segunda-feira, 16 de julho de 2018

16 de julho de 1968: a Greve de Osasco - Risomar Fasanaro



26 de julho de 1968: a Rua da Estação estava completamente deserta. Um vento frio soprava sobre os trilhos, levantando alguns panfletos. Abaixei-me e apanhei um. Estava sujo, úmido e rasgado. Ora, já fazia dez dias que os operários tinham entrado em greve, mesmo assim ainda existiam alguns daqueles panfletos? Foi a pergunta que me fiz. Não, não era. Era o folheto de uma vidente que prometia desvendar o futuro.E prometia a felicidade a quem a consultasse Saberia ela o que iria acontecer com Barreto, Espinosa, Groff, João Joaquim, Roque, e tantos outros? Teria ela poderes para mudar os seus destinos?

As traças da memória teimam em apagar as imagens daquele dia 16 de julho, mas não conseguem. Elas permanecem impressas com mais nitidez do que qualquer filmadora hoje consegue registrar os acontecimentos.

Naquela manhã do dia 16 de julho, quando a sirene da Cobrasma que todos os dias tocava pontualmente às seis, às doze, e às dezoito h, excepcionalmente tocou às 8h45, a cidade se surpreendeu. Alguma coisa estranha estava acontecendo.

Só os operários sabiam que aquela era a senha para paralisarem as atividades e ocuparem, primeiramente, a Cobrasma e depois as outras fábricas nos horários combinados nas reuniões de preparação do movimento.

Era um dia muito frio e assim que a notícia da greve chegou ao poder, o centro da cidade foi totalmente tomado por tanques de guerra e brucutus. Muitos policiais e militares do exército circulavam pelas ruas, ou ficavam parados nas esquinas. Os quartéis de Quitaúna entraram em prontidão e, por isso, todos usavam roupas camufladas.

A população, que já vivera aquele clima quando se instaurou o golpe militar, voltou a ficar amedrontada. Em quase todas as famílias existia algum operário, e quem não tinha nenhum familiar nas fábricas, tinha amigos, por isso todos estavam apreensivos.

Meu pai fora ao mercado municipal naquela manhã e trouxera a notícia: a Cobrasma está em greve. As ruas do centro estão lotadas de tanques de guerra e soldados do exército. Ouvindo aquilo, senti um aperto no coração. Ali trabalhavam meus amigos, estudantes-operários com quem me reunia aos domingos na Biblioteca Monteiro Lobato para discutir política estudantil. Fiquei apreensiva.

Na hora do almoço, Leovil, um amigo de infância que morava em minha casa, e trabalhava na Cobrasma, chegou contando: “a fábrica está em greve e seu amigo Roque estava lá de manhã, com um revólver na mão, impedindo a entrada dos operários.


Naquele dia, as mulheres e crianças que ficavam encostadas na cerca em frente à fábrica na hora do almoço, com as marmitas que traziam para os familiares, sempre amarradas em panos de pratos muito brancos, não vieram.

Assim que soube, liguei o rádio e fiquei escutando as notícias, mais ágeis que as da tevê, que naquele tempo reproduziam mais chuviscos que imagens.

Na verdade, só muitos anos depois vim a conhecer alguns detalhes daquela greve. E são tantas histórias, tantos fatos, que aqui só posso me ater a algumas pinceladas, que retirei de um livro que comecei a escrever e não sei se um dia irei terminá-lo.

Entrevistei vários daqueles grevistas e ouvi deles que logo pela manhã as sandálias franciscanas de José Campos Barreto, o principal líder da greve, rebentaram e ele ficou andando descalço ali dentro da fábrica entre limalhas de ferro e cavacos de madeira, orientando o movimento. Correndo o risco de se ferir.

Por ordem do comando de greve, os operários desligaram as luzes assim que deflagraram a paralisação, todos caminhavam no escuro; isso dificultava a ação da polícia, pois os operários conheciam bem o local.

Contudo, o momento difícil que viveram não os impede de relembrar algumas cenas pitorescas.


Havia na seção de acearia um depósito de areia que se utiliza na confecção dos moldes e que ficava na parte externa. Era uma duna enorme, com uns 400m só de areia.
João Joaquim conta que “o medo era tamanho que dois operários, apelidados de Quingão e Quinguinho, se enterraram naquela areia e ficaram apenas com o pescoço de fora. A repressão passou várias vezes por eles, sem vê-los, por pura sorte...

Quando a polícia entrou na Cobrasma, João Joaquim correu e entrou em uma caixa de fundir aço e se escondeu lá dentro. Aí os policiais o descobriram e começaram a gritar: Ah...seu negro desgraçado, você está aí? E ele, que é muito bem humorado, saindo da caixa gritou: “srs. Policiais, olhem que incêndio danado!!!...” Quando os policiais se viraram para a direção que ele apontava, João Joaquim pulou a caixa e saiu correndo.

Outra passagem engraçada foi com Albino Pinto Rosa, um evangélico. Ele também se escondeu em uma caixa; quando os policiais iam saindo, Albino se levantou e gritou: Glória a Jesus, irmãos! Os soldados se voltaram e vendo-o, exclamaram: ah...é glória a Jesus, é? E o levaram embaixo de cassetadas.


No início da noite, os grevistas aproveitaram alguns gravetos, restos de papéis e de plástico e acenderam fogueiras em torno dos muros, no interior da fábrica. Elas possibilitavam a visão do pessoal de confiança deles que ficava em torno dessas fogueiras. Ninguém podia sair, nem entrar.

Os líderes permaneciam ali, junto com cinco, seis companheiros em torno das fogueiras, porque alguns operários, com medo, ficavam apenas alguns instantes e saíam, e com a permanência dos líderes ali, junto com eles, se sentiam mais seguros. As fogueiras possibilitavam à liderança saber com quantos podia contar.

Inácio Gurgel, diz que elas davam um ar lúgubre ao ambiente e que até hoje aquela lembrança lhe traz uma sensação ruim. Para ele, o mais difícil naquele primeiro dia de greve foi ficar ali junto daquelas fogueirinhas que pareciam cena de um velório.

Para convocar os outros trabalhadores no segundo dia de greve, foi preciso redigir um panfleto futurista, pois só havia mimeógrafo a tinta, e o José Dirceu que se prontificou a ajudá-los, pediu o texto com quatro dias de antecedência pra dar tempo de rodá-los. Foi assim que Roberto Espinosa e Roque Aparecido da Silva imaginaram o que aconteceria e redigiram:

“Ontem, às 8h45 da manhã, um toque extra da sirene deflagrou a greve da Cobrasma; às 12 horas, horário do almoço, os trabalhadores da Barreto Keller também pararam e foram em passeata para o Sindicato e, em assembléia, decidiram ficar em greve por tempo indeterminado. Ás 14h, horário da troca de turno, os trabalhadores da Lonaflex também decidiram decretar greve e ocupar a fábrica por prazo indeterminado. Quando às 9h os operários ocuparam a Cobrasma, eles se reuniram dentro da fábrica e decretaram greve e ocupação da fábrica, por tempo indeterminado”.
Bons videntes, Espinosa e Roque viram até às 14h do dia 16, tudo acontecer exatamente como haviam escrito no panfleto. Depois houve algumas diferenças em função de interferências indevidas como a da repressão que começou a mudar o rumo dos acontecimentos, mas isso não quer dizer que não contassem com a repressão. Só que não sabiam que rumos e conseqüências ela traria.
No dia 16 a Cobrasma e a Lonaflex estavam ocupadas, e eles contavam com a paralisação da Brown Boveri e da Braseixos. Segundo João Joaquim, às 12h00 a Barreto Keller e a fábrica de fósforos Granada paralisaram e aproximadamente quatrocentas operárias, junto com os operários da Barreto Keller, saíram em passeata, passaram em frente ao portão da Cobrasma e se dirigiram ao Sindicato dos Metalúrgicos, em Presidente Altino. As operárias aplaudiam os metalúrgicos e davam vivas à greve.
Enquanto isso, no Sindicato dos Metalúrgicos, sob a liderança de Ana Maria Gomes, a Aninha, as mulheres se reuniam em uma sala, para discutir os problemas que enfrentavam na fábrica e que as levara a paralisar.

Às quinze horas chegaram alguns representantes do Ministério do Trabalho ao Sindicato, para tomar conhecimento oficial das reivindicações dos grevistas e tentar iniciar negociações com os dirigentes sindicais. José Ibrahim, então presidente, recebeu-os informando quais eram as reivindicações, e esclarecendo imediatamente que o sindicato apoiava a greve, mas que não estava autorizado a negociar em nome dos grevistas. Essa era uma das resoluções tiradas na assembléia dos trabalhadores em greve na Cobrasma. A de que todas as negociações com os representantes do Ministério do Trabalho e com os patrões, seriam efetuadas pelos grevistas em assembléia. Esta posição refletia o radicalismo da nova liderança sindical que buscava romper com a prática anterior das direções anteriores.

Antes, as greves eram decididas em assembléias sindicais minoritárias e impostas à grande massa através dos piquetes. Os acordos e decisões de volta ao trabalho muitas vezes aconteciam sem nenhuma consulta aos trabalhadores em greve.
Com aquela decisão, os representantes do Ministério do Trabalho decidiram ir à Cobrasma, para saber quais as decisões da assembléia dos grevistas. Eles as apresentaram, deixando clara a firme decisão de que não voltariam ao trabalho, enquanto suas reivindicações não fossem atendidas.

Sentindo a firmeza dos grevistas, os representantes do Ministério disseram que estudariam as reivindicações e depois voltariam para dar uma resposta. Em poucas horas chegava a resposta: às 20h30 tropas de choque da polícia militar cercaram a Lonaflex com cavalaria e carros de combate (brucutus e tatus), sob o comando de um major do Exército. Ao mesmo tempo, pelotões da Polícia Militar ocupavam os principais pontos da cidade.

Em uma operação rápida, as tropas ocuparam a fábrica e cercaram o refeitório, onde os operários estavam reunidos em assembléia. Após um rápido diálogo e a garantia do major de que nenhum operário seria preso, os trabalhadores aceitaram desocupar a fábrica. Foram saindo em grupos, protegendo os líderes, e ninguém foi preso.

Enquanto isso, trabalhadores da Brown-Boveri e da BRASEIXOS se encontravam em assembléia no Sindicato, para decidir como seria a adesão à greve na manhã do dia seguinte. No momento que chegou a notícia do início da repressão e da invasão à Lonaflex pela polícia, houve uma grande tensão entre os trabalhadores, mas mesmo assim mantiveram sua posição.

O comando geral da greve comunicou à coordenação dos trabalhadores que ocupavam a Cobrasma o que tinha ocorrido na LONAFLEX e imediatamente eles iniciaram os preparativos para a chegada da repressão.

Na verdade, muitos trabalhadores tinham medo, a participação não foi do jeito que eles tinham planejado.

Em pouco tempo a Rua da Estação ficou totalmente tomada pela tropa de choque. Os operários assumiram a posição de resistência passiva, para evitar um massacre. Todos os trabalhadores concentraram-se em frente ao portão da entrada principal, por onde a polícia deveria chegar. Não houve tempo para se definir uma posição sobre como se enfrentar a repressão. Em pouco tempo a rua em frente à fábrica, já estava totalmente tomada pela tropa de choque.

Enquanto o comandante organizava o pelotão em posição de ataque, Barreto proferiu um discurso histórico. Como fazia pouco tempo que ele tinha dado baixa do quartel, dirigiu-se aos soldados com aquela linguagem militar que aprendera no GCAN-90, em Quitaúna: atenção, soldados! Imediatamente os soldados, habituados a obedecer, nem se deram conta de que a ordem partira de alguém que eles tinham vindo para reprimir e ficaram em posição de sentido. Barreto então começou a falar, e naquele discurso colocou toda a alma do poeta que compunha lindas canções que cantava e tocava com o violão.

Emocionado, lembrava aos que tinham vindo para reprimi-los, que ali todos- tanto eles, operários, quanto os soldados, vinham das camadas mais humildes da população e que muitos ali eram primos, irmãos e até pais daqueles soldados. Mostrou os objetivos da greve; disse que a repressão só servia para defender os interesses dos patrões e que os soldados também recebiam baixos salários, e conclamou-os a não acatar as ordens do comandante e a não reprimir os trabalhadores. E acrescentou desafiante: por que em vez de reprimir aqueles operários eles não voltavam as armas contra o comandante?

Naquele momento os soldados vacilaram. O carisma de Barreto era muito grande, ele subira em um vagão de trem e com a altura, sua figura tornava-se mais altiva, mais imponente. Por um momento teve-se a impressão de que os soldados agiriam sob o seu comando e não mais o do militar que os conduzira até ali.
Percebendo isso, o comandante, muito nervoso, reagiu violentamente dando ordens enérgicas de invasão à fábrica. Então, os carros de combate entraram na frente derrubando as barricadas, e nesse momento o comando de greve ordenou que desligassem as luzes da fábrica, ficando todos no escuro.

Houve muita luta corpo-a-corpo e saíram vários trabalhadores e soldados feridos, e mais de sessenta trabalhadores foram levados presos. Enquanto se travava a luta entre os grevistas e a polícia, Barreto organizou rapidamente um grupo de apoio aos que tentavam fugir, e para amedrontar os soldados ameaçou incendiar uma bomba de gasolina. Dessa forma conseguiu que a tropa parasse por alguns instantes e, dessa forma, possibilitou a retirada de muitos dos grevistas.

Não só naquela noite a polícia esteve presente na rua da Estação. No dia seguinte ainda permanecia lá. O Sr. Antônio, proprietário do Restaurante do Mineiro, que fica a uns cem metros da Cobrasma, na rua da Estação, contava até poucos meses antes de falecer, em 2006, que no segundo dia vários soldados invadiram o restaurante, montados a cavalo, à procura de grevistas, assustando os clientes que estavam no local. Esses fatos poderão dar uma visão aos que não viveram os horrores da ditadura, o que ela representou para o país.

Naquele segundo dia a Brown Boveri também paralisou suas atividades. Lá também havia uma comissão de fábrica. Otaviano Pereira dos Santos, atual presidente da UAPO, na época era Vice-Presidente do Sindicato e Presidente da Comissão de Fábrica da Brown Boveri, ele era o líder lá dentro e mobilizou o pessoal todo lá.


À noite houve a última assembléia no sindicato e entre as várias propostas, foi aprovada a de resistência passiva. Quando a polícia chegou ao sindicato, ficou claro que não havia condições de resistir. Alguns conseguiram escapar pelos fundos e não foram presos.

Umas 300, 400 pessoas foram presas naqueles dias da greve.. Alguns ficaram vários dias na prisão, mas o único que ficou um longo tempo foi o Barreto. Ele ficou 98 dias preso; justamente porque foi o que teve mais diretamente uma atitude de confronto à repressão.


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