ano a ela e a mim, pela primeira vez na vida: “mãe, a senhora é a minha melhor amiga”; “João (mãe), eu te amo, e preciso de você (da senhora)”. Minha mãe caiu em casa no dia 9 de março de 2022, fraturou o fêmur da perna direita, foi para o hospital Antonio Giglio, e aguardava a transferência para o Hospital do Servidor Público Estadual, quando teve um “choque séptico e broncoaspiração”, e faleceu no dia 11 às 2.15 horas da madrugada. Falou apenas algumas palavras nos dois dias em que esteve hospitalizada: no primeiro dia, se eu almoçara; no segundo, perguntou se eu dormira; fiz a mesma pergunta e ela me respondeu que não, por causa do barulho. Me pediu água algumas vezes; nos dois almoços e no único jantar no hospital, engoliu apenas algumas colherzinhas de sopa. Na tarde do segundo dia (12), pedi para a técnica de enfermagem da sala fazer a limpeza da minha mãe; ao movimentar o corpo, ela gritou de dor e segurou na roupa da moça; eu retirei a mão dela e disse para segurar na minha – ela apertou com força por um longo tempo. Logo em seguida, veio o chá da tarde, ela tomou uns poucos goles. Fui reclamar para Marcia, a enfermeira chefe, “que ela estava sem se alimentar há dois dias, que tomou pouco soro, que eu não sou médico, mas achava que deveria tomar mais soro”. Chegamos junto dela e, nesse momento, minha mãe não me respondeu e perdeu totalmente a consciência, e foi enviada rapidamente para a emergência e entubada. Alguns minutos depois, que pareceram uma eternidade, o médico clínico veio me avisar que ela “estava em coma, que o estado dela era gravíssimo, e que ela poderia entrar em óbito a qualquer momento”. Eu assisti a sua morte – uma experiência crucial para mim. Pedi, insisti, chorei, implorei aos prantos que a deixasse ver por alguns minutos. Um funcionário do ambulatório de Ortopedia da noite ameaçou de me proibir de continuar na sala de espera. Primeiro, o médico clínico deixou que eu entrasse na sala de emergência; a enfermeira Márcia também permitiu a minha entrada; também Daniele, a funcionária do plantão administrativo, deixou que eu entrasse mais uma vez “por pouco tempo”. Mesmo sabendo que estava inconsciente, falei com ela todas as três vezes, que a amava, que precisava dela, e pedi perdão pelas minhas birras e pelo meu comportamento às vezes errático. Às 19.30 horas, Dr. Pedro Passos Guimarães, do plantão noturno, deixou que eu entrasse novamente na sala de emergência. Entrei, falei com ela e repeti o que havia dito nas vezes anteriores. Dr. Pedro confirmou o diagnóstico: risco eminente de óbito, e que eu deveria ir para casa descansar, que ela seria encaminhada para a UTI. Não havia quase dormido na noite anterior, por isso fui para casa. As 2.30 horas recebi um telefonema do hospital, que deveria comparecer para falar com o médico. Foi uma madrugada solitária e desesperada, e dirigindo pelas ruas desertas da cidade, já sabia que notícia me esperava no hospital. Recebi a informação do óbito pelo Dr. Pedro, e com a funcionária da recepção, também chamada Daniele, fiz o reconhecimento do corpo. Foi o momento mais doloroso da minha vida: “conversar” com minha mãe, dizer mais uma vez que a amava, que me perdoasse por ser tão birrento. O velório e sepultamento foram no mesmo dia (11) no cemitério Santo Antonio em Osasco. Estavam presentes os meus caros amigos: Airton, Rosa, Risomar e Roque, Edna Maria e Erasmo, Juçara, Edna e Cupertino, Marlene, Edna Lazara, e os primos Arlete, padre José Henrique e Marta. A coroa de flores foi enviada pelos professores da Escola Estadual “Vicente Peixoto”, onde trabalhei de 1984 a 1997. No final, antes do fechamento do caixão, o primo-padre José Henrique rezou conosco um rosário. Parece que ela sabia que iria morrer, porque momentos antes de ficar inconsciente, me deu a dentadura dela, “que era para guardar na caixinha” (como ela fazia antes de dormir) – e foram as suas últimas palavras antes de entrar em coma. Eu disse que ela não estava em casa, que estava internada no hospital, e a devolvi a ela. Alguns minutos depois de ser levada para a sala de emergência, a enfermeira chefe me entregou a dentadura da minha mãe. No sepultamento, a urna funerária baixava para a cova, o padre José Henrique rezava conosco um Pai Nosso e uma Ave Maria, eu disse para ela: adeus, minha querida, eu te amo.Descanse em paz. Quando comecei a escrever essa crônica, estranhei a ausência de sons na casa vazia sem a presença da minha mãe. E lembrei que, como ela, tia Isaura o avô Marcelino me ensinaram: tenho que aprender a suportar e aprender com o silêncio. Abri a Bíblia da minha mãe para escolher uma passagem para encerrar a crônica, e foi o Salmo 77.1-2 que surgiu aos meus olhos: “Elevo a Deus a minha voz, e clamo, elevo a Deus a minha voz para que me atenda. No dia da minha angústia procuro o Senhor; erguem-se as minhas mãos durante a noite, e não se cansam; a minha alma recusa consolar-se”. Osasco,18/03/2022

quarta-feira, 9 de março de 2022

Maria da Paixão

Impossível pra mim, pensar em Maria da Paixão morta, ela que era a própria encarnação da vida. Difícil escrever sobre ela depois dos vários e belos textos que postaram aqui, mas tenho doces lembranças dela e penso que os amigos e admiradores dela talvez gostem de saber. A primeira imagem dela me vem da aluna da primeira série ginasial (hoje quinta série do fundamental), no Colégio Estadual de Quitaúna. Era 1968 e em nenhum momento ela me pareceu constrangida por ser alguns anos mais velha e mais crescida que o restante dos alunos. Ela se destacou desde o primeiro momento que entrou na classe. Alegre, sorridente, falou da alegria de estar ali no colégio. Alta, bonita irrequieta, inteligente, participativa, logo se tornou líder no colégio. Com ela era possível contar para apresentações musicais, para peças teatrais, para formar um time de basquete ou um mutirão de limpeza. E sendo líder, arrastava outros alunos para participarem. Em 1970 a prefeitura organizou o segundo festival de música e a comissão organizadora selecionou “Asteroide X”, música de Homero Ricardo, com letra minha. As apresentações aconteciam no teatro do Colégio Misericórdia. Convidei os alunos para irem às apresentações e Paixão não se fez de rogada. Muitos jovens da escola foram com ela que organizou verdadeira torcida pela música. No final, a composição ficou em segundo lugar, e insatisfeitos com o resultado, os jovens fizeram a maior bagunça. Gritavam, pulavam e, por fim, viraram-se de costas para o palco ao mesmo tempo que faziam sinal de negativo e gritavam: “injustiça, injustiça, marmelada, marmelada...” Nem preciso dizer que aquela torcida era liderada por Maria, quem mais se destacava. Os anos passaram, mas ela não ficava muito tempo sem me procurar. Veio me contar quando a selecionaram para “Hair”, para “Gota d’agua”e todas as outras vezes que iria realizar um trabalho importante... Acompanhei grande parte de sua carreira, quando fazia parte das peças de teatro que o Núcleo Expressão apresentava. Aquela aluna rebelde se tornara uma grande cantora, uma grande atriz. Não sei se Mílton Nascimento a conheceu, se a ouviu, se não, é lamentável, porque nunca vi ninguém, nem mesmo o próprio Mílton, cantar Maria , Maria daquele jeito tão forte, tão cheio de vida. Mesmo sem saber, Milton compôs “Maria, Maria” pra Paixão de Jesus. Certa ocasião convidei Maria para almoçar em minha casa. Ela estava muito feliz por ter voltado para Osasco. Vinha pelas mãos de Ana de Hollanda. Queria me ver, dizer o quanto estava feliz. Durante o almoço me contou muitas coisas, de gente famosa que conhecera, de trabalhos de publicidade...e no meio da conversa começou a falar de sua vida sexual. Meu pai muito sem jeito, abaixou a cabeça. Minha mãe arregalou os olhos e ficou com o garfo parado no meio do caminho entre a comida e a boca. Tratei de mudar de assunto e tudo acabou bem. Quando o prefeito inaugurou a Vila dos Artistas ela foi morar lá durante algum tempo. Alma livre, irreverente e verdadeira, certa ocasião provocou a reclamação de uma moradora da comunidade: o Sr. precisa dar um jeito naquela moça grandalhona, que é cantora. Hoje de manhã ela estava nua, nuazinha lavando roupas no tanque. O Sr. sabe, eu tenho crianças pequenas... Essa era Maria da Paixão. Com certeza ela não tinha nenhuma intenção de escandalizar. Apenas via a nudez com naturalidade. Estou desolada, sempre que ouvir Maria Maria vou sentir aquela pontada no peito, a saudade de minha ex-aluna, tão inteligente, tão talentosa e tão amiga, tão querida. Risomar Fasanaro

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Onde estava Maria da Paixão? Risomar Fasanaro

Minha amiga Alfredina me chamou a atenção: -“Não gosto da imagem da Maria da Paixão daquele jeito. Gosto dela mais solta, mais rebelde.” - De que jeito falei de Maria? Falei que ela era rebelde, Dina. Pensei tratar-se do meu texto sobre Maria. Mas aí me dei conta de que havia uma publicidade sobre os sessenta anos de Osasco, que a prefeitura colocou na TV. Procurei o vídeo. Vi-o inteiro mas não encontrei Maria da Paixão. A “senhora” que ali falava dos seus sonhos do futuro era outra. Quem sabe uma pastora evangélica ou a esposa de algum empresário, quem sabe uma professora dos anos 40? Vestido discreto, penteado bem comportado, gestos comedidos. E Maria onde estava? Em qualquer outro lugar, menos ali. Presumo que a intenção do prefeito, quem sabe do secretário da Cultura ou seja lá quem foi da assessoria tenha tido a melhor das intenções, Mas para quem conheceu, ou até mesmo quem a viu apenas uma vez, sabe que ela não era daquele jeito. Isso parece não ter importância, mas demonstra o desconhecimento que o marqueteiro do prefeito tem dos que fazem cultura na cidade. Imaginei num futuro próximo vermos na Globo ou no SBT o Dario Bendas de terno e gravata borboleta falando sobre as maravilhas da cidade. Lembrei-me do professor Mílton Santos no filme “Encontro com Mílton Santos” de Sílvio Tendler usando uma bata de tecido afro. Linda, linda pela estampa, linda por Sílvio e ele terem afirmado nossas raízes africanas. Para administrar uma cidade, especialmente a área da cultura, é preciso conhecer seus habitantes, seus produtores culturais, seus artistas.

sábado, 8 de janeiro de 2022

O CASARÃO DE SANTA TERESA Delicadeza de pássaro. São meus passos dentro da noite. Entro no banheiro, caminho pela sala, passo polo corredor sem acender a luz. O que busco? Procuro o quê? Talvez um pedaço de mim na rachadura da porcelana ou nas pétalas secas de acácia, presas entre as páginas de um livro mil vezes lido. Procuro não incomodar os pássaros, meus iguais, presos nas gaiolas, a esta hora dormindo. Talvez me sinta, eu mesma, engaiolada. Uma mulher noturna caminhando dentro da noite sem esbarrar nos móveis, tocando de leve as paredes de onde a fitam os antepassados, esses presos em molduras antigas. Mas não me assustam, pois não os vejo. E por ser noite sou também manhã quando acendo a cha¬ma do gás e acordo o sol com o cheiro do café. É ele que me aquece o peito e me prepara para as tragédias do jornal que leio toda manhã. E foi hoje, enquanto o lia, que comecei a relembrar minha infância, o que me levou a escrever este livro. Menina, me vejo no casarão antigo de Santa Teresa em que morava a mãe de minha madrinha. Era branco com janelas enormes, pintadas de azul escuro. Subimos, meus pais, irmãos e eu, a enorme escadaria da entrada. Estou sozinha, percorrendo aquela casa com paredes tão altas que eu precisava dobrar a cabeça toda para trás para conseguir ver o teto, todo pintado com guirlandas de flores azuis e rosa bem clarinhos, sobre um fundo branco. Entro em quartos, quartos, quartos, todos mobiliados com camas de casal e camiseiras de madeira escura. Sobre cada camiseira, uma bacia e uma jarra, às vezes de porcelana pintada com flores, às vezes de ágata e algumas de metal. Os quartos davam para um corredor escuro, com piso de tábuas largas, tão enceradas que era quase possível mirar-se nele. Desde a primeira vez, a casa me despertou curi¬osidade. Naquela tarde me vejo sozinha no pequeno jar¬dim de inverno com piso de vidro em duas tonalidades de ver¬de. Sobre ele, vasos de barro tão cobertos de limo que pareci¬am ter brotado das frestas dos vidros e dentro deles, vários pés de hortênsias azuis e rosa. Alguns vasos estavam pendurados e deles pendiam cabelos verdes de samambaias. Uma luz suave passava através do teto, tingindo folhas e flores de violeta, verde, amarelo e rosa. A princípio não en-tendi o porquê daquelas cores. Quando olhei pra cima vi o teto em forma de vitral de onde São Francisco cercado de pássaros se destacava, emudeci. Jamais vira nada igual. Não sei quanto tempo fiquei ali contemplando aquela imagem tão nova. A contemplação só terminou quando vieram me buscar para ir embora. Do que se falou aquela tarde, muito pouco ficou. Lembro-me de fragmentos de frases ditas pela dona da casa, uma mulher muito bonita, com certo ar de mistério. Daquela conversa, o que me pareceu mais importante foi a revelação que fez à minha mãe, sobre o segredo de sua juventude: só banhava o rosto com água que dormisse no sereno. Ao ouvi-la, a imagem do luar mergulhado em uma bacia d‘água me veio à cabeça e achei que o seu mistério vinha daquele pacto com a lua. Trecho do primeiro capítulo de “Eu: primeira pessoa, singular” Editora TM : São Carlos, SP: EDUFSCar,1996 – Risomar Fasanaro