domingo, 21 de dezembro de 2014

Canto de saudade a Curitiba - João dos Reis


“Há uma Curitiba cruel, outra fiel. Uma que aprisiona e maltrata, outra que cura tuas feridas com a salivinha dos rocios. (...) Há uma Curitiba dos afogados, degolados e suicidas – e sobre essa Curitiba nós clamamos tua indulgência, ó Senhor. (...) E há ainda a Curitiba dos puros, dos corações desarmados, daqueles que a cada manhã refazem de qualquer retalho a teia de suas vidas... – sobre esses a torrente de tua magnanimidade, porque eles que retecem a teia de Curitiba, amém”. - Jamil Snege, “Canto de amor e desamor a Curitiba".

Parti de Osasco e fui viver em Curitiba no final dos anos 90. Tive a companhia fraterna dos companheiros que eram, como eu, “estrangeiros” na capital das araucárias.

Márcio, de Santa Maria, RS, estava a trabalho na cidade. - instalou o sistema de ar condicionado no Museu Oscar Niemayer. Era bastante calado – em um dia em que nós dois sentíamos a solidão da cidade, me falou “se eu era assim sempre bom para os amigos". Não soube como responder a ele.

Moacir Moreira Carvalho pretendia seguir a carreira militar. O plano de engajamento no Exército não foi possível. Voltou para Santo Antonio de Caiuá. Conversamos por telefone às vezes. Quando nasceu o seu primeiro filho, batizou-o como João Victor. Hoje vive em Luis Alves (SC).

Patricia Xavier, de Campo Mourão; Cesar Augusto Carraro, de Cascavel; Maricélia - estagíários na Clinica de Fisioterapia da PUC. Eles, e outras estudantes, cuidaram não apenas do corpo, mas também da alma - minha gratidão eterna! Presenteei César com um vinho - ele me contou que abriu a garrafa no jantar das bodas de prata de seus pais.

Edgar é professor de dança gauchesca no Clube Albatroz. Com ele aprendi os segredos do vanerão, bugio, chamamé, rancheira .Foi o parceiro amigo, um perfeito cavalheiro, nas noites de baile e música.

Alessandro também pensou em seguir a carreira no Exército. Houve uma dispensa coletiva por corte de verbas – e me confessou que chorou na solenidade de despedida. Voltou para a sua cidade, Telêmaco Borba, sem ter o sonho realizado.

Mazé Mendes, de Laranjeiras do Sul, é minha amiga fraterna e solidária. Fui às exposições das suas belas pinturas - e estamos sempre em contato. Em um fim de tarde gelada, encontrei-a no Parque Barigui, abracei-a – e disse como me sentia honrado com a amizade dela.

Fiz o curso de contação de histórias com Martha Teixeira da Cunha e José Mauro dos Santos. Fomos voluntários - a querida Celina foi para o Instituto Paranaense de Cegos, eu para o Hospital do Trabalhador. Para as crianças, contava histórias infantis; para os adultos, lia noticias do jornal ou declamava poemas.

Ewerton Antunes, de Cascavel, e o pequeno Arthur foram meus companheiros queridos – hoje, é um adolescente-aprendiz de filósofo. Tive um acidente, fraturei o ombro. Fui visitá-lo na escolinha, ele me perguntou “se eu já estava bem”. Nunca me esqueci do carinho de um piá curititbano de 4 anos com o desamparo de um adulto.

O catarinense Luiz Fernando Niedzievski, do Mosteiro Monte Carmelo, adotou minha mãe - e nós o aceitamos como um filho e irmão querido. Somos gratos pelo convite para frequentar a sua mesa, dividir com ele o pão e o vinho. Foi uma viagem para fora do meu Estado, mas também para o interior de mim mesmo. Egnaldo, de Fazenda Rio Grande, na região metropolitana, foi também meu irmão-camarada nessa jornada.

Sandra Tortato: curitibana gentil, atenciosa - as centenas de quilômetros que nos separam não diminuiram o afeto e a amizade.

Felis Penkal, pequeno agricultor em Araucácia, cidade vizinha de Curitiba: é também muito calado. Quando ele vinha para a cidade, me telefonava – e nos encontrávamos na Lanchonete Badech. Veio ao meu encontro uma vez com um presente: feijão, que ele plantou e colheu. Na tarde de minha partida, trouxe um pacote de pinhão. Conversamos às vezes por telefone. Descobri que, entre amigos, nem sempre é preciso o uso das palavras. Já tinha voltado para S.Paulo, e ele me comunicou o nascimento do seu primeiro filho: Juan Guilherme.

Tenho na memória e no coração meus irmãos-companheiros de viagem – que, um dia, desejei sem volta.

"Curitiba sem pinheiro ou céu azul pelo que vosmecê é - provincia, cárcere, lar - esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo..." - Dalton Trevisan, "Em busca de Curitiba perdida".

RECORDANDO os anos jovens e os queridos alunos-companheiros - João dos Reis


RECORDANDO os anos jovens e os queridos alunos-companheiros

“Comunicar aos jovens desconhecidos nossa sabedoria e os belos frutos de nossa experiência? De renúncia em renúncia aprendemos uma coisa: nossa radical impotência. (...) Mas temos ossos velhos e, na idade em que as pessoas cogitam escrever o testamento, descobrimos que nada fizemos (...) Nizan pode lhes dizer tudo porque é um jovem belo monstro como eles, partilha com eles o terror de morrer e o ódio de viver no mundo que lhes preparamos.(...) ... tornou-se revolucionário por revolta e quando a revolução teve de ceder à guerra, reencontrou sua violenta juventude e acabou como revoltado”. (Jean-Paul Sartre, prefácio a “Aden, Arábia”, Paul Nizan, Edit.Marco Zero, S.Paulo, 1987,pág 14 e 16).

Fui professor de Filosofia por mais de duas décadas.. Vários dos meus discípulos das cidades do Litoral Norte paulista foram minhas companhias. Depois de 3 anos, a Filosofia foi proibida no currículo escolar – ainda permaneci mais cinco anos lecionando outras disciplinas - até 1980. A casa em Ubatuba de Olga Ribas de Andrade Gil, mãe das gêmeas Olga e Angela, foi meu porto seguro nessa jornada no litoral caiçara.

Lembro de um acampamento na Praia Dura com o grupo do terceiro ano do Colégio "Cap. Deolindo de Oliveira Santos". Recordo também que, depois de um acidente de carro, acordei no hospital – ao meu lado estava Dona Olga, que substituiu minha família ausente. Em muitas noites de sábado, com Angela de Andrade Gil e amigos, conversamos sobre a esperança da volta à democracia.

Quando houve a primeira greve dos professores em 1978, foi com orgulho que tive o apoio e liderança da ex-aluna Angela, recém-formada em Letras. Depois da minha volta a São Paulo, reencontrei-as em 1984 no hospital. D. Olga estava em fase terminal - e foi minha vez de velar o seu sono. Foi a última vez que as encontrei.

Julio Cesar Avelar, do grêmio estudantil da Colégio “Thomaz Ribeiro de Lima", cursou Oceanografia. Revi-o em 1986 – me convidou para passar as férias em sua casa em Olivença, BA, onde trabalhava.

Italia Benetazzo, do Cene de São Sebastião, aguardava o final das aulas para conversar. Reencontrei-a em outubro de 2012 em uma homenagem ao irmão, Antonio Benetazzo, no Memorial da Resistência.

De volta à capital proletária, tive a camaradagem dos professores Airton Cerqueira Leite, Jaime Pontin, Sandra Ceschini Sussmann – trabalhei 14 anos no Colégio “Vicente Peixoto”. E dos jovens do grêmio estudantil – Sidney e Silda, Celso Soares Moitinho, Luiz Fernando Pastorelli. João Antonio nunca se esqueceu dos seus mestres – sempre vinha nos visitar na escola, anos depois de terminar o colegial. No final das aulas do noturno, eles aguardavam a minha carona – e prolongávamos o diálogo da sala de aula.

Eder tinha 16 anos, estava no 1º ano - e me confessou que vivia angustiado. Eu disse que a angústia nos acompanha durante toda a vida. Reencontrei-o em 1991 em Campos do Jordão: ele me viu no ônibus, acenou para que o veiculo parasse, me convidou para me hospedar em sua casa. Na última vez em que estive na cidade da Serra da Mantiqueira, procurei saber noticias dele, em vão.

Silda foi para São José dos Campos – cursou Psicologia; veio me ver algumas vezes na escola. Quando Celso vem da Bahia, almoçamos juntos e conversamos sobre o pequeno Juan, seu filho.

Recordo sempre do convivio com meus companheiros queridos – eles estão na minha memória para sempre.

sábado, 13 de dezembro de 2014

CMVO- Comissão Municipal da Verdade divulga relatório do trabalho do grupo - João dos Reis


Mariana Sales
Fotos: Ismael Francisco
Agência de Notícias SECOM/PMO - 09/12/2014



A Prefeitura de Osasco promoveu, na segunda-feira (8), audiência da Comissão Municipal da Verdade (CMVO) para a apresentação do relatório de trabalho do grupo. O documento contém apuração de crimes e violações de direitos humanos acontecidos na cidade, ou com moradores de Osasco, durante o período da ditadura militar. O relatório já foi entregue à Comissão Nacional da Verdade (CNV), representada na audiência, que aconteceu na Câmara Municipal, por Rosa Cardoso.

O documento produzido pela CMVO constará anexo ao Relatório da Comissão Nacional, que será entregue à presidente Dilma Rousseff na quarta-feira (10), Dia Mundial dos Direitos Humanos.



“Este relatório é parcial e foi realizado a fim de colocar à disposição da Comissão Nacional os dados de investigações realizadas por nós”, declarou o coordenador geral da CMVO, Albertino de Souza Oliva. “Esta comissão continuará seus trabalhos por mais três meses, com o objetivo de poder mostrar aos jovens que não viveram este período o que aconteceu de fato, para que isso não torne a se repetir”, completou.

O relatório foi elaborado por meio da compilação de dados produzidos por 5 subcomissões desde 22 de agosto, data da primeira reunião da comissão, e contou com quase 30 depoimentos.

À disposição para consulta no site da Prefeitura de Osasco, o documento trata do que foi apurado a respeito de como os militares interviram na legislação, nos quadros de funcionários e no funcionamento na Prefeitura de Osasco e na Câmara Municipal.

“Houve um recuo das atividades a partir da presença constante de militares na Câmara. Percebemos que os vereadores da primeira legislatura tinham trabalhos intensos. No entanto, quando se dá o golpe, há recuo das atividades”, declara Mazé Favarão, vereadora e coordenadora da subcomissão. “A presença militar constante na Câmara, cassações e detenções foram constatadas. Essa pressão impediu o crescimento dos agentes políticos da cidade”, completou.

Além disso, o documento contém depoimentos de vítimas da ditadura que revelam uma história de terror, crime e assassinatos. Os depoimentos podem ser vistos no canal do Youtube do Sindmetal Osasco.

A CMVO apurou, também, que houve perseguição sistemática a trabalhadores da cidade, bem como criminalização de movimentos sindicais e trabalhistas. Há relatos que empresas da cidade forneciam ao governo militar nomes de funcionários que posteriormente foram detidos pelo regime militar.

“Essa é uma oportunidade de resgatar a história”, disse Jorge Nazareno, coordenador da subcomissão de Entidades da Sociedade Civil. “E a Prefeitura de Osasco e o prefeito Jorge Lapas têm contribuído muito para a realização deste projeto”, completou.

“Ainda estamos aprendendo a reconstruir a democracia após o Golpe Militar, e essa comissão é um grande passo nesse sentido. Por este motivo, a Prefeitura de Osasco colaborou e colabora para sua execução”, disse o vice-prefeito, Valmir Prascidelli.



Representando o prefeito de Osasco, Jorge Lapas, Valmir Prascidelli anunciou que foi protocolado um projeto de denominação da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em homenagem a José Campos Barreto, o “Zequinha Barreto”, liderança operária de Osasco, morto durante a ditadura militar.

Agentes da ditadura militar, que aconteceu entre 1964 e 1985, bem como os lugares em que aconteciam torturas, também foram apurados e os dados, agora, enviados à CNV. A dificuldade em ter acesso a dados militares, imprecisões de cargos e nomes de pessoas que realizaram torturas e violências contra a sociedade civil foi relatada no documento. Apesar disso, a subcomissão de Agentes conseguiu ter acesso a 5 nomes considerados responsáveis por tais crimes.

No relatório parcial desenvolvido pela CMVO, há também informações sobre a “Casa de Itapevi”, um centro de tortura ligado ao Centro de Informações do Exército (CEI) ao qual foram levados moradores de Osasco. No local, 8 pessoas foram torturadas, somente uma delas sobreviveu.

O relatório produzido pela CMVO contém ainda recomendações à Comissão Nacional produzidas de acordo com o que foi apurado na cidade que contemplam, entre outros itens, a investigação e punição dos responsáveis por crimes cometidos no período.

“Esta Comissão apurou o que aconteceu em Osasco, mas se repetia em âmbito nacional, e não é apenas um esclarecimento, mas que alerta a todos para que tal situação não torne a acontecer”, disse o jornalista osasquense Antonio Roberto Espinosa, que representou as vítimas do regime militar.

RECORDANDO o professor LUIZ ROBERTO SALINAS FORTES- João dos Reis



“Lá fora, o melhor dos mundos, como se nada tivesse acontecido. Os generais prosseguiam, meticulosos, na patriótica azáfama: o povo brasileiro deixava-se salvar ao som estridente do ‘eu te amo meu Brasil’ e se preparava para o grande espetáculo, sob o comando de Pelé e Tostão (...) que as TVs transmitiriam do México” (p. 45) – escreve LUIZ ROBERTO SALINAS FORTES (1937-1987) em “Retrato calado” (Cosac Naify, S.Paulo, 2012, 2ª ed., 136 págs.).

Fui seu aluno em 1968-1969 de Teoria do Conhecimento e Ética e Filosofia Politica no curso de Filosofia na USP, e reencontrei-o por esse depoimento.Retomei as lembranças de quem me ensinou a ler Jean-Jacques Rousseau (“Discurso sobre a origem da desigualdade”) e Louis Althusser (“Para ler O Capital”).

Depois do AI-5 tivemos anos tumultuados – para a vida acadêmica e para a história do Brasil. Lembro dele angustiado na sala de aula depois de uma das prisões – e como me sentia impotente para prestar solidariedade.

Os anos em que fui universitário foram marcados pela desesperança. No engajamento na resistência havia o medo da prisão e da tortura, de ser preso e trair os amigos e a família. Professores da universidade cassados, exilados; estudantes presos, clandestinos, desaparecidos.

A prisão, a tortura deixaram marcas: “a dor que vai me matar continua doendo, bem presente no meu corpo, ferida aberta latejando na memória. Daí a necessidade do registro rigoroso da experiência, da sua descrição, da sua transcrição literária” (p.42), escreve o professor-filósofo em suas confissões.

Esteve nos presídios da ditadura militar, em São Paulo - na OBAN, no DEIC e no Dops. Foram várias acusações, muitas delas baseadas em suspeitas. Ele mesmo questiona: “Deveria ter saído do pais? Não sei. Partido para a clandestinidade e me comprometido com a luta armada, desta vez para valer? Talvez. Mas, que perspectiva nos oferecia, que não a suicida, a ação violenta contra o regime?”(p. 45)

Marilena Chauí registra na introdução da edição de 1988: “Estamos diante de alguém que se viu a perguntar: o que é a razão? o que é a História? o que é a bondade? Estamos diante de alguém que atravessou trôpego e cego, o labirinto do terror para descobrir-lhe, em estado de choque, o fio condutor dessa prodigiosa máquina de produção de culpa e de destruição humana do humano pela desintegração da fala e pelo sequestro do pensamento”.

Eu fui reencontrá-lo em 1984, em um curso para professores. Disse que eu também tinha vivido os dilemas da minha geração – e lembrei que quase fui reprovado em 1969 – e, no ano seguinte, tranquei a matricula no curso de Filosofia.

“Na cordilheira dos edifícios da minha cidade, onde agora busco reintegrar-me, da Sierra Maestra de concreto armado, armados quem sabe um dia lá de cima descerão os guerrilheiros do novo tempo e virão, barbudos, implacáveis como Bruce Lee, redimir-nos a todos? No anos 2000, quem sabe?” (p.117) – diz o mestre que não chegou a viver o novo século.

Estas foram as últimas palavras do filósofo-professor: “”eles quase tinham me conseguido quebrar, restando-me agora como único recurso, como único antídoto e contraveneno, a metralhadora de escrever, o alinhamento das palavras, o arado sobre a folha branca, a inscrição como resposta. É aqui, nesse exato momento, que se trava a luta. Cada traço escrito é um tiro, é um golpe”(p.115).

A minha juventude foi marcada pela repressão, pelo terror do Estado policial. Citando Paul Nizan, em "Aden, Arábia": “Eu tinha vinte anos, não me venham dizer que é a mais bela idade da vida”.

RECORDANDO Elisa de Jesus Ferro e os mortos e desaparecidos políticos- João dos Reis


RECORDANDO Elisa de Jesus Ferro e os mortos e desaparecidos políticos

“Quem se lembrará de ti depois da morte? E quem rogará por ti? Faze já, caríssimo irmão, quanto puderes, pois não sabes quando morrerá nem o que te sucederá depois da morte. Enquanto tem tempo, ajunta riquezas imortais” (Imitação de Cristo, cap. 23-8)

Muitos dos que tenho lembrado – ou quase todos – estão mortos Pensei no luto – e na superação dele - que devemos dedicar aos habitaram nosso território sagrado. Acredito que eles permanecerão entre nós enquanto formos capazes de recordá-los.

ELISA DE JESUS FERRO, minha querida avó, está sempre presente no meu coração. Nasceu em Penhas Juntas, Trás-os-Montes, em Portugal. Emigrou para o Brasil em 1926. Ela e meu avô, Marcelino Matheus, eram jovens, e foram lavradores, trabalharam a terra americana . Sempre me lembro quando sento à mesa para as refeições: agradecer, como eles sempre faziam, e lembrar de onde vem os alimentos que saciam a nossa fome e o desejo de viver.

Lembro da felicidade dela quando foi alfabetizada já adulta. Católica fervorosa, presenteei-a com o livro “Imitação de Cristo”, de Tomás de Kempis, que ela lia diariamente. Me impressionou a prática do jejum – era uma “intenção”, que devemos lembrar da morte do corpo e da salvação da alma.. As novenas ao cemitério de Duartina (SP), minha cidade natal, eram constantes. Rezava pelos que estavam repousando no túmulo da família – mas também pelos vivos que enfrentavam esse “vale de lágrimas”.

Não havia funerárias no interior paulista - eram as mulheres que preparavam os defuntos para a despedida final. A lavagem e preparação dos corpos eram interditas aos homens e às crianças. Guardei essa imagem, esse cuidado feminino. Ela também era chamada para as preces finais, antes do fechamento do caixão e o cortejo fúnebre.

Passei todas as férias escolares e de trabalho sempre com ela. Ela me esperava e cozinhava os seus (e os meus) pratos preferidos: bacalhau à moda trasmontana, lombo assado e manjar de côco. Era a maneira que ela tinha para dizer como eu era bem vindo a sua casa e a minha companhia. Já octagenária, me pediu “para que escrevesse de vez em quando, porque gente velha gosta de receber cartinhas” – o que eu fiz regularmente.

No inicio dos anos 70 sabiamos das mortes e desaparecimentos de presos políticos Foi um período de tensão, de angústia. Não tínhamos informações dos companheiros; muitos viviam na clandestinidade ou estavam na prisão. A imprensa estava sob censura – e esperávamos noticias vindas de fora do país. E o que me marcou profundamente naqueles anos – e ainda hoje – é que as famílias dos militantes não conseguiram se despedir de seus parentes queridos.

Pude acompanhar o funeral dos mortos da minha infância - as orações, o velório e o sepultamento. Por isso tenha lembrado de alguns dos mortos sem sepultura – Fernando Santa Cruz de Oliveira, Aylton Adalberto Mortati.,Antonio Benetazzo, Carlos Alberto Soares de Freitas, entre muitos outros. A história de Ruy Carlos Vieira Berbert é a mais dramática: a família realizou um enterro simbólico anos depois do seu desaparecimento. No caixão, não havia corpo nem restos mortais, apenas os sapatos e o terno de Ruy.

Minha avó Elisa acreditava que a cerimônia de adeus era um passaporte para a vida eterna aos que partem do nosso planeta. E o momento de revelar nosso desejo de que permaneçam na nossa memória para sempre.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

RECORDANDO o professor FERNANDO BUONADUCE - João dos Reis



“Noli foras ire, in te ipsum redi: in interiore hominis habitat veritas” (Não saias, volta para dentro de ti: a verdade mora no interior do homem) – Santo Agostinho, “De Vera Religione, 1.38


FERNANDO BUONADUCE foi meu professor de Latim e Português nos dois primeiros anos do ginasial no Gepa- Ginásio Estadual de Presidente Altino- e nos três anos no curso Clássico no Ceneart- Colégio e Escola Normal Estadual Antônio Raposo Tavares.

Tinha 12, 13 anos. Depois de uma aula sobre versificação, construi um soneto a partir de um texto. Foram os primeiros elogios que recebi por escrever: ele leu meus versos para várias outras classes, me apresentou a todos com orgulho. Descobri que não era poeta, mas que poderia ser um artesão das palavras.

A leitura e o comentário do conto de Antonio de Alcântara Machado, “Gaetaninho”, foram comoventes. Conheci a linguagem do modernismo - e, para mim, um menino caipira - o cotidiano da metrópole ítalo-brasileira.

Ao contrário da minha cidade, Gália, não havia biblioteca pública em Osasco - ele me permitiu frequentar a da sua casa. Fiquei encantado: nunca havia conhecido uma coleção particular de livros. Tinha 14, 15 anos, e li toda a coleção de literatura da Editora Saraiva quando estive desempregado. Na cidade do interior, só me permitiam acesso ao setor infantil. Ele era pastor da Igreja Presbiteriana, e como bom discípulo da Reforma, não me proibiu nenhuma leitura. Nunca tive oportunidade de agradecer a ele esse convite à aventura pelo universo literário.

Estava angustiado, não arrumava emprego. Para colaborar comigo, me “contratou” para auxiliar o seu filho nas tarefas escolares. Eu havia acabado de sair da infância – e foi meu primeiro convívio com uma criança. E, mais tarde, quando escolhi o magistério como profissão, não esqueci essa experiência pedagógica.

Foi um incentivador da educação em Osasco. Lembro de que, durante a demolição do prédio da fábrica da rua Antonio Agu (onde hoje há um shopping), ele esteve presente para guardar alguns tijolos. Era a homenagem do agitador cultural para a preservação da memória. Não lembro das palavras quando ele me contou, mas a ideia era de que "a terra que ergueu o edifício - cenário da vida operária da cidade - era também parte da História".

Tive uma relação filial com o professor - ele acompanhou a minha vida escolar desde o ginásio até o colegial. Na adolescência, outros personagens ocuparam meu coração - tive idolos, heróis. Mas na recordação dos primeiros anos a sua imagem permanece - ao lado do professor Josué Augusto da Silva Leite e do estudante Gabriel Roberto Figueiredo.

Em 1986 soube do seu falecimento – telefonei para o filho, Claudio, e lhe disse como era grato ao mestre. Com os ventos da redemocratização, a Filosofia voltou ao curriculo escolar. Estávamos desafiando a violência, o Estado repressor: voltei a lecionar na escola pública - trabalhei 14 anos no "Vicente Peixoto", ao lado do Cemitério Bela Vista. Muitas vezes permaneci ao lado da sua sepultura - e nesses momentos, não precisei das palavras para manifestar minha gratidão, mas de um silêncio reverente.