sábado, 9 de julho de 2011

Apocalípse no Sertão - Risomar Fasanaro





A mãe serviu a sopa de palavras e toda a família tomou-a em silêncio. Era noite. Uma noite de névoa e trevas. Tão escura que os escombros da vida se escondiam entre as frestas do silêncio. Por isso, nem o pai nem os filhos perceberam que ela lhes servira o que de último lhe restara: palavras.

O pai voltava mais uma vez dos longos túneis de suas buscas, sem encontrar sequer a si mesmo. De todos os males, talvez o desemprego fosse  para ele  o de menor importância.

Todos tomaram a sopa e foram dormir. No meio da madrugada, um dos filhos  passou mal; suava frio e sentia dores abdominais. Só poderia ser consequência  daquela sopa, pensou a mulher. E se nem isso pudessem mais comer, o que seria da família?

Resolveu que no dia seguinte iria escolher melhor as palavras, lavá-las muito bem; quem sabe ficara alguma impureza e por isso o pequeno passara mal?

Serviu um chá ao filho que logo melhorou e voltou a deitar-se, pensando no que prepararia para o almoço do dia seguinte. Não permitiria que suas revoltas substantivas, nem as (des) conjunções da vida prejudicassem sua grande descoberta.

Agora, mais segura, poderia dar-se ao luxo de demorar-se nessa escolha, de aprimorar suas receitas. E foi então que escolheu a palavra de que mais gostava: saudade. Por certo, uma palavra tão bonita não faria mal a ninguém.

Tomou-a  entre as mãos, sentindo a maciez e a doçura que dela emanavam. Lavou-a bem, deixando que reluzisse ao sol cada curva, cada haste das letras que a compunham. Depois a temperou com sal e limão, e sozinha, colocou-a na boca e saboreou cada letra, cada sílaba. Sentiu-a fria na boca, e quando tentou  engoli-la, foi como se  de repente ela crescesse, formasse um nó, um travo na garganta.  Fez força e conseguiu que  passasse pela garganta, provocando no mesmo instante um frio, um peso no estômago que lhe tomou o peito,  com travo de fruta verde.

Algum tempo depois o mal estar passou, mas quando menos esperava voltou a sentir o nó na garganta e uma dor no peito dificultando-lhe a respiração, como se fosse morrer. Sentiu medo. Ainda bem que experimentara antes de servi-la ao marido e aos filhos. E pensou: se depender de mim, jamais eles comerão isso.

Já não sabia o que cozinhar, mas decidiu insistir, já que nada havia para comer, até encontrar uma forma de servir as palavras de modo que não fizessem mal.

Escolheu os vocábulos attonitta, inamorare, inodio e acumene. Com uma faca bem afiada, provocou aférese em todas elas. Depois, lavou-as bem em uma bacia de ágata que ganhara de uma ex-patroa, cozinhou-as com sal, pôs coentro e serviu à família.

Mesmo com todos esses cuidados, algumas palavras ainda eram indigestas, e no final da tarde o marido estava com febre. Foi aí que ela resolveu podar, limpar todas as arestas, provocando síncope, crase, haplologia e sinalefa. Ia cortando tudo e de malu fez mal, de amare fez, amar e continuou com lepore, manica, liberare, atroce, legale, dolore, rodador, idolatria...

O dia e a noite transcorreram tranquilos. A família, enfim, acostumara-se à nova alimentação, e como já não recolhia os restos da feira, passou a ser motivo de curiosidade na favela. O que estava acontecendo? Alguém estaria  lhes doando alimentos?

A mulher, sem nenhum mistério, contou o que descobrira, e ante a descrença dos vizinhos, explicou como preparava os alimentos. Ali mesmo explicou às outras mulheres como fazer um refogado de dígrafos, com molho de consoantes.

É claro que ela não dava aos ingredientes os mesmos nomes que eles receberam dos gramáticos. Jamais em toda sua vida tivera entre as mãos uma gramática, muito menos histórica. Se lhe dissessem que servira metaplasmos à família, por certo  ficaria horrorizada, ou riria...

-Mas onde a gente encontra esses negócios? Perguntaram-lhe os vizinhos.

-Ora, e vocês não sabem?

Depois de ensinar onde buscar palavras advertiu:

-Vão com cuidado. Comecem do jeitinho que eu  falei. Primeiro a, e, i, o, u. As palavras, às vezes são muito perigosas...

Façam sopa primeiro só com  a,e,i,o,u, depois usem as outras letras, vão juntando, e só depois de bem acostumados, usem palavras. Primeiro as pequenas, depois as  grandes, ouviram? Vão cortando, limpando, depois de um tempo vão poder comer qualquer uma. Nada mais vai fazer mal a vocês.

A partir daquele dia, os estômagos da favela acostumaram-se àqueles novos alimentos. Alguns dentro de pouco tempo puderam dar-se ao luxo de comer palavras que haviam sofrido prótese, epêntese, paragoge e anaptixe.

Tudo corria bem, nem mesmo a polícia apareceu durante vários dias. E assim continuaria se um incidente  não viesse atrapalhar a vida daqueles moradores. É que alguns políticos resolveram realizar ali um comício. Os moradores aguardavam ansiosos aquele evento.

E finalmente chegou o dia. Vieram os candidatos às eleições para deputado, senador, e até, um ao governo do Estado.

O comício teve início às dezessete horas, mas desde as oito as pessoas começaram a chegar com suas sacolas, para guardar lugar. Postaram-se em frente ao palanque à espera deles. Houve empurrões, xingamentos e provocações, desde o início da aglomeração. Todos queriam ficar bem na frente, na primeira fila.

Um garoto com ginga e feição de quem não perde uma briga por nada desse mundo, gritava:

- Eu vou ficar é aqui, na fila do gargarejo. E quero ver se tem valente aqui que me tire. E enquanto dizia isso, deixava que reluzisse ao sol o brilho de uma peixeira.

Quando  os candidatos chegaram e viram todos aquela multidão reunida, gritando e pulando, ficaram maravilhados, pois se há coisa que político gosta é de ver  é plateia para seus discursos. Era preciso saber quem era o cabo eleitoral que organizara tão bem aquele comício.

Subiram ao palanque, e deram início aos discursos. Um deles dizia:

- Exigiremos do governo federal uma reforma tributária e um rígido controle dos juros. Não permitiremos que se comprometa o crescimento.

Logo depois outro dizia:

- Jamais permitiremos que a crise nos alcance. Ela que fique por lá, pelos Estados Unidos, pela Europa, aqui ela não entra. Nosso povo não merece e não quer mais sofrer, e a vontade do povo é soberana. Pelo povo, tudo sacrificaremos. Cortaremos até nossa própria carne, se preciso for!

Em seguida, o que pretendia o cargo de governador do Estado, um  sujeito magrinho, raquítico, inflamava-se todo e, na ponta dos pés, e gesticulando muito, prometia:

-Nenhuma criança ficará sem escola, e as secretarias da saúde e da Educação irão receber, no meu governo, as maiores verbas do orçamento do estado. Nenhuma  criança ficará sem escola. NE-NHU-MA, eu repito. Este é um compromisso que eu assumo e que vocês poderão cobrar lá no Palácio. Sim, porque serei eleito, com toda certeza, e então, meus amigos, farei daquele palácio a casa do povo, onde as portas estarão sempre abertas, para recebê-los!

As pessoas pulavam, gritavam agarravam as palavras, as frases e as guardavam nas sacolas. Algumas eram tão espertas, que conseguiam alcançar parágrafos inteiros.

Os oradores estavam eufóricos com aquele público tão vibrante, e que manifestava seu entusiasmo com as mãos, os pés, o corpo todo. E continuavam os discursos:

-Vamos restaurar a tranquilidade. Não haverá mais seca, pois construiremos um açude a cada quilômetro deste município. Também não haverá enchentes, pois não permitiremos que vocês percam seus pertences, suas casas, seus familiares. Para isso temos projetos de abastecimento de água durante o verão e de escoamento da água na época das chuvas.

Com  voz forte, um candidato a deputado estadual dizia:

-Vamos restaurar a tranquilidade. A população não sofrerá mais ataques de bandidos. Para isso nosso governador aqui presente já assumiu que colocará centenas de policiais  nas ruas...

Uma velhinha sentada à porta de um armazém murmurou baixinho: mas aqui nunca houve ataque de bandidos...

Lá embaixo, o público se engalfinhava:

-Sai daí, seu vagabundo, essa população aí eu vi primeiro. Num toma não. É minha, dá aqui. E puxava a palavra pela cedilha, tomando-a do outro.

-Conversa, seu filho da puta, eu é que vi primeiro e já tinha até enfiado na sacola.. Num dou mesmo!

-E você  aí, vai ficar dando chute em mim, vai? Tomou a inflação que eu tinha agarrado no começo do comício e agora ainda quer o crescimento, é?

-Cuidado, sua ordinária, não vem me dando soco não. Passa o tempo todo dormindo e agora quer tirar o atraso, é? O controle é meu.

- Eu peguei pra fazer um omelete pro meu menino que tá com vontade faz dias...Sai daí, já avisei. Eu te dou um chute nesse bucho que tu vai ver!

-Por que tu não pegou os policiais que caíram ainda há pouco nos teus pés? Tu tava bem embaixo do homem que tava falando nele...

-Tu pensa que eu sou besta, é? Pega tu, seu lazarento!

Em poucos minutos a confusão era tamanha, que não era possível entender mais nada do que se dizia no palanque. A pancadaria foi tão grande que atingiu também os políticos, e esses tentaram com seus seguranças, controlar a situação. Inútil. Todos se agrediam, e de longe só se enxergava a poeira correndo solta.

A velhinha que estava na porta do armazém, quando viu que um dos oradores estava caído, criou coragem  e foi devagarinho até o palanque,  enfiou a mão na boca do candidato, e conseguiu recolher ainda  quentinhas , e molhadas de saliva o parágrafo inteiro:

-Puta merda, que miséria! Bando de marginais! Tinha que ter trazido mais seguranças. Pra essa corja, só no pau!

A velhinha, ainda apanhou mais algumas palavras daquele discurso do homem ferido, que escorreram pela terra, envolveu-as no avental, já que não levara sacola, por considerar-se incapaz de concorrer com os jovens no recolhimento das palavras. Depois desceu calmamente, rindo muito, e seguiu o caminho, para o seu mocambo, com seu almoço do dia seguinte garantido.

O restante do povo continuou ainda brigando, e já era madrugada quando a polícia chegou e levou muita gente presa.

 Uns apresentavam hematomas, outros sangravam e apresentavam fraturas. Clareava o dia quando os menos atingidos voltaram para casa.

No dia seguinte, todos, mesmo os detidos na noite anterior, felizes com a abundância, trocavam receitas pelas ruas da cidadezinha. Esquecidos das brigas, como se nada houvesse acontecido. Um dia de felicidade e fartura.

A lua começava a subir no horizonte quando as primeiras pessoas começaram a passar mal: vômitos, diarreia, convulsões, e uma fortíssima erupção no corpo todo. Em pouco tempo todos no pequeno lugarejo tinham sido atingidos.

Chamaram o único médico do lugar que, sozinho, não conseguiu atender a todos. Vieram ambulâncias da capital e dos municípios vizinhos. Conduziram os doentes aos hospitais da região que ficaram lotados com tantos pacientes. Entre os muitos internados 134 morreram, embora os jornais noticiassem  a morte de 27. Entre os mortos estavam a velhinha do avental e a primeira mulher que descobrira as receitas e ensinara a todo o lugarejo que era possível se alimentar com palavras.

Contudo, o mistério permaneceu: como é que pessoas tão fortes, acostumadas a comer até os restos  que recolhiam das feiras, tinham morrido tão rápido?

Para os médicos aquelas pessoas tinham sido vítimas de algum vírus desconhecido, e embora os cientistas tivessem  pesquisado muito, jamais descobriram o que causara a intoxicação e a morte de tantas pessoas...

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