domingo, 27 de outubro de 2019

Encontros inesperados na grande metrópole - João dos Reis





Nos outros eu sei onde se abriga o coração.

É no peito _ todos sabem disso.

Comigo

a anatomia ficou louca.

Eu sou todo coração

_ ele bate em todo o corpo.

Vladimir Maiakóvski



Em 2005 parti de Curitiba para São Paulo, e encontrei a cordialidade em uma livraria e em uma sala de cinema na cidade. E discordei de que “não existe amor em São Paulo”.

Encomendei um livro com o jovem atendente da Livraria Saraiva do Shopping Eldorado; no dia em que fui buscá-lo, esqueci o contracheque para confirmar o desconto para professores. E, para minha surpresa, ele me abraçou, e disse: que era para o chefe pensar que eu era seu tio - e então não teria problema para dar o desconto.

Estava sozinho na sala do cine Belas Artes na rua da Consolação em São Paulo em uma tarde de sexta feira. E, antes da sessão começar, o lanterninha se aproximou e perguntou se o ar condicionado estava bom, se não estava com temperatura baixa – uma amabilidade para não esquecer .

Mudamos de casa duas vezes em dez meses – em agosto de 2018 de Vargem Grande Paulista para Osasco, e em junho de 2019, para um apartamento em um outro bairro da cidade. Foi um período atribulado; relembramos, eu e minha mãe, os momentos em que encontramos amigos próximos ou anônimos que deixaram marcas na memória.

Reinaldo, Antonio, Lucas, Zaqueu, Joaquim e Fernando foram os trabalhadores-amigos que nos socorreram nas casas das ruas Campinas e Milão na região de Cotia. Eles sempre foram solícitos e prestativos para solucionar os inúmeros problemas de reformas e consertos em eletricidade, encanamento, telhado - e os ouvintes pacientes das nossas desventuras. Despedi-me de Joaquim e Fernando, agradecendo a colaboração inestimável; não consegui me despedir dos outros – Antonio e Reinaldo faleceram há alguns anos.

Na oficina mecânica, pedi a Anderson, no bairro Tijuco Preto, onde morava, para fazer uma revisão geral no carro antes da mudança para Osasco. E, quando fui buscá-lo, ele me disse que estava em bom estado, sem necessidade de nenhum conserto. Fui me despedir dele - e, no dia seguinte, também de Mario da oficina do Jardim dos Ipês - e levei uma garrafa de vinho. E falei do cartaz-propaganda dos anos 80 - duas mãos estendidas, uma delas suja de graxa: “(o mecânico) é o melhor amigo do seu carro – e não pode cumprimentá-lo”. Disse que o mecânico não é apenas o melhor amigo do meu carro, mas é também o meu melhor amigo - e que não esquecerei deles.

Ângela, a vizinha da casa que alugamos na rua Itápolis, Vila Osasco, deu a minha mãe um buquê de rosa. Foi um presente inesquecível de boas vindas para nós, que estávamos cansados com tantos transtornos nas casas anteriores na região de Cotia. E preocupados com o futuro.

No domingo seguinte da última mudança, para o Jardim Santo Antonio, ao entrar na Avenida Nova Granada, houve uma pequena colisão lateral com outro veículo. Desci do carro, cumprimentei o motorista, pedi desculpas a ele e à moça que o acompanhava, dei meu telefone para entrar em contato. Uma hora depois, Alexandre, o motorista do carro, me ligou e disse que não tinha sido nada, para não me preocupar. Quando enviei depois uma mensagem pelo celular, agradecendo mais uma vez a gentileza dele, ele me respondeu “que podia contar com um amigo”.

Comuniquei Simone, do bairro Jardim dos Ipês em Cotia, onde moramos sete anos, o nosso novo endereço. Nos finais de anos, sempre dou um presentinho para ela – uma rosa, um pano de prato -, uma pequena retribuição aos quase dez anos em que ela cortou o cabelo da minha mãe e irmão, e nunca quis receber pelo seu trabalho

Perguntei ao jovem vendedor da Kar Latas na rua Primitiva Vianco, 922: um para-sol para cobrir o para-brisa de carro - e não havia na loja. Vi em uma mesinha um moedor manual de grão de café que usávamos em casa na minha infância. Perguntei se era para fazer café, e ele me disse se eu queria – e moeu os grãos, preparou o café e me serviu em uma xícara de porcelana..

Fernando, Letícia e os filhos Felipe, Gabriel e Elza ofereceram na casa deles uma feijoada em agosto para comemorar a visita de Ricardo e Silda, ex-aluna de Filosofia na escola estadual Vicente Peixoto em Osasco – eles vivem em Brasília há 23 anos. Ela me telefonou, me convidou para a confraternização – um dia carregado de afeto e saudades.

Pedi um strudel no Restaurante Juca Alemão no Shopping Continental em Osasco; e na hora de pagar, o garçon me disse que era uma cortesia do proprietário. Dois anos antes, conversei com ele, que é de Blumenau, em Santa Catarina, mas foi uma conversa rápida: é a cidade que mais gostei na minha temporada no Sul do Brasil.

Caio e Olga, ex-aluna em 1973 de Cultura Contemporânea na escola estadual Capitão Delolindo de Oliveira Santos, em Ubatuba, me convidaram em outubro para almoçar na casa deles em São Paulo: com a colaboração de Raquel, prepararam uma moqueca de peixe. Foi um reencontro depois de décadas em que estivemos incomunicáveis na grande metrópole. E trouxe um presente para minha mãe: uma porção do prato do dia.

Fui ao Tocco, depósito de material de construção, na Avenida Antonio C.Costa, 1240, e na saída, havia pipoca e café de cortesia. Conversei com o jovem vendedor, disse que há muitos anos não a preparávamos em minha casa, e ele me disse que poderia levar uma porção para minha mãe – e foi um presente surpreendente para ela.

Meu irmão estava com problema de mobilidade, e o fisioterapeuta Ari, ex-aluno nos anos 80 na escola estadual “Vicente Peixoto”, esteve em casa, trouxe um andador, convenceu-o a usá-lo – e não quis cobrar pela visita e pelo empréstimo do aparelho. Depois, por telefone, me disse que ele é que está grato pelas minhas aulas de Filosofia no curso colegial.

Na solidão da grande metrópole, foram encontros em que descobrimos nos pequenos gestos de gentileza momentos felizes. Os personagens, muitas vezes desconhecidos e inesperados da aventura cotidiana, reforçaram a crença de que a construção de uma amizade, a descoberta de um sentimento pode tornar o mundo mais solidário.



NOTA

O poema de Vladimir Maiakóvski, está na página 169 de “Maiakóvski, vida e obra”, Fernando Peixoto, José Alvaro Editor, Rio de Janeiro, publicado nos anos 70 (provavelmente 1974), 316 pp


Nenhum comentário:

Postar um comentário