sábado, 13 de dezembro de 2014

RECORDANDO Elisa de Jesus Ferro e os mortos e desaparecidos políticos- João dos Reis


RECORDANDO Elisa de Jesus Ferro e os mortos e desaparecidos políticos

“Quem se lembrará de ti depois da morte? E quem rogará por ti? Faze já, caríssimo irmão, quanto puderes, pois não sabes quando morrerá nem o que te sucederá depois da morte. Enquanto tem tempo, ajunta riquezas imortais” (Imitação de Cristo, cap. 23-8)

Muitos dos que tenho lembrado – ou quase todos – estão mortos Pensei no luto – e na superação dele - que devemos dedicar aos habitaram nosso território sagrado. Acredito que eles permanecerão entre nós enquanto formos capazes de recordá-los.

ELISA DE JESUS FERRO, minha querida avó, está sempre presente no meu coração. Nasceu em Penhas Juntas, Trás-os-Montes, em Portugal. Emigrou para o Brasil em 1926. Ela e meu avô, Marcelino Matheus, eram jovens, e foram lavradores, trabalharam a terra americana . Sempre me lembro quando sento à mesa para as refeições: agradecer, como eles sempre faziam, e lembrar de onde vem os alimentos que saciam a nossa fome e o desejo de viver.

Lembro da felicidade dela quando foi alfabetizada já adulta. Católica fervorosa, presenteei-a com o livro “Imitação de Cristo”, de Tomás de Kempis, que ela lia diariamente. Me impressionou a prática do jejum – era uma “intenção”, que devemos lembrar da morte do corpo e da salvação da alma.. As novenas ao cemitério de Duartina (SP), minha cidade natal, eram constantes. Rezava pelos que estavam repousando no túmulo da família – mas também pelos vivos que enfrentavam esse “vale de lágrimas”.

Não havia funerárias no interior paulista - eram as mulheres que preparavam os defuntos para a despedida final. A lavagem e preparação dos corpos eram interditas aos homens e às crianças. Guardei essa imagem, esse cuidado feminino. Ela também era chamada para as preces finais, antes do fechamento do caixão e o cortejo fúnebre.

Passei todas as férias escolares e de trabalho sempre com ela. Ela me esperava e cozinhava os seus (e os meus) pratos preferidos: bacalhau à moda trasmontana, lombo assado e manjar de côco. Era a maneira que ela tinha para dizer como eu era bem vindo a sua casa e a minha companhia. Já octagenária, me pediu “para que escrevesse de vez em quando, porque gente velha gosta de receber cartinhas” – o que eu fiz regularmente.

No inicio dos anos 70 sabiamos das mortes e desaparecimentos de presos políticos Foi um período de tensão, de angústia. Não tínhamos informações dos companheiros; muitos viviam na clandestinidade ou estavam na prisão. A imprensa estava sob censura – e esperávamos noticias vindas de fora do país. E o que me marcou profundamente naqueles anos – e ainda hoje – é que as famílias dos militantes não conseguiram se despedir de seus parentes queridos.

Pude acompanhar o funeral dos mortos da minha infância - as orações, o velório e o sepultamento. Por isso tenha lembrado de alguns dos mortos sem sepultura – Fernando Santa Cruz de Oliveira, Aylton Adalberto Mortati.,Antonio Benetazzo, Carlos Alberto Soares de Freitas, entre muitos outros. A história de Ruy Carlos Vieira Berbert é a mais dramática: a família realizou um enterro simbólico anos depois do seu desaparecimento. No caixão, não havia corpo nem restos mortais, apenas os sapatos e o terno de Ruy.

Minha avó Elisa acreditava que a cerimônia de adeus era um passaporte para a vida eterna aos que partem do nosso planeta. E o momento de revelar nosso desejo de que permaneçam na nossa memória para sempre.

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