sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O REENCONTRO da VAR-PALMARES - Risomar Fasanaro


Ali estava eu, entre o seletíssimo grupo de convidados para o reencontro dos guerrilheiros que fizeram parte da VAR-PALMARES. E foi difícil conter a emoção ao ver de perto muitos daqueles pelos quais tantas vezes meu coração disparou de revolta, se encolheu de tristeza, ou pulou de alegria a cada ação bem sucedida...
Por eles, anos e anos eu “devorara” a “Folha”, o “Estadão” , o “Pasquim”, o “Movimento”, “Em Tempo”, “Versus” e outros da imprensa nanica, tentando encontrar alguma notícia; quase sempre inutilmente. Elas nos chegavam nas entrelinhas dos versos de Camões, ou eram o sal das receita culinárias do “Estadão”. Poemas que não decifrávamos, pratos que não saboreávamos, apenas nos aguçavam a curiosidade e o medo.
Elas nos vinham de outras fontes: dos irmãos de Espinosa, da mãe de Ibrahim, dos irmãos de Roque...
Um dia a mãe de Aninha tirou dos canos do fogão uma carta dela que estava no exílio; tão amassada, tão desgastada, que mal dava para ler o que a filha escrevera. E constrangida, ela nos aconselhou a não ir mais lá, pois a casa era vigiada noite e dia, e corríamos o perigo de ser presas.
Restava-me recortar as poucas notícias dos jornais que me chegavam, arquivo que após minha prisão no Recife meu pai colocou em uma lata, enterrou no quintal e nunca soube localizar, mesmo depois que o pesadelo acabou.
Que rostos teriam aqueles rapazes e moças que arriscavam a vida naquela luta de Davi contra Golias? Sentiriam fome, sede, frio?
Quantas vezes, sentada no chão de alguma das inúmeras repúblicas de estudantes da época, chorei ao lado de amigos, ouvindo Chico, Vandré, Gonzaguinha, Taiguara?
E como festejara a cada embaixador sequestrado e trocado por alguns dos que ali estavam...Naquelas ocasiões era “Gracias a la vida” que ouvíamos na voz de Violeta Parra...
E que alegria fora a volta do exílio do poeta Thiago de Melo, que veio à casa de Ibrahim, trazendo notícias dos que estavam do lado de lá...
Enquanto eles tomavam vinho e conversavam alegremente na noite de 15 de novembro no Encontro dos militantes da VAR-Palmares, eu rememorava muitos dos momentos que vivera naqueles anos difíceis. Lembrei-me das vezes em que junto com outros amigos arrancávamos os cartazes de “Procurados”. Operação que precisava de umas três pessoas, e envolvia certo risco, mas que risco era aquele, diante do que eles enfrentavam?
Alguns não tinham podido vir àquele reencontro, mas muitos estavam ali. Naquelas mesas repletas do que falariam? Relembrariam passagens nas operações arriscadas, nos aparelhos, nos presídios? Relembrariam os amores vividos na clandestinidade, ou evitariam falar do passado e falariam só do presente? Não sei. Circulando pelas mesas ouvi apenas fragmentos de conversas.
Enquanto conversavam, por minha cabeça passava um “filme”. Lembrei-me das reuniões na Biblioteca municipal de Osasco, quando despontaram as lideranças de Espinosa, Roque, Barreto, Aninha.
“Revi” um dia em que Espinosa e eu fomos encarregados de pintar uma faixa, para a passeata de protesto pela morte do estudante Edson Luis de Lima Souto, e, inexperientes, pintamos o tecido sem colocar jornal embaixo do pano. Aquele descuido me custou mais de uma semana passando palha de aço, para apagar “Abaixo a ditadura” do assoalho da sala, além de despistar os familiares, para não descobrirem que eu estava envolvida no movimento contra a ditadura.
Depois, Espinosa, Roque, Aninha, Barreto e Ibrahim sumiram. Nunca mais as portas da biblioteca se abriram aos domingos, os que nela se reuniam partiram sem dizer adeus, e as ruas da cidade nunca me pareceram tão desertas.
Depois começaram a chegar as notícias: Espinosa preso, Aninha, Roque, Ibrahim e Osni no exilio, João Domingues, Barreto e Lamarca mortos, entre tantos outros que eu não conhecia pessoalmente.
Pouco podíamos fazer além de ir aos inúmeros atos de protesto, às reuniões mantidas sob o maior sigilo, e, enfim...surgiu o movimento pela Anistia, talvez o movimento que tenha reunido mais mulheres neste país. Comecei a participar com Iracema dos Santos, a mãe e as sobrinhas de Ibrahim e muitas outras mulheres da cidade.
Mas naquela noite de sexta-feira, o encontro organizado por Espinosa e João dos Reis, todas aquelas lembranças faziam parte de um passado distante. Ali não havia espaço para a tristeza, mas sim para festejar a vida. Era o reencontro de amigos. Amigos verdadeiros que, como tão bem disse Roberto Espinosa, “o amigo torna-se uma parte do nosso corpo, a principal de todas elas, sem a qual a vida não tem sabor, rumo ou graça.”
Sim, o que eu vi ali foi um imenso coração que durante anos difíceis se dividira em mil pedaços, e naquela noite aqueles pedaços voltavam a se unir e a formar um só.