sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O REENCONTRO da VAR-PALMARES - Risomar Fasanaro


Ali estava eu, entre o seletíssimo grupo de convidados para o reencontro dos guerrilheiros que fizeram parte da VAR-PALMARES. E foi difícil conter a emoção ao ver de perto muitos daqueles pelos quais tantas vezes meu coração disparou de revolta, se encolheu de tristeza, ou pulou de alegria a cada ação bem sucedida...
Por eles, anos e anos eu “devorara” a “Folha”, o “Estadão” , o “Pasquim”, o “Movimento”, “Em Tempo”, “Versus” e outros da imprensa nanica, tentando encontrar alguma notícia; quase sempre inutilmente. Elas nos chegavam nas entrelinhas dos versos de Camões, ou eram o sal das receita culinárias do “Estadão”. Poemas que não decifrávamos, pratos que não saboreávamos, apenas nos aguçavam a curiosidade e o medo.
Elas nos vinham de outras fontes: dos irmãos de Espinosa, da mãe de Ibrahim, dos irmãos de Roque...
Um dia a mãe de Aninha tirou dos canos do fogão uma carta dela que estava no exílio; tão amassada, tão desgastada, que mal dava para ler o que a filha escrevera. E constrangida, ela nos aconselhou a não ir mais lá, pois a casa era vigiada noite e dia, e corríamos o perigo de ser presas.
Restava-me recortar as poucas notícias dos jornais que me chegavam, arquivo que após minha prisão no Recife meu pai colocou em uma lata, enterrou no quintal e nunca soube localizar, mesmo depois que o pesadelo acabou.
Que rostos teriam aqueles rapazes e moças que arriscavam a vida naquela luta de Davi contra Golias? Sentiriam fome, sede, frio?
Quantas vezes, sentada no chão de alguma das inúmeras repúblicas de estudantes da época, chorei ao lado de amigos, ouvindo Chico, Vandré, Gonzaguinha, Taiguara?
E como festejara a cada embaixador sequestrado e trocado por alguns dos que ali estavam...Naquelas ocasiões era “Gracias a la vida” que ouvíamos na voz de Violeta Parra...
E que alegria fora a volta do exílio do poeta Thiago de Melo, que veio à casa de Ibrahim, trazendo notícias dos que estavam do lado de lá...
Enquanto eles tomavam vinho e conversavam alegremente na noite de 15 de novembro no Encontro dos militantes da VAR-Palmares, eu rememorava muitos dos momentos que vivera naqueles anos difíceis. Lembrei-me das vezes em que junto com outros amigos arrancávamos os cartazes de “Procurados”. Operação que precisava de umas três pessoas, e envolvia certo risco, mas que risco era aquele, diante do que eles enfrentavam?
Alguns não tinham podido vir àquele reencontro, mas muitos estavam ali. Naquelas mesas repletas do que falariam? Relembrariam passagens nas operações arriscadas, nos aparelhos, nos presídios? Relembrariam os amores vividos na clandestinidade, ou evitariam falar do passado e falariam só do presente? Não sei. Circulando pelas mesas ouvi apenas fragmentos de conversas.
Enquanto conversavam, por minha cabeça passava um “filme”. Lembrei-me das reuniões na Biblioteca municipal de Osasco, quando despontaram as lideranças de Espinosa, Roque, Barreto, Aninha.
“Revi” um dia em que Espinosa e eu fomos encarregados de pintar uma faixa, para a passeata de protesto pela morte do estudante Edson Luis de Lima Souto, e, inexperientes, pintamos o tecido sem colocar jornal embaixo do pano. Aquele descuido me custou mais de uma semana passando palha de aço, para apagar “Abaixo a ditadura” do assoalho da sala, além de despistar os familiares, para não descobrirem que eu estava envolvida no movimento contra a ditadura.
Depois, Espinosa, Roque, Aninha, Barreto e Ibrahim sumiram. Nunca mais as portas da biblioteca se abriram aos domingos, os que nela se reuniam partiram sem dizer adeus, e as ruas da cidade nunca me pareceram tão desertas.
Depois começaram a chegar as notícias: Espinosa preso, Aninha, Roque, Ibrahim e Osni no exilio, João Domingues, Barreto e Lamarca mortos, entre tantos outros que eu não conhecia pessoalmente.
Pouco podíamos fazer além de ir aos inúmeros atos de protesto, às reuniões mantidas sob o maior sigilo, e, enfim...surgiu o movimento pela Anistia, talvez o movimento que tenha reunido mais mulheres neste país. Comecei a participar com Iracema dos Santos, a mãe e as sobrinhas de Ibrahim e muitas outras mulheres da cidade.
Mas naquela noite de sexta-feira, o encontro organizado por Espinosa e João dos Reis, todas aquelas lembranças faziam parte de um passado distante. Ali não havia espaço para a tristeza, mas sim para festejar a vida. Era o reencontro de amigos. Amigos verdadeiros que, como tão bem disse Roberto Espinosa, “o amigo torna-se uma parte do nosso corpo, a principal de todas elas, sem a qual a vida não tem sabor, rumo ou graça.”
Sim, o que eu vi ali foi um imenso coração que durante anos difíceis se dividira em mil pedaços, e naquela noite aqueles pedaços voltavam a se unir e a formar um só.

sábado, 7 de setembro de 2013

pátria a(r)mada, bom dia!



pátria a(r)mada bom dia!
bom dia
a todos os poetas
a todos os bêbados
a todos os torturados
mortos e sepultados
desta (in) dependência sem fim
bom dia a todas as gaivotas
a todos os Tiradentes
do meu país
bom dia a Theodomiro
do seu Pa(r)is distante
bom dia a todos que fa(r)dados
ou não
escureceram nossos dia
**

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O Reencontro- Antonio Belo


Quando recebi o convite da Risomar para fazer um prefácio do seu livro de contos: “O Reencontro”, senti uma certa apreensão. Sabia que não seria um "pré" fácil. Não poderia agir com veleidades e era urgente! Por onde começar? Não havia necessidade de apresentar a autora. Bastante conhecida no meio literário e cultural de Osasco, onde participou da militância política desde os anos setenta no ambiente estudantil: seja em festivais de música, saraus literários, participação em jornais e revistas; sempre irrequieta e colocando o oração em cada atividade a que se dedicou.

Mas o livro... Ah! O livro. É uma coletânea de 22 contos onde a autora demonstra todo o seu potencial inventivo e vivencial, numa linguagem clara e preciosa com amplo domínio da técnica de escrever, mas, sobretudo, consegue criar um universo lúdico e mágico onde não se sabe onde termina a realidade e onde começa a fantasia; ou se ambas - realidade e fantasia - são as faces de um mesmo universo real-fantástico.

O livro começa com o extraordinário conto "Gravidez", que nos deixa em suspense até o inusitado final e já prenuncia o quanto a autora domina o uso da palavra; isto é, das palavras, milhões de palavras que brotaram do seu ventre. E como essas palavras - suas filhas - ganharam o mundo em forma de romance, contos, crônicas, poesias, ensaios e críticas, enfim...

Essas palavras têm o seu valor realçado no conto, “O peso da Palavra”: "A vida, pensou, é tão misteriosa quanto as palavras. Só que para elas ainda existe um dicionário, e a vida... A vida não tem bula, não tem roteiro, nem tradutor... "
Mas sabe-se que para as palavras ainda existe esperança; enquanto que, para a vida...

A condição da mulher está sempre presente nos seus contos - autobiográficos? – Em "Mulher", sente-se a desesperança da condição da mulher após uma vida inútil, dedicada ao nada; e quando se procura o sentido da vida já não se consegue perceber onde se errou, o que faltou. Em "A Apanhadora de Estrelas", é impressionante a descrição das rugas da velha índia. Quase se consegue ver a "topografia" daquele rosto cheio de sulcos por onde, em vez de água, escoam lágrimas. E em "Pecado Capital" e "Morrer duas vezes", o universo da mulher é dissecado com precisão cirúrgica. É um verdadeiro tratado da psicologia feminina. A descrição do envelhecimento de Clarice só é comparável, em beleza estética, à decadência de Veneza no filme de Visconti. Do conto, "O Reencontro", falarei depois.

De certa maneira, mesmo vivendo longe de suas raízes pernambucanas e nordestinas a autora não consegue fugir da saudade da sua infância e das suas origens. Nos contos: “O Culpado é João”, “A Menina e Deus” e “Construção” essa evocação está sempre presente, de maneira, às vezes, nem sempre direta: é a referência a uma comida típica, a solidariedade entre operários migrantes, é a lembrança de episódios da infância naquela longínqua vila militar de Socorro, e o condado imaginário cheio de estórias e lendas, nos contos: "Afogados da Ingazeira" e "Apocalipse do Sertão". Talvez aquela menininha estivesse certa nos seus questionamentos sobre a existência de Deus. Autobiográfico ou não, a autora também sonha em seus contos: sonha em voltar às suas origens, à sua terra, e corrigir parte de uma trajetória de vida, nem sempre possível. Isso está bem claro - de maneira, talvez, inconsciente - nos contos "O retorno" e "Riacho das Acácias" onde a fantasia consegue reinventar o mito de Dorian Gray ao contrário. Nenhuma literatura está isenta dos seus autores.

Qual o meu conto preferido? Todos. Mas o que mais me emocionou, pela densidade psicológica, foi "O Reencontro". Foi como uma paulada na testa. É como um filme de suspense, onde não se sabe qual o desfecho, mas sabe-se que não será agradável. Novamente volta à baila a condição da mulher: renúncias, amores desfeitos, prisão domiciliar, solidão. No caso presente, o alcoolismo que para a mulher é sempre ruim, sendo dela ou do companheiro. Nesse conto magistral, vemos como é leviano julgar alguém por algo que não fazemos. Não se vira uma página da vida como se troca uma fechadura.

Finalizando, gostaria de relembrar a doce Beatriz, de "A mulher que chorou por Proust": “- É que Proust escreve tão bem, Lúcia, tão bem, que é como se ele tivesse vivido mil vidas, conhecido profundamente mil pessoas. E saber que nunca mais vou ler nenhum autor como ele me dá uma dor tão grande, tão grande... “: Talvez ela nunca mais vá ler um autor como Proust; mas, para nosso deleite, esperamos continuar a ler, ainda por muito tempo, uma escritora como Risomar Fasanaro.





domingo, 7 de julho de 2013

O Brasil nas Ruas- Paulo Roberto da Silva


Os únicos lugares que ainda não foram colonizados são as ruas (Boaventura de Sousa Santos)

Uma sensação emocionante tomou conta das ruas do Brasil nesses últimos dias reacendendo a velha máxima que diz: ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição biológica. O vinho novo sempre vem arrebentando os odres velhos e o remendo novo detonando a velha calça azul e desbotada, já dizia Jesus. Não quero chover no molhado analisando a postura mutante e reacionária da grande mídia, que como um camaleão, assumia a forma ambiental que lhe era favorável, destacando mais os pontos negativos do que os verdadeiros anseios do povo por um Brasil mais justo e fraterno. Incutindo o medo como um instrumento de paralisação.
Chamou-me a atenção um recado de uma jovem cristã que foi a uma das grandes marchas no Largo do Batata e me segredou: pastor eu fui escondido para não levar bronca. Bronca dos pais ou bronca dos pastores? Fiquei feliz pela sua coragem de sair das quatro paredes da Igreja e gritar nas ruas que o povo acordou em uníssono com milhares de outros jovens.
Os “vândalos” de ontem são os heróis de amanhã, alguns até com feriado em homenagem ao seu nome, quem diria que a Casa Branca teria um presidente negro? Foi necessário uma negra insubordinada se recusar a levantar-se da cadeira para dar lugar a um branco racista. Rosa Parks deu a deixa para Martin Luther King “sonhar” com um mundo sem discriminação e sua Igreja antenada com o Deus da libertação, marchou sobre Washington no meio da multidão de 250 mil pessoas em uma época que não tinha Facebook, Twitter e outras redes sociais de grande velocidade de mobilização.
Fiquei me questionando por que as Igrejas colocam tantas pessoas nas ruas na Marcha para Jesus, como se Jesus estivesse necessitando de apoio, em perigo, precisando de Ibope, e numa marcha pela vida, pelos direitos e pela justiça quase que não se enxerga a Igreja, a não ser algumas pessoas que por conta própria tomam a decisão de sair para colocar sua fé em ação? Graças a Deus que o Espírito Santo sopra fora dos arraiais eclesiásticos, comprovando as palavras de Jesus: Se os meus discípulos se calarem, até as pedras clamarão!(Lc. 19.40).
Termino bebendo em Isaías que soube perceber o poder de manipulação dos ideólogos do seu tempo ao dizer: Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem chamam mal, que fazem do amargo doce e do doce amargo, da luz escuridão e da escuridão luz. (Is. 5.20) Isso me faz enxergar porque os mapuche que estão nas ruas de Angol, Santiago, Concepção, Valdívia e tantas outras cidades do Walmapu (Chilena) são tratados como terroristas e o Sebastião Piñera uma das maiores fortunas do país seja colocado na presidência. O mesmo princípio o bispo Marcelo Crivella quer aplicar no Brasil a lei antiterrorista para criminalizar os Movimentos Sociais. Se aprovada, os representantes indígenas que tomaram a Câmara dos Deputados no mês de abril poderiam ser enquadrados como terroristas e serem presos. Isso me faz perceber porque os Estados Unidos, a “Besta” da atual Babilônia dá uma ordem para França, Portugal e Espanha impedir que um presidente latinoamericano, Evo Morales seja impedido de circular nos referentes espaços aéreos com a suposição de está levando a bordo um jovem acusado de revelar o terrorismo do Estado em invadir a privacidade de milhões de pessoas no seu próprio país e no mundo. Com certeza se Jesus estivesse vivo e atuante fisicamente falando, seria tido como terrorista, vândalo ou baderneiro ao invadir o Templo (Casa da Moeda) e expulsado os capitalistas com extrema violência, ou seria preso por desacato à autoridade ao chamar Herodes de Raposa. Tem um ditado africano que diz: a história sempre foi contada pelos caçadores, chegou a hora de ela ser contada pelos leopardos. Que venham os novos “vândalos” corajosos derrubando os símbolos do deus mamon que é adorado no mundo inteiro, inclusive por muitos cristãos hoje. Disney, Shopping centers e Papai Noel não me deixam mentir.
“Ou defendemos a vida onde ela está sendo esmagada, ou devemos ter a coragem de não pronunciar o nome de Jesus Cristo”.
Paulo Roberto da Silva





sexta-feira, 24 de maio de 2013

O Lírio do Prado ao amanhecer - Antonio Belo



Quando no prado

amanhece,

todas as flores

esmaecem

ao vento;

e só o lírio

permanece

atento...

Antonio Belo

13.12.2011

16:41h

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Rio Moxotó - Antonio Belo


Rio Moxotó



Tracei uma linha no Moxotó

Na esperança de vê-lo encher

Pra entrarmos juntos,

Eu e Você

como duas almas

em um corpo só...



O azul-violeta é fantasia

de um poeta visionário

sua água é barrenta e fria

e guarda segredos de carbonário.



Oh!, rio de água doce,

que vais ao mar?

Mostra tua "força"

no meu sertão

enchendo o povo de esperança

conduzindo o seu sonho à amplidão...

Antonio Belo

17.05.2013

sábado, 11 de maio de 2013

Retalhos da Vida - Joaquim Belo da Silva







·
Amanhã é o Dia das Mães. Para homenagear não só a minha mãe, já falecida, mas todas as mulheres guerreiras que optam em abrir mão de parte de sua vida para constituir outras vidas, publico esse crônica que escrevi para homenagear os seu aniversário de 94 anos de nascimento.



No dia 04 de Novembro, Dona Julieta, minha saudosa mãe, faria 92 anos. Eu escrevi esse relato para homenagear uma mulher de fibra que passou pela vida sem vivê-la plenamente, pois toda ela, foi-nos dedicada, aos filhos e por bem pouco, bem pouco mesmo, não se tornou uma das mães da Plaza de Mayo.
Quando eu li “A Mãe”, do escritor russo Máximo Gorki, senti que Pelágia, tinha muitos nomes e muitas nacionalidades, inclusive, poderia muito bem chamar-se Julieta. As transformações das pessoas se dão quando elas se conscientizam e descobrem que a fome e a miséria não são determinadas por Deus, mas pelas consequências de uma sociedade centralizadora, injusta, cruel e desumana.
Estávamos no período mais duro da ditadura militar. Os militares tinham iniciado a globalização da tortura e do desrespeito aos direitos humanos, abrindo mão das fronteiras e da soberania nacional, permitindo que qualquer agente de outro país entrasse em seus territórios em busca de terroristas, como assim eles tratavam aqueles que se manifestavam contra a opressão, e lutavam pela volta do estado de direito. Era a operação Condor. Vou omitir as datas, porque, com certeza, seria corrigido pelo meu irmão Antonio Belo.
Minha irmã, Maria Inês da Silva e o Namorado, Abiasaf Xavier de Brito, que haviam saído recentemente da prisão aqui no Brasil, aproveitaram os ventos da liberdade e fugiram para o Chile. Primeiro ele, ela depois.
No Chile, o governo Socialista de Salvador Allende lutava contra o boicote econômico patrocinado pelo governo americano, “arautos da democracia e respeitadores dos direitos humanos”, como sempre se apresentaram para o resto do mundo. O governo democrático de Salvador Allende caiu em 11 de Setembro de 1973 e instalou-se no país, talvez a mais cruel ditadura já vista em nosso continente, sob o comando do general fascista Augusto Pinochet.
Diante das circunstâncias, foram eles obrigados a fugir para a Argentina, país que ainda estava sob um regime democrático. Mas o vírus da ditadura se alastrava como erva daninha pela América do Sul. O governo daquele país também caiu, instalando-se mais uma sangrenta ditadura em nosso continente, ficando à frente do governo, o General Carlos Rafael Videla, que se celebrizou por se revelar o maior torturador da ditadura argentina.
Inês e Abi foram presos e torturados nos porões da ditadura argentina, em companhia de mais dois outros brasileiros. A mãe de um dos prisioneiros, residente no estado de Goiás, de volta da Argentina, após a visita e a libertação do filho preso, colocou uma nota no jornal “O Popular” de Goiás, sobre a situação de penúria em que Inês e Abi se encontravam, nos cárceres da ditadura do governo Rafael Videla”. Uma senhora de nome Aurora Baú, recortou e me enviou aquela nota publicada no Jornal. Como ela descobriu meu endereço, até hoje é um mistério...
Começamos a nos movimentar no sentido de libertar o casal; ou pelo menos tornar pública as prisões, evitando assim que mais dois corpos não identificados aparecessem boiando nas águas do Rio da Prata. Uma missão que não era fácil dentro do contexto político não só da Argentina, mas de todos os países Latino-americanos.
Por mais que tentássemos esconder o fato de Dona Julieta, a nossa mãe, era uma missão praticamente impossível, pois ela era muito perspicaz, capaz de antever coisas incríveis em relação aos filhos. Certa vez viajei de Anápolis, estado de Goiás, para o Recife, sem avisar a ninguém, pois se eu avisasse ela iria fazer despesas extras e desequilibrar o orçamento doméstico. Mas, inexplicavelmente, quando eu cheguei, ela tinha feito uma peixada de Cioba e doce de ovos que era a minha paixão. Sorriu e disse: eu não falei que Joaquim iria chegar?...
À mediada que o tempo ia passando, ficava cada vez mais difícil manter a história em segredo. Quando ela finalmente tomou conhecimento dos fatos, com firmeza e determinação começou a movimentar-se, e teve uma reação oposta à que todos imaginavam. Sua primeira providência foi fazer uma carta para o Sr. Carlos Rodriguez, do Alto Comissariado das Nações Unidas, carta essa que foi lida e colocada nos anais da Assembleia Legislativa do estado de Pernambuco, pelo jovem Roberto Freire, na época um aguerrido deputado que, junto com Maurílio Ferreira Lima, era uma das poucas vozes que tinha coragem de se manifestar contra o regime militar.
Dona Julieta fez uma reunião com os filhos e disse: estou indo para Buenos Aires tirar minha filha da prisão. A surpresa foi geral. Tentamos demovê-la da ideia com todas as ponderações possíveis: que ela não sabia falar espanhol e que Buenos Aires era na época uma cidade maior do que São Paulo e tantos outros inúteis argumentos. Os amigos e conhecidos começaram a se manifestar e conseguiram passagens, dinheiro, roupas, e outras providências mais.
Na véspera de sua viagem, chegou uma carta das Nações Unidas comunicando que os dois haviam sido libertados e aceitos pelo governo da Bélgica como exilados políticos. Onde permanecem até os dias atuais.
Dona Julieta vive hoje em outra dimensão, a dimensão dos nossos pensamentos. Vive em nossa memória, nas canções que gostava de cantar. Vejo-a como se fosse um filme, sentada em sua inseparável máquina Singer, costurando os retalhos da vida ou em frente do velho fogão à lenha cozinhando as ilusões que matavam nossa fome.
Entre todas as lembranças, talvez a mais comovente seja a sua luta obsessiva para nos manter vivos e saudáveis, época em que havia um elevadíssimo índice de mortalidade infantil e tinha para isso um arsenal terrível tanto para os inimigos externos que queriam se apropriar indevidamente do pão nosso de cada dia - os vermes - quanto para nós, as vítimas: Sementes de mamão, Biotônico Fontoura, Emulsão Scott, que era um extrato de óleo de fígado de Bacalhau - acredito que seja muito bom para memória, pois nunca mais consegui esquecer aquele gosto horrível.
Lembro-me que ela apanhava limalhas de ferro na oficina de um ferreiro que tinha perto da nossa casa, em Betânia, colocava dentro de uma vasilha com água e depois de sete dias nos dava para ingerir àquela água ferruginosa, que era para repor o ferro subtraído pelo inimigo. Pela saúde, energia e disposição que têm todos os seus filhos, acredito que tenham sido eficazes, as suas fórmulas artesanais. Uma coisa é certa: foi eficaz o exemplo de amor e determinação de uma mulher e mãe extraordinária.

Belém, 02 de Novembro de 2012.

quarta-feira, 8 de maio de 2013








Museu da Abolição recebe exposição internacional na 11ª Semana de Museus

O Museu da Abolição (MAB/Ibram), em Recife (PE), apresenta a exposição internacional As Águas da Memória, a Rota do Ex-Cravizado, da artista plástica Inêz Oludé. O projeto comemora o Dia Internacional da Memória do Tráfico Negreiro e sua Abolição e se integra a 11ª Semana de Museus.

O tema da exposição será desenvolvido por meio de oficinas, exposição de artes visuais e performances. Baseado em documentos da época realizados pelos povos escravagistas, o trabalho mistura colagens e pinturas e concebe uma viagem iniciática ao centro da memória dos povos oprimidos. A abertura acontece no dia 11 de maio, às 17h. A exposição fica em cartaz de 13 de maio a 31 de julho, das 9h às 17h, e tem entrada franca.


Projeto comemora Dia Internacional da Memória do Tráfico Negreiro e sua Abolição
Artista e curadora pernambucana, Inêz Oludé da Silva é membro do Conselho Nacional de Artes Plásticas da Unesco e do Internacional Iuoma Group. Artista multimídia, vive em Bruxelas desde 1976, onde chegou como exilada política.

Participou de exposições coletivas e individuais em museus, bienais e galerias da Europa, África e Américas. Atualmente, realiza curadorias de mostras de artistas de diversos continentes e desde 2004 dirige o Projeto 23 de agosto – Dia Internacional da Memória do Trafico Negreiro e sua Abolição.

O Museu da Abolição localiza-se à Rua Benfica, 1150 – Madalena. Outras informações estão disponíves na página do MAB.

Texto e foto: Divulgação MAB

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Subvertendo-me - Paulo Roberto da Silva


Paulo Roberto, 27.03.2013, 23.16hs.
O poeta e um dos garotos do acampamento Lamarca


Hoje acordei com vontade de deixar de ser,
De deixar de ter e deixar de lado,
Hoje preferi me ignorar,
Descomplicar e me insubordinar.
Hoje pensei em voltar o rosto,
Sentir o ar solto e me lançar no mar,
Hoje bebi o sol, comi a lua e vomitei estrelas,
Hoje perdi o rumo, segui sem prumo.
Hoje estupefato, comi no prato a doçura do mel,
Hoje virei zangão, piquei o patrão e me mandei.
Hoje pedi carona, fui chupar cana na beira da estrada,
Hoje comi goiaba, senti o cheiro da estrada.
E me mandei para Pindamonhangaba.

segunda-feira, 29 de abril de 2013


HILDA hILST - UM LUGAR AO SOL - Risomar Fasanaro
Nave/Moinho/E tudo mais serei/Para que seja leve/Meu passo/Em vosso caminho". Este é, dentre os poemas de Hilda Hilst o que mais gosto. Talvez porque houvesse o desejo de ser um dia nave ave ou moinho, para o homem de minha vida. Não fui, não sou. Quem sabe, para dar à minha presença a leveza que sempre desejei ter. Só consegui ser as hélices do moinho. Um turbilhão... quase o enlouqueci. Reconheço, e confesso esse pecado.
Li, em 1970, os poemas de Hilda Hilst, a poeta que se viva fosse teria completado 83 anos no dia 21 deste mês.
Em 1970 eu fazia um curso de Artes Industriais em Santo Amaro, e um dos meus colegas, Marcos, vivia me comparando a ela porque eu não permitia matar nenhum inseto. Ele me dizia: você parece a Hilda, a casa dela é cheia de teias de aranhas porque ela não permite que se mate nada. Que Hilda? quem era? eu não conhecia nenhuma Hilda. E ele me falou sobre ela, como vivia em uma casa em Campinas, e a cada palavra dele, mais eu me interessava. Ele me trouxe livros dela, me emprestou, leu alguns para eu ouvir, e prometeu me levar um dia, mas jamais cumpriu a promessa.
Depois, em 1973, eu fazia um curso de cinema na FGV, e lá havia outro rapaz também apaixonado pela obra dela, e, quem sabe, também por ela.
Alguns dias depois convidou toda a turma do curso, umas vinte pessoas, para ver a peça "O Verdugo", considerado seu melhor texto para teatro. Para sempre fui arrebatada pela força daquele texto, em plena ditadura, e pela beleza daqueles versos que apesar de delicados na aparência, eram tão viscerais.
Muitos anos se passaram, e no início de 2000 vi o anúncio de uma exposição no Sesc Pompeia: "Os 70 anos de Hilda Hilst".
Livros e objetos da artista estavam expostos, ali era possível percorrer o roteiro de uma vida, e naquela noite, ela estava lá, já bem doente, mal conseguia se manter de pé. Era ajudada por alguém que não vi, tão encantada estava por vê-la assim de perto.
Hilda Hilst foi uma das mulheres mais lindas de sua época, e mesmo doente, mesmo com 70 anos e todo o estrago que a bebida causara, ainda era uma bela mulher.
Minha admiração por ela era (e é) tão grande, que não tive coragem de lhe dirigir a palavra, e os livros que eu levara para pedir que autografasse, permaneceram em minha mãos.
Sempre achei que ela fora uma grande injustiçada da nossa literatura. E é difícil entender
isso, porque a juventude daquela época adorava seus poemas, suas peças de teatro, no entanto ela nunca chegou a ser muito conhecida...
Agora, meu amigo João do Reis, me mandou um artigo de Raquel Cozer, sobre a Poeta. Pois é... parece ser sina dos grandes poetas a de só ter sua obra reconhecida após a morte. Agora a editora Globo estará reeditando 21 títulos da autora, além de suas entrevistas organizadas por Cristiano Diniz "Fico Besta quando me entendem" .
Dois filmes também estão sendo produzidos: um documentário e uma ficção. Enfim, as novas gerações irão conhecer uma grande poeta da língua portuguesa, e que já tem sua obra publicada nos EUA e na França.
E para os que não conhecem seus poemas aí estão dois dos meus poemas preferidos. quem sabe as novas gerações se interessam e passem a conhecer esta grande poetam que além de ter uma obra importantíssima, teve uma vida não menos interessante.

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
desejasse.

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo.
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
**
Amavisse. Via espessa. Via vazia.
São Paulo: Massao Ohno Editor, 1989. s.p.
I
Carrega-me contigo. Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.

Carrega-me contigo.
No Amanhã
**
Quem desnudou a alma de forma tão verdadeira será sempre pouco ter sua obra reeditada. É preciso mais. Para resgatar a memória desta mulher que vivia com simplicidade, é preciso conhecer a Casa do Sol onde viveu, hoje chamada de residência artística. Uma casa planejada por ela em cada detalhe, para que servisse de inspiração para suas criações literárias. Um espaço sagrado como ela o considerava.
Fotos dos amigos ocupam uma das paredes, e os inúmeros objetos de arte que com certeza tinham para ela um significado afetivo.
Atualmente a casa recebe hóspedes, que lá se hospedam para pesquisar não apenas obras da escritora, mas sim de qualquer outro autor.
Muitas árvores e sessenta cães (hoje são aproximadamente dez) faziam parte da vida, do universo da poeta. São cães que ladram à entrada dos visitantes, e uivam à noite. Quem sabe tanto quanto seus leitores, também eles sintam saudade daquela que a eles dedicou tanto amor.



http://youtu.be/iI5djI5va7I

quarta-feira, 24 de abril de 2013

A boca da noite - Risomar Fasanaro


a boca da noite mordeu
mastigou
triturou minha alegria
sua língua sentiu
o travo da tristeza
lambeu-a
cercou-a de carinhos
e ela não mais saiu
está aqui
aninhada no meu peito

abril 2013

sexta-feira, 29 de março de 2013

Poema de Paulo Roberto da Silva

O poema abaixo é de Paulo Roberto, mais um membro da família Belo. E não é motivo de espanto, pois nesta família todos que conheço são artistas. Os poetas Antonio, Joaquim, Paulo Roberto, e Inez Oludé, artista plástica.

Subvertendo-me

Hoje acordei com vontade de deixar de ser,
De deixar de ter e deixar de lado,
Hoje preferi me ignorar,
Descomplicar e me insubordinar.
Hoje pensei em voltar o rosto,
Senti o ar solto e me lançar no mar,
Hoje bebi o sol, comi a lua e vomitei estrelas,
Hoje perdi o rumo, segui sem prumo.
Hoje estupefato, comi no prato a doçura do mel,
Hoje virei zangão, piquei o patrão e me mandei.
Hoje pedi carona, fui chupar cana na beira da estrada,
Hoje comi goiaba, senti o cheiro da estrada.
E me mandei para Pindamonhangaba.

Paulo Roberto, 27.03.2013, 23.16hs.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Dom Pedra - Antonio Belo



Pedro!, és pedra!

Tens a aspereza natural

comum aos minerais

e planos de clivagem,

ortogonais.

Para os poderosos,

difícil de engolir...

Mas, vieste do pó

e ao pó, retornarás.

Mas, tuas cinzas

não serão levadas

pelos ventos da infâmia...

Com elas, reconstituiremos,

a argamassa mais forte,

para esse mundo em mudança.

Na calada da mata,

os sicários da fazenda

te espreitam,

de armas em punho...

Mas não conseguirão

seu intento.

Sei que não usas

coletes, à prova de balas;

mas elas, não te acertarão:

O teu manto protetor

é a fé no Teu Senhor!

És filho de homem e mulher,

por isso, pregas o amor...

Nessa tua caminhada

Não andas com os filisteus.

És o líder dos verdadeiros cristãos

e dos que eram melhores,

quando eram ateus...

Teu Livro Sagrado

não contém, somente:

parábolas, hipérboles,

histórias, enredo.

Mas, a verdade absoluta,

de um Deus

que não tem medo.

Por isso, és pedra,

És Pedro!



Antonio Belo da Silva

Palmas, 03 de fevereiro de 2013


domingo, 3 de fevereiro de 2013

A Menina que queria tocar sanfona - Antonio Belo




Clarice era uma menina muito esperta. Antes de completar sete anos, já lia quase tudo. Também gostava de música. Toda tarde ficava colada no velho aparelho de rádio de válvulas da casa da sua amiguinha Helena, já que não tinha rádio em casa. Depois seu pai comprou um rádio à prestação e foi uma festa. Rapidamente ela aprendeu a imitar as cantoras mais populares da época: Emilinha Borba, Linda Batista, Nora Ney, Marlene... Ela queria ser cantora.
Toda tarde, era sagrado o programa de música da PRA-8, Rádio Clube de Pernambuco, a pioneira. E era. É a emissora de rádio mais antiga do Brasil, fundada em 1919.
Um dia ela ouviu uma música estranha, não era cantada, era só tocada. Como se diria hoje: instrumental. Não que ela não conhecesse música sem cantar, pois ouvira umas músicas de orquestra bem bonitas. Mas aquela era diferente, era um instrumento só, e desconhecido, soava mais ou menos assim: fonrom, fonronrom, fonronronronrom. Ela ficou extasiada! Mas não pode anotar o nome da música nem do homem que tocava. Ou seria uma mulher? Não dava pra saber. Mas sabia que sempre eram os homens que tocavam, nunca tinha visto uma mulher tocar.
No dia seguinte, no mesmo horário, tocou aquela música de novo. Ela chamou a mãe e perguntou: mãe! O que é essa “coisa” que toca assim? A mãe respondeu: minha filha, isso é uma sanfona. Aí, ela decidiu: não queria mais ser cantora, queria aprender a tocar sanfona...E ao final da música, conseguiu ouvir o nome do intérprete, algo parecido com “seu Vuca”. Guardou aquele nome.
Naquela época, a menina morava com a família em um bairro de Jaboatão, em Pernambuco, denominado Socorro. Era uma vila militar, pois seu pai, que era sargento do exército, servia no Quartel do 14° RI.
Por uma dessas coincidências da vida, um dia apareceu por lá, o multi-instrumentista paraibano, Severino Dias de Oliveira, conhecido pelo apelido carinhoso de “Sivuca”, que iria dar um show musical no clube dos oficiais, mas que era extensivo a todos os sargentos e suas famílias. Mesmo tocando qualquer instrumento que se conheça, o Sivuca era mais conhecido pelas harmonias que conseguia criar com a sanfona. Era sanfoneiro dos bons!



Seu João foi e levou toda a família. Tinha um filho, o mais velho, que já “arranhava” um bandolim; e diziam que a música na família era “atávica”, pois a avó materna também tocava bandolim. Quando Sivuca começou a tocar a primeira música, Clarice identificou na hora, que aquela música que ouvira no rádio, só podia ser daquele homem.

Depois que ele terminou a quarta música, enquanto deu uma paradinha para tomar um copo de água, a menina saiu correndo, lá das cadeiras e subiu ao palco. Foi uma ação tão rápida que ninguém se deu conta de segurá-la. Lá chegando, puxou na perna da calça do músico e exclamou: “Seu Vuca”, toque aquela música que faz assim: “fonrom, fonronrom, fonronronronrom, fonrom, fonronrom, fonronronronrom”. O músico não resistiu e caiu na gargalhada. Todo mundo riu. O músico, então, tomou-a nos braços, deu-lhe um cheiro nos cabelos e perguntou:
- Onde é que você ouviu essa música, minha filha?
- Foi no rádio, “Seu Vuca”, toque ela pra mim...
- Essa música se chama: “Barca Nova”. Vou tocá-la para você.
E ele tocou. Uma música muito bonita. Mesmo em ritmo “ligeiro” era uma música triste. Como pode uma música ser triste? Música é uma combinação de notas. Notas essas que, isoladamente, não fazem muito efeito, mas combinadas, o efeito pode ser até “devastador” para a nossa alma. A música não tem sentimentos, nós é que temos. Então, como se pode dizer que uma música é triste? A tristeza está em nós... O compositor apenas “junta” as nossas tristezas com as dele e as transforma em sons.
Acabado o show, a menina não cabia em si de contente. Sivuca tinha tocado para ela e ainda lhe dera um cheiro nos cabelos. Não iria esquecer isso pelo resto da vida. E as colegas, ah! Estavam para morrer de inveja. Agora não tinha mais volta: iria aprender a tocar sanfona...
Pouco tempo depois, a família teve que se mudar para São Paulo. Lá chegando, depois de resolverem as necessidades mais imediatas como: moradia e escola, lá vai a menina procurar uma escola de música. Queria, porque queria aprender a tocar sanfona.
Encontrou. Matriculou-se e começou a assistir às aulas de teoria musical. Mas tinha um problema: ela não tinha instrumento e música não se aprende somente na teoria. Seu pai não estava em condições de gastar dinheiro com aquele “capricho”. Eis que outra menina, uma vizinha, também resolveu estudar “acordeon”, como ela falava. Essa aí tinha tudo: o pai deu-lhe de presente um “acordeon”, novinho em folha.
“Nossa” Clarice praticava no instrumento da colega, e apresentou um desenvolvimento que deixava o professor abismado. Principalmente, depois que ela viu uma fotografia de, ninguém menos que, Jimi Hendrix, com uma sanfona, em um boteco. Exclamou! Até ele!!! Nossa! Eu pensava que ele só tocasse guitarra.
Tudo foi “às mil maravilhas” até que, seis meses depois o professor resolveu fazer um teste para avaliar o desenvolvimento das alunas. O problema é que essa avaliação tinha uma nota classificatória. Submetidas as alunas, nossa “heroína” tirou o primeiro lugar. Só que a colega que ficou em segundo não se conformou. E não mais permitiu que a Clarice tocasse no seu instrumento. Aí acabou a carreira musical da mais promissora acordeonista de que se tem notícia.
Palmas, 24 de janeiro de 2013

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O Homem do Sertão-Joaquim Belo


Antonio e Joaquim Belo - Dois irmãos, dois Poetas

Quando Deus criou o homem
Para viver no sertão,
Mudou a essência da fórmula
Da primeira criação...
Não usou o barro mole
Com o qual moldou Adão
Fez de quartzo, feldspato e mica,
Extrato da rocha, granito
Para suportar o sol, a seca e o atrito...

Para sobreviver na região
Não basta oração e fé
Tem que ter o couro feito de jacaré
Agilidade felina, astúcia de leão,
Saber esquivar do perigo igual a camaleão.
Aprender a conviver com a morte,
Ás vezes, até invejar a sorte,
Daquele que já morreu...
Onde havia os campos verdes
No grande sertão de outrora,
Aurora do mais belo amanhecer,
Que descia planalto ao pé de serra...
E do baixio ao chapadão...
Hoje, nada mais é do que,
Um raio xis daquele chão...
restos de mata queimada,
Rastos que a chuva nunca apagou...
Fumaças negras que saem do chão,
Das cinzas carbonizadas,
Nas caieiras de carvão.
São léguas e léguas de areias salinizadas,
Nascente de riachos que já não brotam,
Grota, vala, maçaroca e erosão...
Realidade dura que a natureza chora,
Morte prematura da fauna e da flora...
Mais um deserto em formação...
Uma tristeza emana das faces nordestinas...
Saudade do arvorar dos pássaros nas campinas...
A certeza das mortes que se espalham no chão...
Com os voos rasantes das aves de rapinas.
Restos de seres se cruzam a todo instante
Seres de rostos e vozes dissonantes...
Que alguns chamam de peregrinos,
Outros de retirantes...
Ambulantes anônimos, sem nomes.
Sem sorte, sem rumo, sem norte...
Aqui, o nome que se conhece é da fome,
E o rumo que se conhece é da morte.
Era a chuva que fazia do sertão o paraíso.
Pois, do pouco que se colhia...
Se sustentava a família
E ainda sobrava dinheiro...
Para pagar o aluguel
Das terras dos fazendeiros...
Mas quando falta o inverno,
O sertão vira o inferno,
Que Dante não escreveu...
Rondonópolis/MT, 20/01/2013.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013


Forró em Caruaru                                              Antonio Belo da Silva

Essa aconteceu em Paraíso do Tocantins, entre os anos de 1999 e 2000. Meu irmão Paulo estava de passagem para São Paulo e passou uma semana comigo.
Nesse meio-tempo, entrou em contato com o nosso irmão mais novo, Carlinhos, e combinaram vender camarões para um conhecido restaurante que havia em Palmas: “O Caranguejo”. Tudo acertado, o Carlinhos mandaria um isopor repleto de camarões, de Belém, pelo ônibus da Transbrasiliana; e nós, receberíamos na rodoviária de Paraíso. Já estava acertada a venda ao restaurante.
Aconteceu que o ônibus atrasou – coisa muito difícil de acontecer, não é mesmo?... – e estivemos várias vezes no Box da Transbrasiliana, pedindo informações sobre o horário da chegada. Até mesmo, preocupados com o tempo de viagem; pois camarão é um produto que se estraga com muita facilidade, e o gelo poderia não ser suficiente.
Notamos que, de tanto irmos ao box, acabamos chamando atenção dos dois policiais militares (um dele era cabo) que faziam a ronda na rodoviária que, como se sabe, é um local que atrai golpistas, ladrões e outros meliantes.
O meu carro, um Ford-Fiesta, tinha placa de Arapiraca, Alagoas, que juntamente com Garanhuns em Pernambuco, além de outras cidades do nordeste, goza da fama de ser uma cidade com um grande contingente de pistoleiros. Verdade ou mentira, a má fama existe.
O Paulo, depois que ouviu um dos meus Cds do Jackson do Pandeiro, não queria ouvir outra coisa, pois passou um longo tempo longe da terrinha, e lá pras bandas do norte o Jackson não era muito cultuado. Hoje a coisa é bem diferente...
Lá pela quarta ou quinta vez que paramos no estacionamento da rodoviária para sabermos do ônibus que nunca chegava, o toca fita do carro estava tocando  “Forró em Caruaru”, em um volume suficiente para ser ouvido lá da calçada da rodoviária, de onde os PMs já estavam de olho em nós...
E o Jackson, sem cerimônia, não tava nem aí:

 “No forró de Siá Joaninha em Caruaru,
  cumpade Mané Bento só faltava tu”...


  depois...


 “Nas alta madrugada
  Por causo de uma danada que vêi de Tacaratu...
  Matemo doi sordado, quato cabo e um sargento
  Cumpade Mané Bento só faltava tu”...

Aí os PMs, “apelaram”: aproximaram-se  com cara de quem não estava gostando, as mãos sobre as armas, e:
- documentos, por favor, e mantenha as mãos sobre o volante; e o senhor aí, referindo–se ao Paulo, sobre a cabeça...
- O que é isso, “seu” guarda? Somos de paz...
Mostrei-lhe logo minha carteira do CREA, com foto de 1976. Ele olhou detidamente. Devo admitir que o original atual, não fazia muita justiça à foto; os cabelos, parecendo com os de uma foto muito conhecida do Benito de Paula, há muito já tinham ido embora... mas o bigode, ah! esse era inconfundível e continuava preto como antes, e assim continuou até ser removido inapelavelmente em 2012.
- O que é que vocês tanto procuram aqui? Estão esperando alguém?
Expliquei detalhadamente que estávamos esperando um “carregamento” de camarão, etc e tal e que o ônibus estava atrasado e, portanto, estávamos preocupados.
- E o que quer dizer essa música aí?
Não aguentamos, eu e o Paulo, e caímos na gargalhada...
           
                                                  03 de janeiro de 2013

E para vocês conhecerem a íntegra da letra da música que ouvíamos, aí está:
Forró em Caruaru
Jackson do Pandeiro (Zé Dantas)
No forró de Sá Joaninha em Caruaru...
Cumpade Mané Bento só faltava tu (2x)
Eu nunca vi, meu cumpade
Forgansa tão boa
Tão cheia de brinquedo e de animação
Bebemo na função, dançamo sem parar
Num galope de matar


Nas alta madrugada
Por causo de uma danada que vêi de Tacaratu...
Matemo doi sordado, quato cabo e um sargento
Cumpade Mané Bento só faltava tu
No forró de Sá Joaninha em Caruaru
Cumpade Mané Bento só faltava tu (2x)
Meu irmão Gisuíno grudou numa nêga
Xamego de sujeito valente e brigão
Eu vi que a confusão não tardava a começá
Pois um cabra de punhá
Com cara de assassino
Partiu pra Gisuíno e tava feito o sururu
Matemo doi sordado, quato cabo e um sargento
Cumpade Mané Bento só faltava tu
No forró de Sá Joaninha em Caruaru
Cumpade Mané Bento só faltava tu (2x)
Ao doutor delegado que é veio, trombudo
Eu disse que naquela grande confusão
Houve apena uns arranhão
Mas os cabra morredô
Nesse tempo de calô tem a carne reimosa
O véio zombou da prosa eu fugi do Caruaru!
Matemo doi sordado, quato cabo e um sargento
Cumpade Mané Bento só faltava tu
No forró de Sá Joaninha em Caruaru
Cumpade Mané Bento só faltava tu (2x)