Abro o livro do escritor pernambucano Urariano Mota “O Filho renegado de Deus”, e lá encontro, no início do romance:
“- Senta, filho, que os mortos voltam.
Ela nada lhe disse assim, de viva voz, mas ele obedeceu à ordem. O que faz um homem quando reencontra a sua mãe falecida? Obedece-lhe, contrito, grato, louco doido de amor, de carinho e saudade.”
Sabendo que é a história de um filho que reencontra a mãe morta atiça minha curiosidade, principalmente por ser de Urariano, escritor que já provou seu talento em obras anteriores como “Os corações futuristas” e “Soledad no Recife”.
Mas é segunda-feira. Preciso lavar roupa, colocar feijão no fogo, fazer o almoço e todas essas miudezas que compõem o universo de tantas mulheres. De tantas Marias como as que povoam o romance de Urariano, e que desses afazeres só se livram com a morte. Largo o livro sobre o sofá e vou para a cozinha.
Antes ligo o som para ficar ouvindo Mozart. Mas enquanto descasco alguns legumes, as personagens não me largam. Dona Maria e Jimeralto parecem me puxar pelo avental. Mas agora não posso, digo em voz alta. A mim mesma, a eles ou ao fogão, à geladeira, ao micro-ondas, tal qual a Shirley Valentine do filme de mesmo nome? Mozart está lá. Indiferente, segue as faixas, sonata após sonata, sem se incomodar com minha inquietação.
Por que teria voltado aquela mãe para falar com o filho? O que não lhe disse quando viva e que era preciso dizer agora? A curiosidade não me deixa, preciso voltar ao livro. O que é tão importante para dona Maria que, vencendo as leis da vida, do universo , a levou a transpor o muro que separa o mundo dos mortos do mundo dos vivos?
Pronto, me rendo: boto bastante água no feijão, um truque que utilizo sempre que quero ler ou escrever sem queimar as comidas, agarro o livro, e retomo a leitura. Descubro mais um pouco da história: Jimeralto, a personagem central do livro, vai ao enterro de uma amiga de infância, e o que poderia ter sido apenas uma ida ao cemitério, tal qual o poeta Dante guiado por Virgílio em “A Divina Comédia”, reencontra a mãe morta
É a partir daí, que a história se desenrola. Revisitando o passado, o personagem mergulha em um labirinto que o leva a um passado que parecia completamente esquecido, tal qual um câncer que está lá, silencioso, e por isso dele não tomamos, não queremos tomar conhecimento. Mas há um momento em que ele começa a doer, já não nos é possível ignorá-lo. É preciso encará-lo.
E é assim, nos (des)caminhos desse labirinto que ele rememora a infância, começa a digerir sua história e a compreender àquela mãe tão doce, tão carente, e de quem nunca se vê revolta, nem se ouve reclamações.
A solidão dela, como a de tantas outras Marias daquela “vila, ou conjunto dividido em paredes na senzala” somente agora, a ele se revela. E nesse encontro com o passado, o personagem reencontra também o pai; aquele homem rude, grosseiro, já não lhe parece tão poderoso, tão ruim, como foi para o menino Jimeralto e sua mãe. Era apenas mais uma vítima daquele mundo injusto e preconceituoso.
Penso nessa Maria que me remete à Maria bíblica que tanto sofreu pelo filho, penso naquele menino perdido em meio à insensibilidade do pai, a todas aquelas carências... Há dores tão profundas, que é impossível sofrer em silêncio, por isso Jimeralto geme alto...
Pronto: o livro já me seduziu.
E durante a leitura encontro algumas passagens que revelam a beleza que só agora Jimeralto, adulto, percebe:
“Aquilo lhe chegava como borboleta sem música da crisálida.”
E ao relembrar o suplício do amigo Cecílio, filho de uma mulher linda, que o envergonhava com seu comportamento de mulher livre, já adulto se pergunta: “ por que todos os meninos não merecem ter mãe sem beleza?(...) Mãe mulher sem sexo de cobiça, por que, meu Deus?”
“Lá fora passava o menino que vendia pirulito, que era uma calda sólida em forma de cone comprido, embrulhado em papel barato e anunciado com um apito de madeira, num som que era açúcar, poesia e música em um sopro, “piuí”.”
“ Filadelfo deitado, sem forças, a conversar em inglês sobre prostitutas camaradas que perguntaram por sua saúde, porque as putas são humanas, companheiras, até elas saem dos esquemas rígidos de Jimeralto treze anos depois. Ali, quando estiver na pensão, na clandestinidade.”
E sentindo-se pequeno diante de tudo que vivera, das pessoas daquela Vila da Alegria, Vila Felicidade, Rua Alegre, Rua dos Sete Pecados, constata:
“ Meu Deus, como sou pequeno. Uma página é pouco para mim, ele disse. E a página era a vida em branco que não estava escrita.”
O romance está repleto de passagens líricas como essas, mas me é impossível reproduzir todas aqui, nesta curta resenha. Cabe ao leitor descobri-las.
Ao terminar a leitura, constato que este é, possivelmente, o mais belo romance de Urariano Mota.
Mota, Urariano- O Filho Renegado de Deus,Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2013
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