domingo, 14 de janeiro de 2018

Recordando meu primo José Antonio Herculiani - João dos Reis





“Você partiu,

como se diz,

para um outro mundo.

Vácuo...

Você sobe,

entremeado às estrelas. (...)

Para o júbilo

o planeta está imaturo.

É preciso

arrancar alegria

ao futuro.

Nesta vida

morrer não é difícil.

O difícil

é a vida e o seu ofício."



- Início e final do poema “A Sierguêi Iessiênin”, de Vladimir Maiakóviski, tradução de Haroldo de Campos.



Em 25 de novembro de 1993, tia Rosa me telefonou de Duartina, SP: o primo Zézinho tinha falecido em um acidente no Paraná. E pedia a nós, eu e minha mãe, que fossemos ao velório e ao sepultamento.



Essas lembranças dolorosas surgiram nos últimos dias. E recordei: éramos quase da mesma idade – e foi com ele que conversei durante toda a minha vida sobre as artimanhas do cotidiano. No período das férias de trabalho e de escola, sempre nos visitávamos.




Sobre o que conversam os que têm uma relação fraterna? Não é preciso haver confidências; mas às vezes havia momentos em que abríamos nossos corações diante das armadilhas da vida Lembro de que em nossos encontros não havia lugar para lamentações: há momentos em que precisamos da proximidade de um amigo-companheiro.




Nas férias do trabalho, esteve várias vezes em Caraguatatuba, onde eu lecionava Filosofia na escola estadual da cidade. Gostava do mar – e estivemos muitas vezes em manhãs e tardes de sol na praia Martim de Sá na cidade do Litoral Norte. Em uma das vezes, viajamos com toda a família para o Rio de Janeiro pela nova estrada, a Rio-Santos, passeando por Parati e Angra dos Reis. No registro da memória há uma cena: eu, Zé, sua irmã Cidinha e o marido, Miro, reunidos na Lanchonete Estrela na praça Cândido Mota em Cândido Mota em Caraguá - e, me parece, nunca fomos tão felizes.




Era gerente da Caixa Econômica Federal, e esteve trabalhando em São Roque, perto da capital paulista, no final dos anos 70 e início dos 80 . Foi um período em quem combinávamos nos encontrar a cada dois fins de semana na casa da minha mãe em Osasco. Ele queria conhecer os restaurantes de São Paulo, e estivemos nos mais sofisticados da cidade - o Rubayat na Alameda Santos foi um deles; nunca mais voltei a frequentá-los. Entre tantos copos, taças, pratos, guardanapos e talheres, me senti desorientado; foi também a única vez que estive mais próximo do discreto charme da burguesia. Não esqueço do que ele me disse: que a capital paulista é uma cidade para quem tem (muito) dinheiro.




Desde criança, morando em uma outra cidade, Gália, e depois, em Osasco ou Caraguatatuba, mantivemos a comunicação por carta. Nunca deixamos de estar em contato. Um quarto de século depois, ainda sinto a sua ausência. São momentos de desesperança, de desconsolo, de desatino em que me pergunto: para ele poderia narrar os infortúnios do presente?




O que conversávamos quando crianças? Que diálogos tínhamos na adolescência? E, na vida adulta, quais eram as nossas conversas? Ele era um jovem de uma pequena cidade do interior de São Paulo que se informava sobre o que acontecia na cidade grande. Descubro com tristeza que nunca compartilhamos o momento histórico que vivemos nesses anos desesperados. Eu, pelo cuidado em não dividir com ele o terror da repressão e das atrocidades da ditadura militar. E, hoje, quem eu elegeria para interlocutor - e com ele dividir a construção dos sonhos?




Gostava de cinema – e, na época, o filme gravado em VHS era uma novidade tecnológica – e ele os assistia sem sair de casa. Fomos algumas vezes ao teatro - e ao cinema Belas Artes na rua da Consolação em São Paulo – e lembro de nossas trocas de impressões sobre os filmes e peças teatrais. Hoje, me vejo interrogando depois de sair do cinema ou do teatro: o que o Zé diria sobre as imagens, os personagens?




Estava casado com Zelinda, e na última visita à casa deles em Bauru, ele insistiu para permanecer mais dias. Não pude atender ao convite; não suspeitava que seria a última vez que estaríamos juntos para confraternizar, comemorar a nossa amizade e brindar ao futuro.




Parece que é uma característica familiar: nenhum de nós tinha demonstrações de afeto. Mas em 4 de outubro de 2017, decidi escrever - com saudades e o coração despedaçado - e recordar o meu primo querido. Ele não viveu - como tantos outros que foram muito amados e admirados por mim - para enfrentar os desafios desse nosso tempo de desalento e desesperança.




NOTA





. Poema “A Sierguêi Iessiênin”, de Vladimir Maiakóvski, pp.109/114 de “Poemas – Maiakóvski”, tradução de Boris Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos, Editora Perspectiva, São Paulo, 2ª edição, 1983, 176 pp

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