segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Linguagem & Exclusão - Risomar Fasanaro


Minha amiga Alfredina Nery, que também é professora de língua portuguesa e de literaturas brasileira e portuguesa, me presenteou com o livro “A Língua de Eulália”, de Marcos Bagno. Graças à leitura desta obra e a longas conversas com ela, passei a refletir mais sobre a linguagem oral e o preconceito de que ela é vítima.
Atenta às observações que as pessoas fazem a respeito das “incorreções” da linguagem do povo, resolvi me aliar a alguns linguistas, e defender a forma de falar de grande parte da população.
Um dia estava no elevador do prédio com o jornal do dia, e ao olhar a primeira página comentei com um rapaz que tinha vindo consertar alguma coisa no condomínio: “nossa!...só traz notícias ruins.” E ele concluiu: “pois se é disso que ele vévem...”
Naquele instante constatei o quanto a língua é um divisor de águas entre os incluídos e os excluídos. Já passara da hora de eu escrever sobre o assunto. A exclusão se estampava naquela figura simples, vestida humildemente, calçando sandálias havaianas.
Aquele rapaz expressava seu pensamento em uma variação de língua não consagrada pela gramática normativa, mas revelava a consciência que ele tem, capaz de reconhecer seu papel de cidadão, e de perceber claramente que a mídia, em nossa sociedade, enxerga muitas vezes, apenas uma fatia da realidade: a das tragédias humanas, aquela que produz lucros. “notícia boa não vende” é o que dizem.
Faz algum tempo, em um curso de “Políticas públicas para mulheres” que fiz, ouvi de uma das presentes: “eu sinto vontade de falar, de participar dos debates, de dar minhas opiniões, mas tenho medo de falar errado e as pessoas rirem de mim”.
Aquele desabafo me causou profundo mal-estar. Saber que a linguagem, um dos mais importantes instrumentos que existem para promover a comunicação entre as pessoas, pode se tornar uma barreira, e, o que é pior, pode promover a exclusão, exige dos que a utilizam como instrumento de trabalho, alguma (re)ação.
Mas nem sempre pensei assim. Houve um tempo em que meus ouvidos faziam “toiiimmmm” cada vez que ouvia alguém se expressar diferentemente das normas gramaticais. O encontro com aquele rapaz no elevador me deixou feliz. Feliz por perceber quanto eu mudara, o quanto agora eu entendia e compreendia a língua brasileira, a língua do meu povo que, ao contrário do que pensam os que ditam suas normas, ela não é pobre, não é corrompida, nem está na sarjeta, como ouvi alguns dizerem. Ao contrário, ela segue o caminho natural que é o dinâmico, passa pelas transformações a que todas as línguas vivas estão sujeitas.
A cada momento que um brasileiro inventa uma palavra, a cada instante em que ele supre um s, troca um l por um r, ou traz para nosso vocabulário uma palavra árabe, norte-americana ou japonesa...sei lá, ela se enriquece.
Vamos defender a leitura de obras literárias sim, mas não façamos delas “camisas-de-força” que obriguem as pessoas a falar exatamente como se escreve. Por enquanto língua falada é uma, escrita é outra.
Que o exemplo de Guimarães Rosa, Monteiro Lobato, Aluísio Azevedo, João Antônio e Lima Barreto, esse último usou até gírias em “Triste fim de Policarpo Quaresma”, todos defensores da linguagem popular, seja seguido e inspire outros autores a utilizá-la em seus escritos. Quem sabe passemos a ver essas fugas das normas oficiais não como incorreções, e sim como fazendo parte da língua. Uma língua que há muito já deveria se chamar de brasileira.
Aos que acham que ela deve ser fiel ao português de Portugal, pergunto: é possível hoje excluirmos do nosso vocabulário palavras como: sachimi, deletar, quibe e tantas outras? É interessante exigir que nosso povo diga dois reais, nós fazemos, nós iremos, quando ele já consagrou “dois real”, “nós faz”, “nós vai”?
Os que têm consciência disso, devem continuar insistindo pelo direito de todas as variações de usos da língua serem consideradas em sua riqueza de conteúdo. A língua falada de um país é a da classe dominante. Assim, nosso papel enquanto pessoas que têm o objetivo de construir um país verdadeiramente democrático, é o de brigar para que nossa língua nunca se feche às transformações dos que “vévem” à margem das gramáticas.
É preciso lembrar que a literatura sobreviveu muitos séculos completamente independentes da gramática. Homero escreveu a “Ilíada” e a “Odisseia” no século VI antes de Cristo, enquanto as gramáticas gregas só surgiram no século II AC.
Não vamos esquecer o poeta pernambucano Manuel Bandeira que em seu poema “Evocacção do Recife”, em 1930 já reconhecia a beleza da língua do povo:
“...a vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/vinha da boca do povo na língua errada do povo/língua certa do povo/porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/ao passo que nós/o que fazemos/ é macaquear/ a sintaxe lusíada”


sábado, 1 de agosto de 2015

2015: um encontro de amigos em Osasco - João dos Reis



Para Ewerton Antunes e Arthur Antunes, de Curitiba

“Estamos os meus amigos. (...)
Os gestos, a alegria
do encontro tornara-os ternos e desajeitados.
Mais do que dirigindo-nos a nós próprios,
fazíamo-lo para uma presença imaginária,
a secreta corrente que cada um unia, e,
mais secretamente ainda, dois e três escondia.(...)
Os meus amigos falam, falam todos ao mesmo
tempo e não se entendem.
E quanto mais querem dizer mais abraços dão”
João Miguel Fernandes Jorge, inicio do poema “Jantar em Alcabideche”.

No restaurante “La Manchega” em Osasco, Albertino revela as dificuldades da Comissão da Verdade de Osasco. José Geraldo nos conta do período e que ele e o filho estiveram com dengue; e da viagem ao campo de concentração Auschwitz na Polônia. Risomar descreve o personagem do livro que está terminando de escrever. Toninho nos fala da cela no DOPS do Largo General Osório onde esteve preso nos anos 70. Espinosa anuncia a série de artigos que está escrevendo sobre a universidade pública. Airton mostra o entusiasmo com o curso de Fenomenologia que está frequentando na USP.

O grupo se reúne mensalmente para um almoço de confraternização há quatro anos. Albertino Souza Oliva, advogado, participou do movimento emancipacionista de Osasco. José Geraldo Vieira, advogado, esteve ligado ao movimento dos padres operários – e é o principal idealizador desses encontros. Risomar Fasanaro, professora de Literatura e Lingua Portuguesa, ativista cultural que esteve ligada aos artistas que agitaram a cidade desde os anos 60. Antonio Vieira de Barros, operário, participou da JOC, da Frente Nacional do Trabalho e da Oposição Metalúrgica. Antonio Roberto Espinosa foi do comando da organização guerrilheira VAR-Palmares e proprietário do Jornal “Primeira Hora”. Airton Cerqueira Leite, professor de Geografia, militou na Apeoesp, sindicato dos trabalhadores da educação pública.

Sobre o que conversamos? Nossos diálogos não têm roteiro; nossos almoços não têm data nem dia definidos: é um encontro de amigos para trocar idéias, revelar as agruras do cotidiano, expor as dificuldades e os novos projetos – uma celebração à vida e ao futuro.

Estivemos sempre ligados por laços de amizade e de ideais políticos. A passagem do tempo não nos afastou, apesar dos caminhos que cada um de nós percorreu. O que nos aproxima ainda hoje? Penso que é o compromisso com a luta da classe trabalhadora, a defesa de um humanismo radical, de uma sociedade com justiça e igualdade.

Todos participaram da vida sindical e política na cidade. Albertino e José Geraldo como militantes e da assessoria jurídica da Frente Nacional do Trabalho; Toninho e Airton como sindicalistas; Risomar como militante sindical e da cultura; Espinosa como jornalista e professor universitário.

Em muitas outras reuniões os amigos estiveram presentes: no Partido dos Trabalhadores, na Frente Nacional do Trabalho, no sindicato, na vida cultural da cidade. Acredito que em nenhuma dessas ocasiões ficou evidente como nos nossos almoços-encontro: a amizade fraterna e solidária – que sobreviveu aos anos do terror policial, aos dilemas da redemocratização, à partida definitiva de companheiros, aos embates da vida presente.

E vocês me perguntam: quem sou eu no grupo de amigos do passado? Sou o “secretário” indicado por eles para articular o encontro, marcar o dia, escolher o restaurante, enviar e-mails para os convidados. Como no verso final de João Miguel Fernandes Jorge, estou presente entre meus amigos e, em silêncio, “olhava-os como vocês, leitores, nos estão a olhar agora”.