domingo, 17 de maio de 2015

O Último adeus:meu avô Marcelino Matheus Ferro - João dos Reis



Para os Razera: Gustavo, João Argemiro e Maria Aparecida

Meu avó Marcelino se despedia de mim na estação de trem de Duartina, no Estado de São Paulo. Estava de partida para Osasco, depois das férias de verão na minha cidade natal. De volta à metrópole, distante quase 400 quilômetros dos queridos avós, tios e primos, vinha com o coração carregado de saudades - e de um presente: a bíblia do século 19 que ele trouxera de Portugal quando chegou ao Brasil em 1926.

Durante muitos anos, eu, um jovem estudante-trabalhador, depois professor, revisitava a cidade do interior. E, quando ainda existia a linha férrea de transporte de passageiros, era meu avô que me acompanhava, quase sempre, até à estação. Ele era muito calado e, antes de me despedir, beijava a mão dele, como fazia desde criança, e lhe agradecia em silêncio pela garrafa de vinho que abrira no almoço para comemorar a minha visita.
Em uma das despedidas, meu tio Toninho (Antonio Herculiani), pediu licença na oficina de marcenaria em que trabalhava, e gentilmente foi minha companhia até à estação.

Nunca me esqueci do abraço quando se aproximava o trem, esse gesto de gentileza e carinho: o último adeus sempre foi acompanhado de tristeza. Parece que me despedia de todos para sempre, mesmo sabendo que voltaria no próximo ano para visitá-los.

Tia Isaura era a correspondente epistolar da família espalhada pelo nosso planeta. Ela me entregava para ler as cartas dos que viviam em Angola, França e EUA – a saga dos portugueses que partiram para um novo país, um novo continente. Em uma delas, e que comentei com meu avô, falava da forte nevasca nas aldeias de Penhas Juntas e Falgueiras na província de Trás-os-Montes, que impediu que os moradores saíssem de casa por vários dias.

Essa volta às origens esteve marcada pelas orações, realizadas pela minha avó Elisa de Jesus Ferro. Era uma reverência aos nossos mortos – e que mereciam as nossas preces. Acompanhei-a em muitas tardes ao cemitério da cidade, e diante do túmulo da familia, roguei por eles – pedindo a misericórdia divina, o descanso e a paz eterna.

No álbum de fotografias, revisitava os nossos familiares - era um retorno à história da imigração europeia para a América. Ouvia os relatos da longa travessia do Atlântico de navio, das dificuldades dos primeiros anos, do trabalho no campo. A ligação com a terra brasileira surgia logo que eu chegava de viagem: a avó Elisa me pedia que fosse ver a horta e o jardim – em que ela cultivava, com orgulho, roseiras, palmas-de-santa-rita, tomates, couve, almeirão, e onde havia limoeiros e figueiras.

Ainda hoje, quase um século depois, minha mãe lembra que ia, nas primeiras horas da manhã, para a lavoura de algodão nas fazendas da região de Bauru.

Não recordo dos meus bisavós italianos– eles partiram de Verona e chegaram ao Brasil em 1888, ano da libertação dos escravos. Trabalharam nas fazendas de café - viveram na região de Campinas, no distrito de Sousas. Minha avó Pasqualina Negrini dos Reis, provavelmente me contaria suas lembranças, mas faleceu em 1953, quando eu tinha 4 anos.

Nas manhãs em que minha avó Elisa preparava o forno a lenha para o pão e o almoço com os meus pratos preferidos – lombo assado ou bacalhau à moda transmontana – conversávamos sobre o passado. Foi nesses diálogos que fiquei sabendo da saga dos Negrini, contada por ela, que foi amiga da minha avó Pasqualina. Era um piá e, mais tarde, um jovem que gostava de ouvi-la. Todos vieram para o Brasil em busca do sonho americano, e eu procurava me reencontrar nessas esperanças de uma vida melhor. Foram anos em que refleti sobre o que o destino me reservava. Foi uma aventura às vezes inglória e desesperada, a de saber qual é o mundo que tanto sonhamos para viver e ser felizes.

Os documentos pessoais de tia Isaura e avó Elisa, as cartas que receberam ao longo dos anos dos parentes, se perderam. Guardei o registro de identidade do avô Marcelino – e os entreguei para meus primos Miro, Cidinha e Gustavo, que também ficaram com a bíblia e o álbum de fotografias. A estação da estrada de ferro da cidade foi demolida. Os limoeiros e as figueiras não existem mais. Não há mais documentos da história dos imigrantes - apenas as imagens e as recordações na minha memória.

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