quarta-feira, 2 de outubro de 2019

O último adeus: meu avô Marcelino Matheus Ferro



Há palavras lança-chamas / Conheço algumas que nos fazem viver,/ por não serem simples som / mas estradas incendiadas por dentro, / duplos corações batendo com o calor / da certeza do dia que se segue. /(...) Quebrando o meu silêncio, / povoo alguns espaços de alegria. / (...) Nas palavras me encontro. / Cansado, quase morto ,à espera, / sempre à espera. Nas palavras vivo, / denuncio ou ataco. Há um grande sol / à nossa espera. Quantos somos?”
Trecho do poema “Algumas palavras”, de Eduardo Guerra Carneiro

Estou sozinho na estação de Duartina à espera do trem para São Paulo. Meu avô Marcelino Matheus Ferro não me acompanha: teve um acidente vascular cerebral e está acamado. Despedi-me dele em silêncio – e foi a última vez que o vi. Foi a imagem mais triste que ficou das minhas férias na minha cidade natal do interior paulista.
Todos os anos ia visitá-lo – era um período de descanso da rotina de trabalho e estudo - e uma volta ao passado familiar. Minha avó Elisa de Jesus Ferro sempre me esperava com meus pratos preferidos: bacalhau à moda de Trás-os-Montes ou lombo assado – e a sobremesa de manjar de côco com ameixas.
Como eram as nossas conversas? Antes de vir para o Brasil, eram agricultores – plantação de vinha, oliveira, figueira -, e do pastoreio de carneiros. Meu avô era de um mutismo absoluto; com ele, nascido nas montanhas do Norte de Portugal, aprendi o segredo das palavras: elas têm uma magia que cabe a nós descobrir a cada vez que precisamos usá-las.
Procurava saber como foi a travessia do Atlântico em 1926 na viagem de aventura para a América. Que sonhos eles carregavam, deixando os pais e familiares? Era um piá – e mesmo quando adolescente e na juventude, perguntava a eles: o que esperavam do Novo Mundo? Tia Isaura era a correspondente epistolar da família espalhada pelo nosso planeta. Ela me entregava para ler as cartas dos que viviam em Angola, França e EUA – a saga dos portugueses que partiram para um novo país, um novo continente. Em uma delas, e que comentei com meu avô, falava da forte nevasca nas aldeias de Penhas Juntas e Falgueiras na província de Trás-os-Montes, que impediu que os moradores saíssem de casa por vários dias.
Como era o nosso diálogo? Lia para eles as cartas que vinham de Portugal – e que falavam do trabalho com a terra, a neve de dezembro, o cotidiano na aldeia. Na foto, a tia-avó Piedade, octagenária, de cabelos brancos, olhando-nos - e eu me perguntava: ela estava feliz, solitária, sob os cuidados de dois sobrinhos solteiros que permaneceram em Trás-os-Montes? Nas imagens, eles apareciam em frente a uma casa construída com pedras: como eles enfrentavam o frio e o vento do inverno? Essa volta às origens esteve marcada pelas orações, realizadas pela minha avó Elisa de Jesus Ferro. Era uma reverência aos nossos mortos – e que mereciam as nossas preces. Acompanhei-a em muitas tardes ao cemitério da cidade, e diante do túmulo da familia, roguei por eles – pedindo a misericórdia divina, o descanso e a paz eterna.
No álbum de fotografias, revisitava os nossos familiares - era um retorno à história da imigração europeia para a América. Ouvia os relatos da longa travessia do Atlântico de navio, das dificuldades dos primeiros anos, do trabalho no campo. A ligação com a terra brasileira surgia logo que eu chegava de viagem: a avó Elisa me pedia que fosse ver a horta e o jardim - em que ela cultivava, com orgulho, roseiras, lírios (copos-de-leite), palmas-de-santa-rita, tomates, couve, almeirão, e onde havia uma parreira, limoeiros e figueiras
Nas manhãs em que minha avó Elisa preparava o forno a lenha para o pão e o almoço com os meus pratos preferidos – lombo assado ou bacalhau à moda transmontana – conversávamos sobre o passado – e conheci a saga dos Negrini, contada por ela, que foi amiga da minha avó Pasqualina. Todos vieram para o Brasil em busca do sonho americano, e eu procurava me reencontrar nessas esperanças de uma vida melhor. Foram anos em que refleti sobre o que o destino me reservava. Foi uma aventura às vezes inglória e desesperada, a de saber qual é o mundo que tanto sonhamos para viver e ser felizes.
Meu avô me presenteou com a bíblia do século XIX que ele ganhou do meu bisavô. Outra recordação é uma pedra: ele a usava como apoio aos papéis de embrulho. É ela a presença mais visível dele e da nossa convivência mergulhada em silêncio – que descobri mais tarde tinha sido muito feliz.
Guardei o registro de identidade do avô Marcelino – e os entreguei para meus primos Miro, Cidinha e Gustavo, que também ficaram com a bíblia e o álbum de fotografias. A estação da estrada de ferro da cidade foi demolida. A parreira, os limoeiros e as figueiras não existem mais. Não há mais documentos da história dos imigrantes - apenas as imagens e as recordações na minha memória.
Era sempre meu avô Marcelino que me acompanhava à estação de trem – e eu me despedia beijando a sua mão– e o fiz desde criança. Lembro que depois o abraçava e agradecia a garrafa de vinho que ele abrira para comemorar a minha visita.
Estava lecionando no Litoral Norte de São Paulo, e tinha vindo visitar minha mãe em Osasco – não soube que, no domingo , dois de março de 1975, em que retornava ao litoral, ele faleceu. Não havia telefone onde morava, e só fui informado na manhã de 3ª feira pela diretora da escola onde trabalhava em Caraguatatuba. À tarde procurei a solidão da praia deserta para o meu último adeus.

NOTA – O poema “Algumas palavras”, de Eduardo Guerra Carneiro, in “Antologia da poesia portuguesa contemporânea – um panorama”, org. de Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno, Editora Lacerda, Rio de Janeiro, 1999,pp. 371/372.













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