Eudes, este era seu nome, hoje estaria completando 70 anos, daí a homenagem que sua irmã, minha amiga Alfredina Nery, lhe presta nesta data. Leiam esta beleza de texto:
Uma vida sob uma perspectiva
Dina
30/outubro/2012
Meu irmão nasceu de um grande amor: ela, viúva jovem, ele, solteiro, filho único. Mas como não eram casados, ele só soube do menino, quando este já tinha dois anos. Duas certidões de nascimento sempre foram o grande segredo da nossa infância. Havia algo, dito aos sussurros, que, à época não entendíamos.
Filho mais velho de cinco começou cedo a trabalhar. Com nove anos, entregava remédios da farmácia nas casas da pequena cidade do interior de São Paulo. Lá ía ele na bicicleta do farmacêutico, com suas pernas curtas enfiadas entre o cano e os pedais. Aos onze anos foi trabalhar em uma oficina mecânica. Era preciso ajudar no orçamento da família. Escola? Era suficiente ter o curso primário.
E o menino já fazia sucesso entre as meninas, com aqueles olhos enormes e expressivos. Também já mostrava sua inventividade, como curioso e habilidoso que era. Um dia, invejando a liberdade dos pássaros quis voar. E como Ícaro moderno, criou umas asas, colocou-as amarradas nos pequenos e magros braços , subiu no forno à lenha, no quintal. e...triunfante...esborrachou-se no chão! Contudo, ali estava plantada a semente: nunca o chão era suficiente. Sonhar com a liberdade ficou sendo seu jeito de ser.
Aos dezoito anos, a grande mudança. A família mudou para a capital, em busca de vida melhor. Ele continuou sonhador, namorador e sedutor. Na cidade grande, continuou sendo operário. E, ao mesmo tempo, um sentimento de inadaptação à vida comum de família comum: levantar cedo, trabalhar, esperar o salário no final do mês, não consumir nada além da necessidade. Para ampliar isto, muita música, bailes e moças bonitas. A alegria da vida sorvida, como se o fim estivesse próximo ( e estava...).
Um dia fez, com as próprias mãos e com a ajuda da mãe, um barco de madeira, para navegar nas águas de um rio próximo. Muita diversão, ele proporcionou com mais uma das suas invencionices. Novamente, a ideia de viajar, de ampliar horizontes dava o seu toque naquela vida!
A irmã mais nova nunca se esqueceu de uma de suas tarefas diárias: ir levar o almoço quentinho preparado pela mãe a ele, na fábrica de trens em que trabalhava. Ela chegava, assim, menina, também de grandes olhos. E lá estava ele, de macacão sujo de graxa, mas lindo como sempre, recebendo-a com aqueles olhos inesquecíveis e um grande sorriso, pela marmita que matava a fome que, na época, era possível matar. Ah, se ela tivesse podido ajudar a matar outras fomes tantas que ele teve, ao longo de sua curta vida...
Um dia, uma decisão: ser torneiro mecânico não dava mais. Ele queria viver outras paragens. Ícaro dava, de novo, a direção: era necessário voar, buscar a liberdade! Tornou-se vendedor de ações, uma novidade na época. Passava dias e semanas longe da família, viajando, trabalhando e sorvendo a vida, em tudo que ela podia oferecer a ele. E, quando retornava, trazia a alegria de volta no coração da mãe e na imaginação dos irmãos que ficaram, que viveram, no cotidiano, as durezas e as alegrias de uma família brasileira comum. Ele trazia nos olhos e nos seus relatos a alegria da viagem, novamente. Isto nos alimentava e nos dava a possiblidade de, um dia, também sermos Ícaros, como ele!
Namorou muito, mas um dia, resolveu que se casaria. A surpresa foi a escolha, pois, entre as mulheres independentes e glamurosas que namorara, escolheu uma tímida moça. Pequena, perto dele. Muito quieta perto do brilho da fala dele. A dura realidade econômica bateu, mais uma vez, à porta. Ele voltou a ser torneiro mecânico. Tornou a usar um macacão sujo de graxa.
Nasceu o primeiro filho. Parecido com ele. A paixão dele pelo filho emocionava a todos. Sempre gostou de levar o filho para ir ver os enormes caminhões que estacionavam em um posto de gasolina. Nasceu outro filho e junto com ele, a função de pai se sobrepôs a todas. O pai carinhoso e paciente com as diabruras infantis continuava.
Entretanto, uma das parcas já tinha selado seu destino. Ele tinha pouco tempo para viver. Um câncer fulminante matou-o aos trinta e oito anos de idade. Um filho com seis anos e o outro, com dois. Novamente, a irmã mais nova estava lá, quando de sua passagem, no hospital. Ele pediu a ela, antes do fim, que o ajudasse a sentar na cama porque queria ver a enorme árvore que havia lá fora, perto da janela. Novamente, a viagem se pôs. Mais uma vez, seus olhos grandes e expressivos olharam, profundamente, aquela manhã de sol, como uma despedida. As asas de Ícaro foram cortadas tão cedo!
Hoje, ele faria setenta anos. Não consigo deixar de pensar como seria sua vida, a nossa vida, se ele estivesse vivo. O que mais Ìcaro teria podido viver? Que pessoa ele teria se tornado, com o amadurecimento? Como estariam seus olhos expressivos, hoje? Quais viagens ele nos proporia?
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