domingo, 3 de fevereiro de 2013

A Menina que queria tocar sanfona - Antonio Belo




Clarice era uma menina muito esperta. Antes de completar sete anos, já lia quase tudo. Também gostava de música. Toda tarde ficava colada no velho aparelho de rádio de válvulas da casa da sua amiguinha Helena, já que não tinha rádio em casa. Depois seu pai comprou um rádio à prestação e foi uma festa. Rapidamente ela aprendeu a imitar as cantoras mais populares da época: Emilinha Borba, Linda Batista, Nora Ney, Marlene... Ela queria ser cantora.
Toda tarde, era sagrado o programa de música da PRA-8, Rádio Clube de Pernambuco, a pioneira. E era. É a emissora de rádio mais antiga do Brasil, fundada em 1919.
Um dia ela ouviu uma música estranha, não era cantada, era só tocada. Como se diria hoje: instrumental. Não que ela não conhecesse música sem cantar, pois ouvira umas músicas de orquestra bem bonitas. Mas aquela era diferente, era um instrumento só, e desconhecido, soava mais ou menos assim: fonrom, fonronrom, fonronronronrom. Ela ficou extasiada! Mas não pode anotar o nome da música nem do homem que tocava. Ou seria uma mulher? Não dava pra saber. Mas sabia que sempre eram os homens que tocavam, nunca tinha visto uma mulher tocar.
No dia seguinte, no mesmo horário, tocou aquela música de novo. Ela chamou a mãe e perguntou: mãe! O que é essa “coisa” que toca assim? A mãe respondeu: minha filha, isso é uma sanfona. Aí, ela decidiu: não queria mais ser cantora, queria aprender a tocar sanfona...E ao final da música, conseguiu ouvir o nome do intérprete, algo parecido com “seu Vuca”. Guardou aquele nome.
Naquela época, a menina morava com a família em um bairro de Jaboatão, em Pernambuco, denominado Socorro. Era uma vila militar, pois seu pai, que era sargento do exército, servia no Quartel do 14° RI.
Por uma dessas coincidências da vida, um dia apareceu por lá, o multi-instrumentista paraibano, Severino Dias de Oliveira, conhecido pelo apelido carinhoso de “Sivuca”, que iria dar um show musical no clube dos oficiais, mas que era extensivo a todos os sargentos e suas famílias. Mesmo tocando qualquer instrumento que se conheça, o Sivuca era mais conhecido pelas harmonias que conseguia criar com a sanfona. Era sanfoneiro dos bons!



Seu João foi e levou toda a família. Tinha um filho, o mais velho, que já “arranhava” um bandolim; e diziam que a música na família era “atávica”, pois a avó materna também tocava bandolim. Quando Sivuca começou a tocar a primeira música, Clarice identificou na hora, que aquela música que ouvira no rádio, só podia ser daquele homem.

Depois que ele terminou a quarta música, enquanto deu uma paradinha para tomar um copo de água, a menina saiu correndo, lá das cadeiras e subiu ao palco. Foi uma ação tão rápida que ninguém se deu conta de segurá-la. Lá chegando, puxou na perna da calça do músico e exclamou: “Seu Vuca”, toque aquela música que faz assim: “fonrom, fonronrom, fonronronronrom, fonrom, fonronrom, fonronronronrom”. O músico não resistiu e caiu na gargalhada. Todo mundo riu. O músico, então, tomou-a nos braços, deu-lhe um cheiro nos cabelos e perguntou:
- Onde é que você ouviu essa música, minha filha?
- Foi no rádio, “Seu Vuca”, toque ela pra mim...
- Essa música se chama: “Barca Nova”. Vou tocá-la para você.
E ele tocou. Uma música muito bonita. Mesmo em ritmo “ligeiro” era uma música triste. Como pode uma música ser triste? Música é uma combinação de notas. Notas essas que, isoladamente, não fazem muito efeito, mas combinadas, o efeito pode ser até “devastador” para a nossa alma. A música não tem sentimentos, nós é que temos. Então, como se pode dizer que uma música é triste? A tristeza está em nós... O compositor apenas “junta” as nossas tristezas com as dele e as transforma em sons.
Acabado o show, a menina não cabia em si de contente. Sivuca tinha tocado para ela e ainda lhe dera um cheiro nos cabelos. Não iria esquecer isso pelo resto da vida. E as colegas, ah! Estavam para morrer de inveja. Agora não tinha mais volta: iria aprender a tocar sanfona...
Pouco tempo depois, a família teve que se mudar para São Paulo. Lá chegando, depois de resolverem as necessidades mais imediatas como: moradia e escola, lá vai a menina procurar uma escola de música. Queria, porque queria aprender a tocar sanfona.
Encontrou. Matriculou-se e começou a assistir às aulas de teoria musical. Mas tinha um problema: ela não tinha instrumento e música não se aprende somente na teoria. Seu pai não estava em condições de gastar dinheiro com aquele “capricho”. Eis que outra menina, uma vizinha, também resolveu estudar “acordeon”, como ela falava. Essa aí tinha tudo: o pai deu-lhe de presente um “acordeon”, novinho em folha.
“Nossa” Clarice praticava no instrumento da colega, e apresentou um desenvolvimento que deixava o professor abismado. Principalmente, depois que ela viu uma fotografia de, ninguém menos que, Jimi Hendrix, com uma sanfona, em um boteco. Exclamou! Até ele!!! Nossa! Eu pensava que ele só tocasse guitarra.
Tudo foi “às mil maravilhas” até que, seis meses depois o professor resolveu fazer um teste para avaliar o desenvolvimento das alunas. O problema é que essa avaliação tinha uma nota classificatória. Submetidas as alunas, nossa “heroína” tirou o primeiro lugar. Só que a colega que ficou em segundo não se conformou. E não mais permitiu que a Clarice tocasse no seu instrumento. Aí acabou a carreira musical da mais promissora acordeonista de que se tem notícia.
Palmas, 24 de janeiro de 2013

Um comentário:

  1. Antônio, Gostei muito desse texto. Bem temperado com um humor inteligente a gente viaja entre a ficção e a realidade. Parabéns mano.

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