“Naquele dia (...) soube com exatidão o que era ter Medo – um medo assim, com maiúscula, real, invasivo, onipotente e ubíquo, muito mais devastador que o receio da dor física ou do desconhecido...” diz Iván Cárdenas Maturell, ao receber a noticia do diretor da revista de que o conto que escrevera era contrarrevolucionário.
“O homem que amava os cachorros” de Leonardo Padura (Edit Boitempo, S.Paulo, 2013, 590 pp) reconstrói o exílio de Leon Trotstky e a “biografia” do seu assassino, Ramón Mercader. Iván é o personagem-escritor que renuncia ainda jovem ao “oficio literário demolidor” – e só retoma a escrita anos depois de vários encontros com Mercader em uma praia cubana.
Há vários tempos históricos nessa reconstrução: as reflexões do revolucionário russo desterrado, do militante do PC espanhol destinado à missão de matar Trotsky, e de Iván, o escritor. É também uma retomada do socialismo no século XX, da Revolução Bolchevique e da construção do comunismo em Cuba.
Em um século em que milhões perderam a vida em conflitos armados, o autor nos leva a pensar na contingência inevitável da morte. “Na guerra ou matamos ou nos matam. Mas eu vi o que há de pior nos seres humanos, sobretudo fora da guerra. Você não pode imaginar do que o homem é capaz, o que podem fazer o ódio e o rancor...” diz Mercader a Iván.
O “personagem” Trotsky reflete sobre os rumos da revolução de 1917. Quais batalhas foram mais árduas? Entre bolcheviques e mencheviques? As do período revolucionário de 1917? As da guerra civil após a revolução? As das disputas pela sucessão e controle do partido? Com a ascensão de Stalin após a morte de Lenin, inicia-se um período de expurgos, julgamentos sumários, campos de trabalho forçado (os gulags) e execuções de antigos militantes bolcheviques. É o terror do Estado em nome da sobrevivência do socialismo.
Ramón Mercader se transforma ao aceitar a conspiração do stalinismo. O que o levou a abandonar a luta da Frente Popular na guerra civil na Espanha para engajar-se no plano de assassinar Trotsky? O que pensava do seu ato suicida? Teve dúvidas em cometer o atentado? O autor do livro reconstrói o personagem e o traz de volta ao local do crime. E depois de 20 anos de prisão no México, parte para Cuba e Rússia, onde foi condecorado como Herói da URSS.
Iván recorda o inicio da revolução cubana: os anos de fidelidade, obediência, disciplina faziam parte dessa empreitada heróica para a saída do subdesenvolvimento, da miséria. O espírito de sacrifício desses anos é abalado com a crise dos anos 90: as decepções, os fracassos, as fugas abalam as esperanças. O personagem-escritor é o retrato trágico de uma geração que concordou em adiar os sonhos por um futuro utópico.
O destino de 2 personagens reais – Trotsky e Mercader – e de um narrador nos conduzem à reflexão dos rumos da esquerda, hoje. No século XXI, Cuba ainda resiste – e Padura nos revela os dilemas do presente.
Na nota final, o autor recorda como surgiu a ideia do livro, dos sonhos que embalaram a sua geração, do exercício entre a realidade verificável e a ficção. Houve “a mediação de anos para refletir, ler, investigar, discutir e, sobretudo, penetrar com assombro e horror pelo menos numa parte da verdade de uma história exemplar do século XX e da biografia desses personagens obscuros mas reais que aparecem no livro”.
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