RETALHOS DA VIDA Joaquim Belo da Silva
No dia 04 de Novembro, Dona Julieta, minha saudosa mãe,
faria 92 anos. Eu escrevi esse relato para homenagear uma mulher de fibra que
passou pela vida sem vivê-la plenamente, pois toda ela, foi-nos dedicada, aos
filhos e por bem pouco, bem pouco mesmo, não se tornou uma das mães da Plaza de
Mayo.
Quando eu li “A Mãe”, do escritor russo Máximo Gorki, senti
que Pelágia, tinha muitos nomes e muitas nacionalidades, inclusive, poderia
muito bem chamar-se Julieta. As transformações das pessoas se dão
quando elas se conscientizam e descobrem que a fome e a miséria não são
determinadas por Deus, mas pelas consequências de uma sociedade centralizadora,
injusta, cruel e desumana.
Estávamos no período mais duro da ditadura militar. Os
militares tinham iniciado a globalização da tortura e do desrespeito aos
direitos humanos, abrindo mão das fronteiras e da soberania nacional,
permitindo que qualquer agente de outro país entrasse em seus territórios em
busca de terroristas, como assim eles tratavam aqueles que se manifestavam
contra a opressão, e lutavam pela volta do estado de direito. Era a operação
Condor. Vou omitir as datas, porque, com certeza, seria corrigido pelo meu
irmão Antonio Belo.
Minha irmã, Maria
Inês da Silva e o Namorado, Abiasaf Xavier de Brito, que haviam saído
recentemente da prisão aqui no Brasil, aproveitaram os ventos da liberdade e
fugiram para o Chile. Primeiro ele, ela
depois.
No Chile, o governo Socialista de Salvador Allende lutava
contra o boicote econômico patrocinado pelo governo americano, “arautos da democracia e respeitadores dos
direitos humanos”, como sempre se apresentaram para o resto do mundo. O governo
democrático de Salvador Allende caiu em 11 de Setembro de 1973 e instalou-se no
país, talvez a mais cruel ditadura já vista em nosso
continente, sob o comando do general fascista Augusto Pinochet.
Diante das circunstâncias, foram eles obrigados a fugir para
a Argentina, país que ainda estava sob um regime democrático. Mas o vírus da
ditadura se alastrava como erva daninha pela América do Sul. O governo daquele
país também caiu, instalando-se mais uma
sangrenta ditadura em nosso continente, ficando à frente do governo, o General
Carlos Rafael Videla, que se celebrizou por se revelar o maior torturador da
ditadura argentina.
Inês e Abi foram
presos e torturados nos porões da ditadura argentina, em companhia de mais dois
outros brasileiros. A mãe de um dos prisioneiros, residente no estado de Goiás, de volta da Argentina, após a visita e a libertação
do filho preso, colocou uma nota no jornal “O Popular” de Goiás, sobre a
situação de penúria em que Inês e Abi se encontravam, nos cárceres da ditadura
do governo Rafael Videla”. Uma senhora de nome Aurora Baú, recortou e me enviou
aquela nota publicada no Jornal. Como
ela descobriu meu endereço, até hoje é um mistério...
Começamos a nos movimentar no sentido de libertar o
casal; ou pelo menos tornar pública as prisões, evitando assim que mais dois corpos não identificados
aparecessem boiando nas águas do Rio da Prata. Uma missão que não era fácil
dentro do contexto político não só da Argentina, mas de todos os países
Latino-americanos.
Por mais que
tentássemos esconder o fato de Dona
Julieta, a nossa mãe, era uma missão praticamente impossível, pois ela era
muito perspicaz, capaz de antever coisas incríveis em relação aos filhos. Certa
vez viajei de Anápolis, estado de Goiás, para o Recife, sem avisar a ninguém,
pois se eu avisasse ela iria fazer despesas extras e desequilibrar o orçamento
doméstico. Mas, inexplicavelmente, quando eu cheguei, ela tinha feito uma
peixada de Cioba e doce de ovos que era a minha paixão. Sorriu e disse: eu não
falei que Joaquim iria chegar?...
À mediada que o tempo
ia passando, ficava cada vez mais difícil manter a história em segredo. Quando
ela finalmente tomou conhecimento dos fatos, com firmeza e determinação começou a movimentar-se, e teve uma reação
oposta à que todos imaginavam. Sua primeira providência foi fazer uma carta para
o Sr. Carlos Rodriguez, do Alto Comissariado das Nações Unidas, carta essa que
foi lida e colocada nos anais da Assembleia Legislativa do estado de
Pernambuco, pelo jovem Roberto Freire, na época um aguerrido deputado que,
junto com Maurílio Ferreira Lima, era uma das poucas vozes que tinha coragem de
se manifestar contra o regime militar.
Dona Julieta fez uma
reunião com os filhos e disse: estou indo para Buenos Aires tirar minha filha
da prisão. A surpresa foi geral. Tentamos demovê-la da ideia com todas as ponderações possíveis: que ela
não sabia falar espanhol e que Buenos Aires era na época uma cidade maior do
que São Paulo e tantos outros inúteis argumentos. Os amigos e conhecidos
começaram a se manifestar e conseguiram passagens, dinheiro, roupas, e outras providências mais.
Na véspera de sua viagem, chegou uma carta das Nações Unidas
comunicando que os dois haviam sido
libertados e aceitos pelo governo da Bélgica como exilados políticos. Onde
permanecem até os dias atuais.
Dona Julieta vive hoje em outra dimensão, a dimensão dos
nossos pensamentos. Vive em nossa memória, nas canções que gostava de cantar.
Vejo-a como se fosse um filme, sentada em sua inseparável máquina Singer,
costurando os retalhos da vida ou em frente do velho fogão à lenha cozinhando
as ilusões que matavam nossa fome.
Entre todas as lembranças, talvez a mais comovente seja a
sua luta obsessiva para nos manter vivos e saudáveis, época em que havia um
elevadíssimo índice de mortalidade infantil e tinha para isso um arsenal
terrível tanto para os inimigos externos que queriam se apropriar indevidamente
do pão nosso de cada dia - os vermes - quanto para nós, as vítimas: Sementes de
mamão, Biotônico Fontoura, Emulsão Scott, que era um extrato de óleo de fígado
de Bacalhau - acredito que seja muito bom para memória, pois nunca mais consegui
esquecer aquele gosto horrível.
Lembro-me que ela apanhava limalhas de ferro na oficina de
um ferreiro que tinha perto da nossa casa, em Betânia, colocava dentro de uma
vasilha com água e depois de sete dias nos dava para ingerir àquela água
ferruginosa, que era para repor o ferro subtraído pelo inimigo. Pela saúde,
energia e disposição que têm todos os seus filhos, acredito que tenham sido
eficazes, as suas fórmulas artesanais. Uma coisa é certa: foi eficaz o exemplo
de amor e determinação de uma mulher e mãe extraordinária.
Belém, 02 de Novembro de 2012.
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