terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Trecho do NOVO LIVRO QUE ESTOU ESCREVENDO - Risomar Fasanaro

Certo dia Chico Rossi andando pela Feira de Artes na praça Duque de Caxias me contou que a escola estadual do Jardim Cipava fora desativada e que pretendia criar naquele local a vila para os artistas projeto antigo dele, e que, para isso convidara Leopoldo Lima, artista plástico que morava em Ribeirão Preto, para ali morar. Fiquei entusiasmada. Sua idéia era que o núcleo residencial abrigasse artistas da cidade para ali viverem e criarem seus trabalhos. Para isso, convidou seu primeiro e mais importante morador, Leopoldo Lima, artista plástico de Ribeirão Preto, que realizava um trabalho de altíssima qualidade, e que veio a ser espécie de guru para os artistas da cidade. Lembro-me do primeiro dia em que estive no local. Os barracões de madeira estavam muito rebentados, não havia nem luz, nem água. Apenas o espaço que servira de sala de aula e a construção de alvenaria em que antes era a diretoria da escola. Irene e eu plantamos flores na entrada e várias árvores em torno daquelas duas construções. Vários dias depois eu ía de carro com Carlos Marx e José Pessoa, então meu namorado, à Secretaria de Obras buscar tábuas, pregos, tintas...E os dois consertaram aquelas paredes para receber Leopoldo. No dia que chegou a mudança de Leopoldo estávamos lá. Com ele tinham vindo Waldomiro Sant’Anna, artista plástico e Ruthenford, ambos de Ribeirão também. Era muito engraçado ver Ruthenford, espécie de lúmpen que acompanhava Leopoldo aonde ele fosse, carregando pequenos objetos, um de cada vez, e lentamente levar do caminhão até o interior do único cômodo de alvenaria, que foi onde Leopoldo se instalou, enquanto nós descarregávamos as peças mais pesadas. Alguns dias depois voltamos lá. De longe vi a cortina feita com roupinhas de crianças emendadas, enfeitando a janela daquele cômodo onde Leopoldo se instalara.. Naquele instante tive consciência de que Leopoldo era alguém muito especial. Fisicamente, ele era a cópia fiel de Van Gogh: magro, barba e cabelos ruivos, olhos intensamente azuis e de uma ternura sem limites. Calmo, tranqüilo, ficava horas esculpindo seus quadros em tábuas de caixotes de maçã. Mas isso não evitava que de repente se irritasse com os que o rodeavam e expulsasse todo mundo. Só conheci seu lado terno. Tivemos Carlos, Irene, José e eu o privilégio de ser amados por ele. Não sei hoje se consegui captar toda a grandeza daquele gênio. Minhas lembranças dele são tão preciosas que posso dizer, mesmo não gostando de adjetivos, que jamais conheci pessoa tão extraordinária, e que sim, eu conheci e convivi com aquele verdadeiro artista, único em tudo. E as lembranças que tenho dele não consigo registrar porque elas vivem dentro de mim, não fazem parte do que é material. Antes de derrubarem a Vila fui até lá certo dia, queria reviver tudo aquilo, mas o clima daquela época, as lembranças das pessoas com as quais convivera não existia mais, a riqueza do que eu vivera só estava em minhas lembranças. Não vendia nenhum de seus trabalhos, por isso, vivia em uma situação de extrema pobreza. Diziam que em Ribeirão Preto, a mulher dele às vezes se revoltava e vendia-os escondido. Entusiasmei-me com seus trabalhos e ele me convidou para aprender a esculpir. Assim, formamos um grupo e embora eu não tivesse nenhum talento, continuei o curso só para ficar perto dele, para conviver com aquela pessoa tão sábia, tão carismática. Na turma de alunos havia gente de talento como Regina Célia Crepaldi e o Cido, cujo sobrenome não me recordo, e que foi o melhor aluno que Leopoldo teve em Osasco. O curso de pirogravura e entalhe alcançou tanto sucesso, que o prefeito resolveu fazer uma cerimônia com coquetel e tudo, para a entrega dos certificados. Durante a cerimônia Rossi falou sobre a importância da criação de um espaço de convivência para os artistas, que agora tinham onde morar e realizar seus trabalhos e ensinar o que faziam. Depois, convidou o Leopoldo para fazer um discurso. Antes não o tivesse feito. Leopoldo com a roupa despojada de sempre, as sandálias de couro franciscanas talhadas por ele a canivete, denunciou as péssimas condições dos barracões, disse que não havia nem água nem luz, que ele tinha precisado tirar luz da favela, para poder viver ali. Que daquele jeito “ chefe, não dá pra ficar ali. Até agora não tive condições de trazer minha família. Aquilo ali tá uma merda!...” e enquanto Rossi disfarçava, nós já carregávamos Leopoldo para comer uns salgadinhos. A família do artista esteve na Vila em algumas ocasiões, mas não conseguiu viver ali, devido à falta de infra-estrutura. Além de Waldomiro Sant’Anna, o Mirinho, artista plástico de Ribeirão, e de Ruthenford, o pintor Paulo César também passou a residir na Vila. Ruthenford era uma figura muito especial. Engraçadíssimo. Ele e Leopoldo nos contavam mil aventuras que tinham vivido, entre elas que em Ribeirão os professores universitários levavam Ruthenford para dar a aula inaugural para os calouros de medicina, e que o Ruthen enrolava os calouros, mandava-os anotarem tudo que ele dizia, e só no final da exposição é que revelava que tudo aquilo não passava de brincadeira. Em 1973 realizávamos a Feira de Artes na Praça Duque de Caxias todos os domingos. Carlos Marx, José Pessoa, Irene e eu a coordenávamos, e era um sucesso. Era ali que Leopoldo expunha seus quadros de entalhe. Todos os domingos a feira ficava lotada. Artistas de São Paulo e de outros municípios também traziam seus trabalhos. Além de artesanato, promovíamos apresentações musicais e para incentivar a participação, entrevistávamos os expositores e publicávamos as matérias em uma página que tínhamos no “Jornal de Osasco” intitulada “Veredas”. Um dos expositores da feira era o José Ranciaro que além de artesão era marceneiro. Leopoldo Lima o convidou para ir até a Vila, e conhecendo seu trabalho, sua garra, convidou-o para morar lá. José Ranciaro aceitou o convite, e a partir dali, a Vila tomou um novo impulso. Ele e sua companheira Elisete, tornaram-se os coordenadores daquele espaço. Ele passou a se chamar Zé da Vila, e ela Baiana. Àquela altura muitos outros artistas passaram a

domingo, 5 de fevereiro de 2023

"A derrota - reflexões desordenadas de uma geração" - João dos Reis

Caros amigos/as Estou retomando minhas memórias a partir do projeto de filme de Heliana/Carlos Henrique sobre Carlos Alberto Soares de Freitas, militante da VAR Palmares, desaparecido político. Envio um texto do livro de Carlos Henrique "A derrota - reflexões desordenadas de uma geração" (2016, edição particular), em que sou citado por ele (página 171), e que ele reflete sobre a condição de exilado - um carioca que esteve no Chile, na Argentina, viveu em São Paulo, e agora, está há anos em Portugal. um abraço João "Leio com admiração os muitos episódios relatados pelo antigo companheiro da VAR de Osasco, João dos Reis, que nos conta as histórias de dezenas de militantes do movimento operário, dos movimentos de base da Igreja progressista, da feroz repressão que levou tantos à prisão, nesta aguerrida cidade operária. João dos Reis é um cronista político e social de sua cidade, de sua família, com tanto para contar. A vida do constante exilado leva-o a ter muitos laços e nenhum. Ele é sempre um pouco estranho ao ambiente, país, cidade onde vive, tantas foram. Por mais que se entrose e até alcance algum protagonismo político ou social, como foi o meu caso em Portugal, somos sempre estrangeiros, como também me sentia em boa parte em São Paulo. São poucos os migrantes que enraízam-se de vez, de corpo e alma, em outras cidades".

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Recordando Felis Penkal, de Araucária/Curitiba - João dos Reis

“Meu coração,É um quarto de espelhos,Que reflete e multiplica, Infinitamente, Uma impressão” Helena Kolody, início do poema “Sensibilidade”. Felis Penkal veio ao meu encontro na Lanchonete Badech em Araucária, PR, com um pacote de feijão – que ele plantou e colheu. Foi um dos presentes que recebi mais inesperados e preciosos.Depois, para retribuir a gentileza do jovem agricultor,4disse que lhe mostraria o mar – que ele ainda não conhecia.Cumpri a promessa: combinamos um dia e fomos até Paranaguá. Almoçamos, passeamos pelo porto, estivemos no Mercado Municipal para comer pastel de camarão. No Iate Clube, realizamos um passeio de barco pela baía: foi a primeira visão dele do oceano Atlântico. Depois, à tarde,4caminhamos pela praia.Nas nossas conversas, perguntava sobre os antepassados poloneses:4se conversavam em casa e se ele entendia a língua do compositor Frederic Chopin. Tinha curiosidade em conhecer a comunidade da Europa Central na região metropolitana de Curitiba4– como eram as festas, as relações de amizade e de parentesco. Com ele aprendi a pronunciar corretamente “pierogi”,um pastel típico da Polônia, que eu descobri na minha temporada no Sul e que gostava bastante.As preocupações de Felis eram com a terra, o clima – a semeadura, a colheita de soja, milho, feijão. As mudanças da estação – verão, outono, inverno, primavera – eram o assunto principal em nossas conversas. Será que choveria? Ou haveria um período de seca? Procurou mudar de ocupação e conseguiu um emprego em uma madeireira; uma única vez o ouvi reclamar: era um trabalho muito pesado – e voltou para a lavoura. Eu o observava, mergulhado em silêncio:4 ele estava feliz?No encontro4de despedida com Felis, ele me trouxe um novo presente: um pacote de pinhão – que ele4e suas irmãs recolheram 4um a um do chão – uma colheita que só é possível depois da queda4da pinha do pinheiro-do-paraná a partir do mês de março.Em minha casa em Cotia, recebi três telefonemas: no réveillon de 2005, a notícia do falecimento do pai de Felis; e depois, a do seu casamento com Magda, e a do nascimento do primeiro filho, Juan Guilherme.Felis vive no sitio da família em Araucária, PR. Conversamos por telefone ou por mensagem de texto:4 como está a vida, os novos desafios do presente,4o trabalho na terra.4Juan Guilherme, o piá paranaense, é o futuro dessa história de amizade e de esperança em dias melhores no Sul do Brasil.“Você nunca vai saberquanto custa uma saudadeo peso agudo no peitode carregar uma cidadepelo lado de dentro”4 Paulo Leminski, inicio do poema “objeto sujeito”.NOTA:- Poema “Sensibilidade”, de Helena Kolody, in “Luz infinita”, Museu-Biblioteca Ucranianos em Curitiba, Curitiba, 1997, edição bilíngue português-ucraniano, p.458;- Poema “objeto sujeito”, de Paulo Leminski