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Recebi e estou lendo “68: a Geração que queria mudar o mundo”, obra editada pela Comissão de Anistia e pelo Ministério da Justiça.
Esperei por esse livro tal qual a personagem de “Felicidade Clandestina”, conto de Clarice Lispector, em que a menina, personagem central, ao ter entre as mãos “Reinações de Narizinho” de Lobato, deixa de ser menina e, nas palavras da Autora, passa a se sentir mulher, uma mulher com seu amante.
Pois é, “uma mulher com seu amante”. É assim que me sinto, tal a excitação, que me toma da cabeça aos pés, ou “do cóccix até o pescoço”, como diria Elza Soares, tal o desejo de devorar aquela obra.
São 687 páginas, e embora já tenha lido metade do livro, a sede não passa. É sede de retirante quem sabe de lobo no deserto.
Edição muitíssimo bem cuidada, a obra é dividida em tópicos, o que possibilita uma leitura a partir do meio, do fim, ou quem sabe, aos mais organizados e menos ansiosos, do início ao final. É o que não faço. Começo pelos autores que conheço, pelos títulos que me atraem mais, embora todos me atraiam. Mas vamos lá. Mesmo este comentário deixando a desejar por ser incompleto, não resisto à tentação de passar minhas impressões sobre tantos textos reveladores e interessantes.
Nesta obra caleidoscópica, textos dramáticos convivem com outros em que a ternura, a solidariedade, e não poucas vezes o humor, nos levam a chorar e a rir, e quando isso acontece, amenizam as lembranças do que vivemos.
Acredito que nunca mais o mundo terá uma geração como a nossa. E com isso não quero desmerecer a juventude atual. Apenas constatar que a situação que vivemos exigiu aquele tipo de atuação. Não concordo com os que dizem que a juventude de hoje é alienada e nada faz. Apenas vejo que os interesses e os objetivos são outros.
Mas voltando ao livro: nele encontrei textos para ler e reler muitas vezes. Começaria pelo do poeta pernambucano Marcelo Mário que escreveu sobre o líder camponês Francisco Julião, e diz que ele era “o único a levar a multidão às ovações”. E mais adiante comenta que Julião era poeta, e pura poesia eram seus discursos. O líder utilizava em suas falas metáforas e comparações que tinham a ver com sua vivência de camponês, e assim se fazia compreender tanto pelo intelectual como pelo homem do povo. Belíssimo o texto de Marcelo Mário.
Logo adiante “Geração 68 e avalanche Cultural”, de Leôncio de Queiroz”. O autor relembra que a de 68 foi a geração que leu Monteiro Lobato, e completo: a figura de Emília se eternizou em cada um de nós, e é ela que até hoje nos cutuca quando nos vemos diante de alguma injustiça.
Leo faz justiça aos governos Juscelino e Jango, além do curtíssimo período do Jânio, quando diz que foram “os de mais fecunda criação artística e cultural no Brasil”. E relembra que foi durante aqueles anos que surgiu o cinema novo, os grandes compositores, escritores, os grandes nomes do teatro e da arquitetura, além do destaque que dá aos geógrafos e educadores. Nunca mais o país foi o mesmo. Sim, nossa geração não apenas quis, ela conseguiu mudar muita coisa no mundo.
Dos mais importantes esse registro do Léo, pois não se faz uma revolução só com armas, mas também, e principalmente, com Arte. E ele reconhece isso.
Mais adiante me deparo com o depoimento de Affonso Henriques G. Correa, em “Agitação no Salão de Tortura” que nos leva às lágrimas ao contar que na autópsia de Virgílio Gomes da Silva, preso assassinado pela repressão, consta que todos os ossos foram quebrados, e todos os órgãos danificados. Apenas um ficou intacto: o coração. Hoje quando emoção e sensibilidade parecem estar fora de moda, é bom parar a leitura, descansar o livro sobre a mesa, e refletir.
É de Ivan Cavalcanti Proença um dos mais belos textos da obra. “Aquele Primeiro de Abril”, saído das mãos de um mestre da escrita, a que se alia a emoção do que registrou. É preciso não perder uma palavra, uma vírgula desse texto, ler as entrelinhas, e saber a que leva a dignidade de um homem quando toma uma decisão que irá mudar para sempre sua vida.
Mas tem também os textos com um humor leve, deliciosos, que se mescla à tristeza, nas palavras de Inês Oludé da Silva ao relembrar, em um deles, o amigo que fingia estar sempre a morrer. Inês nos prende do início ao fim do seu relato.
E há o maravilhoso “Paissandu e Oklahama” de Eliete Ferrer, que coordenou a publicação do livro. Tenho a impressão de que poderia ser assinado por qualquer um de nós. Foi a sensação que tive, tão bem ela retrata o modo de viver da nossa geração. É só trocar os nomes dos bares, os endereços das repúblicas, os nomes dos amigos, e teremos o mesmo clima, as mesmas casas, os mesmos bares, as mesmas faculdades...Belíssimo texto.
Vou ao texto do Velso Ribas que escreveu sobre seu pai . Que saudade me deu das suas mensagens ao Grupo “osamigosde68”. Não cheguei a conhecê-lo pessoalmente, embora tenha ido ao hospital visitá-lo dois dias antes de seu falecimento, e o reencontro nesse texto que me levou às lágrimas, não sei se pelo pai, não sei se pelo filho.
Mas é impossível parar sem ler o que Urariano escreveu. Em todos se revela a sensibilidade do autor. A mão do mestre a relembrar os amigos e as situações vividas com eles.
Uma das coisas a me chamar mais a atenção é o sentimento de amizade que perpassa nas páginas do livro. Em quase todas nas lembranças que revivem existe a presença de algum amigo. Alguns não falam de suas dores, mas sim do que presenciaram de sofrimento em alguém.
Sinto uma ponta de tristeza ao constatar que Sílvio Tendler não conseguiu realizar seu primeiro filme aos 18 anos, por culpa da repressão. Que as filmagens de João Cândido que ele confiara a uma pessoa, foram queimadas por medo da repressão. Perdemos com isso as últimas palavras do almirante negro, que já bem doente deu sua última entrevista ao hoje nosso grande cineasta.
No depoimento de Roque Aparecido da Silva revivo a greve de Osasco de 68, que acompanhei de perto na época. Situações difíceis que o autor superou driblando a polícia. Ora trocando de nome, ora fingindo que sua mulher na época, Ana Maria Gomes, desconhecia sua participação.
E há o relato de Lao, que narra a sua cerimônia de casamento em 1970, escondendo dos familiares sua participação na luta contra a ditadura, e falando das marcas que a ditadura lhe deixou, a ponto de até hoje sentir dificuldade de visitar o Memorial da Resistência.
Há os belos textos de Pedro Viegas, herói do movimento dos Marinheiros. Em um deles, "Operação Salvamento" ,conta uma passagem em que ele era um dos que precisaram resgatar um companheiro de luta sob a suspeita do resgatado, que achava estar sendo levado por inimigos. Texto que mostra bem o clima de desconfiança existente nas relações, e como para salvar o amigo ele enfrentou aquelas suspeitas.
Há ainda o belo texto de Luzia Jakomeit e seu Natal solitário e triste que de repente se ilumina. Grande escritora, Memélia mais uma vez se revela nesse texto.
Mas o livro não traz apenas textos em prosa. De repente em meio às paginas nos deparamos com “Claros Sonâmbulos da noite”, a belíssima canção do Exílio de Guilem Rodrigues da Silva, em que vê na pátria distante a mulher amada que se é forçado a abandonar.
Continuo lendo a obra aleatoriamente. Em cada página encontro um motivo para recordar, me emocionar, me entristecer, me revoltar...e também para rir.
Vou ler todos os textos. Não perderei nenhuma vírgula, nenhum espaço. E cada vez mais me convenço: que linda é a história da nossa Geração!
Esta noite sonhei com uma senhora de nome Anete, muito amiga da minha família, durante a minha infância. Eu conversava muito com o marido dela, quando ele já estava muito doente, perto de morrer. Isso foi em 1972 ou 73. A questão é que eu tinha só três ou quatro anos, mas me lembro dele. Já sonhei com ele também. Você deve estar se perguntando por que estou escrevendo isso. É que parti para a internet buscando informações sobre essa família, que tinha um único filho. Estou falando dos pais de Velso Ribas. O Velso mesmo conheci muito pouco, mas ouvi muito falar dele, durante o período em que ele estava na França, nos anos 70. A história que ele narra no livro aqui citado eu conhecia, sem a parte do tapa. A mãe dele morreu em 1990. Nos anos 70, éramos vizinhos quase "de muro". Hoje moro de novo bem perto de onde ela passou os últimos anos, na Tijuca. A casa de Jacarepaguá está lá, ainda com as grades que s. Ribas fez, na serralheria que ele teve lá perto. Me deu vontade de escrever isso. na verdade, eu vinha pensando que s. Ribas só podia ser mesmo galego. O nome devia ser "Rivas". No sonho eu perguntava a D. Anete em que lugar ele havia nascido, mas a resposta não corresponde a nada que exista. De qualquer forma, encontrei o livro "A geração que quis mudar o mundo", e ali li o Velso confirmando a minha suspeita: o pai era galego. Novamente d. Anete me dá uma dica. Aliás, várias. Lembro-me que ela me dizia que trabalhou em um cinema e em algum lugar que lidava com desenho. Ela levou o Velso ainda bem pequeno nesses dois lugares. Ela atribuía a isso o gosto que ele tinha tanto pelo desenho, quanto pelo cinema. Pois agora me dou conta que eu, apesar de ser neto de portugueses e italianos, tenho forte ligação com a Galícia (por ter estudado lá) e sempre me identifiquei com a França, talvez por ter muito ouvido falar de Paris, e do Velso, quando eu era criança, nos idos dos anos 70.
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