domingo, 2 de novembro de 2014


GABRIEL ROBERTO FIGUEIREDO É CIDADÃO OSASQUENSE - João dos Reis

A Comissão Municipal da Verdade de Osasco tem revelado os nomes de vários osasquenses que lutaram contra a ditadura. Hoje trazemos o depoimento de Gabriel Figueiredo, médico psiquiatra, quando recebeu da Câmara Municipal o título de cidadão osasquense, em setembro de 2006.


Gabriel chegou ainda criança à Osasco, cidade que aprendeu a amar e a “quem” diz dever toda a sua formação política e social. O homenageado participou ativamente de movimentos estudantis, enfrentou os porões da ditadura, lutou pela emancipação da cidade, e ainda hoje faz questão de relatar sua vivência para que ela inspire outros jovens a dar um basta à corrupção, à discriminação das minorias e às diferenças sociais. (...)
O jornal “Diário da Região” publica abaixo parte do discurso do homenageado (...)
OSASCO, de GABRIEL ROBERTO FIGUEIREDO
Migrante, vindo de Ribeirão Preto, aqui cheguei há meio século, com 10 anos de idade. Osasco era um bairro, e o meu pai, o velho Figueiredo, trabalhava na capital. Prestava serviços de “continuo” no extinto banco de São Paulo, na rua São Bento. Com parcos recursos, profissionais e materiais, sustentou a família. Às vezes, tinha uns arroubos ideológicos. Fazia uma leitura sindical inocente, getulista, porém sincera e esperançosa.
Dona Dirce, minha mãe, costureira, fazia alguns serviços para fora, enquanto eu, o mais velho dos irmãos, cheguei a ser um dos mais concorridos engraxates do Largo de Osasco, até beirando os 14 anos.
Assim, Figueiredo, dona Dirce e eu ajudávamos a completar a limitadíssima renda familiar. Enfim, sobrevivemos. Walter e Marina, meus irmãos mais novos, vieram contribuir depois, o que garantiu um padrão pouco melhor na nossa qualidade de vida.
O subúrbio de Osasco era um bairro paulistano com pouco mais de 40 mil habitantes. As ruas Antonio Agu e Primitiva Vianco, com suas transversais, se constituíam no Centro, com vários trechos de terra batida e fossas a céu aberto. Havia muitos terrenos livres, alguns como saudosos campinhos de futebol. A Associação Atlética Floresta era ladeada por um grande matagal que se expandia até o pequeno viaduto da Sorocabana, o “pontilhão”; com seu acesso subterrâneo, dava acesso à Vargem, como era conhecido o singelo e simpático Presidente Altino.
A velha matriz de Santo Antonio era imponente, gótica, com sua torre apontando para o céu. Infelizmente hoje só podemos conhecê-la ou revê-la através de fotografias. Ela pontuava no final do aclive da Antonio Agu. Na outra ponta da rua, já bem depois do término do declive, já no plano, no Largo, uma pequena estação ferroviária era contemplada pela Matriz, lá de cima. Se não me falha a memória, Padre Camilo e Moura Leite se viam, mesmo com uma distância quilométrica, todos os dias.
A periferia despontava. Do Jardim Santo Antonio ao Rochdale, e de Quitaúna à Via Yara, emergiam núcleos populacionais decorrentes de uma intensa migração, sobretudo dos nossos irmãos do Norte e Nordeste, em busca de oportunidades num parque industrial que prometia ser a “Cidade Trabalho”. Na década de 50, a população de 41 mil subiu para 114 mil na década de 60. O censo de 2000 revela perto de 700 mil hoje, e provavelmente, já ultrapassamos os 800 mil.
No entanto, a iluminação pública era precária, as fossas a céu aberto, uma incipiente rede de água tratada e a falta de mínima estrutura para resolução de problemas de saúde, educação e segurança pública, já preparava para Osasco um placo de grandes problemas sociais. Problemas que todos nós sabemos não tardaram a chegar. Alguns até hoje nos atingem. Chegamos a ser considerados uma espécie de referência da violência urbana na região metropolitana.
Luta pela emancipação
Em 1958, já dispondo da Carteira de Trabalho do Menor, fui admitido no meu primeiro emprego na Cimaf. Ao me qproximar dos 18 anos fui demitido, para logo em seguida, dispensado do serviço militar, ser contratado pela Cobrasma. Paralelamente a este inicio de vida no mercado de trabalho, assisti e participei de diversos fenômenos sociais.
O plebiscito de 1958, e as lutas que se seguiram até a emancipação de Osasco da cidade de São Paulo, têm múltiplas versões políticas, acadêmicas, corporativas e pessoais.
Levando em conta todas, e por ter sido personagem vivo deste momento, o que nem sempre confere a necessária neutralidade da análise crítica, considero que a liderança do movimento emancipacionista foi, de fato, encabeçada por uma limitada e corajosa elite local, constituída de empresários, comerciantes e profissionais liberais. O que contesto, até por ter sido testemunha participativa, é de que se impôs, no êxito da emancipação, somente por esta corajosa elite.
Não é o que ocorreu.A ela agregou-se uum nascente movimento estudantil e sindical, onde Conrado Del Papa, Lino Ferreira dos Santos, Sérgio Zanardi, João Gilberto Port, Antonio Carlos Massoti, Reginaldo Valadão e inúmeras outras lideranças, tiveram papéis fundamentais.
Atribuir ao movimento burguês a emancipação de Osasco é um equívoco. Na realidade, a pequena elite osasquense da época liderou o novimento, mas ela não deve negar que outras forças sociais que emergiam e se organizavam exerceram papéis, em alguns momentos decisivos, principalmente quando o movimento alcançou o espaço das manifestações públicas, nas ruas e nas praças.
O povão, a massa, de fato teve participação menor do que os movimentos organizados pela burguesia, dos estudantes e dos trabalhadores orientados pelos seus sindicatos. Não foram muitos e até dá para entender as suas razões. A principal, talvez, seja a de que, eles, os migrantes, ainda não haviam tido tempo suficiente de se identificarem com a cidade. Suas identidades ainda estavam nas suas origens. Eles eram o Gabriel Figueiredo que aos 11 anos, devido a um transtorno de adaptação, queria, de forma insana, voltar para Ribeirão Preto. O sentimento de raiz não estava ainda amadurecido.
Movimento estudantil
O surgimento do movimento estudantil organizado, em Osasco, não foi um produto histórico e social de um determinado segmento. Vários estiveram envolvidos. Para usar expressões políticas, ideológicas, eu diria que, em síntese, estiveram envolvidos burgueses e proletários, numa espécie de acordo não explicitado.
Imaginem: o maior líder estudantil de Osasco não passava de um simples operário da Cobrasma, mas que tinha simpatia de alguns setores da burguesia. Nunca dispensei esta simpatia, mas sempre tive curiosidade de entendê-la.
Alguns dados interessantes das reivindicações e conquistas do movimento operário-estudantil de Osasco, no período entre 1962 e 1964, devem ser registrados para o futuro da História.
- Boa parte dos estudantes era também de trabalhadores, no sentido literal da palavra. Era natural, espontânea, a aproximação do trabalhador-estudante e do estudante-trabalhador.
- Melhoria das condições de ensino, construção da Casa do Estudante, incentivo às atividades recreativas e culturais, estratégias para obtenção de bolsas de estudo para estudantes com carências materiais, e participação ativa nos movimentos sociais - eram tópicos incansavelmente discutidos e permanentemente transformados em movimentos de ação prática.
- Presença ativa nos problemas nacionais, tendo o protesto contra o Acordo MEC-USAID - que subordinava a educação do povo brasileiro aos interesses norte-americanos – e o apoio às Reformas de Base propostas pelo Presidente João Goulart , eram as principais bandeiras de luta.
Nestas alturas, já com quase 20 anos de idade, me sentia beneficiado pela formação de uma consciência política. A vivência no interior das fábricas, o contato com colegas e professores nos espaços escolares de segundo grau - e a dificuldade de sobreviver material mente devido às minhas próprias origens - me conferiu uma visão de mundo que até hoje me acompanha.
Recentemente, num depoimento feito para a tese de doutorado de Sonia Regina Marin (...), disse que vejo crescer no país o número de jovens sem militância e consciência política. Jovens sem causa. Jovens que, perdidos, sem perspectiva de rumos para a construção de um mundo melhor, se entregam à alienação, às drogas, ao desespero, à violência e às Febens da vida. Devolver aos jovens a utopia é a primeira e a maior das nossas responsabilidades para alimentarmos esperanças de construir uma sociedade mais justa e solidária.
Comportamentos corruptos e antiéticos deixam proliferar a filosofia da esperteza e a lógica da discriminação das minorias, desmoralizando os princípios democráticos que estão na base da formação do cidadão.
Devo à Osasco, portanto, o meu maior patrimônio, que é esta visão de mundo, compartilhada por uns, não compartilhada por outros, mas é esta consciência o meu maior patrimônio. É uma dívida impagável, que este título hoje recebido, me concede a honra de diminui-la no meu débito.
Agradeço esta homenagem que recebo, com grande emoção, ao nobre e jovem vereador Antonio Claudio Piteri, que foi quem a propôs, e a todos os senhores vereadores desta Casa, que ao atenderem a propositura de Piteri, mais ainda me deixa honrado.
Aos meus filhos Luciano, Gabriela e Ligia, desejo manifestar publicamente o meu carinho, admiração e alegria por tê-los. Sobretudo porque me presentearam, ao longo da vida, com a convicção de que é possível formar cidadãos íntegros, competentes e com sensibilidade social. Acrescentaria a eles o meu neto Guilherme e a minha neta Lívia, ainda na barriguinha da Ingrid, mas que com certeza está atentamente ouvindo, visto que para ela tudo, até discurso, se constitui parte da grande curiosidade de entrada neste mundo.
Também à minha esposa Daisy, grande companheira, sem a qual talvez hoje eu não estaria aqui, pela força que me concedeu para continuar não apenas vivendo, mas existindo.
Devo umas palavras aos ex-prefeitos presentes: a Guaçu Piteri, nossa maior liderança ao longo da resistência democrática, as minhas saudações. Ao Francisco Rossi, que apesar das divergências políticas, devo declarar que, ao contrário do que se propaga a meu respeito no golpe de 1964, ele não me delatou. Rossi não é um delator, pelo contrário, um homem digno e honrado.
A Celso Giglio, meus parabéns pela coragem de desengavetar e dar prosseguimento a bons projetos, ainda que sejam de governos anteriores e politicamente adversários.
Ao Silas Bortolosso, minha admiração pela tranquilidade que sempre mostrou para administrar esta complexa cidade que é a nossa Osasco.
A este público que aqui comparece, constituído de irmãos, queridos parentes, amigos, companheiros e cidadãos, agradeço pela paciência de me ouvirem. E acredito que é um público que está formando uma geração que, de fato, está em busca da relação imanente que deve haver entre o Direito e a Justiça como garantia para a formação do cidadão.
Aqui está o título, outorgado por esta Casa legislativa a qual agradeço, e que com certeza vai me permitir, simbolicamente, dedicar a todos aqui presentes, e também aos saudosos ausentes e a todos que constroem não apenas o crescimento e o desenvolvimento, mas também o espírito desta cidade. O TITULO É DE TODOS NÓS.
Este texto foi publicado pelo jornal "Diário de Osasco" setembro de 2006

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