sábado, 8 de janeiro de 2022
O CASARÃO DE SANTA TERESA
Delicadeza de pássaro. São meus passos dentro da noite. Entro no banheiro, caminho pela sala, passo polo corredor sem acender a luz. O que busco? Procuro o quê? Talvez um pedaço de mim na rachadura da porcelana ou nas pétalas secas de acácia, presas entre as páginas de um livro mil vezes lido.
Procuro não incomodar os pássaros, meus iguais, presos nas gaiolas, a esta hora dormindo. Talvez me sinta, eu mesma, engaiolada. Uma mulher noturna caminhando dentro da noite sem esbarrar nos móveis, tocando de leve as paredes de onde a fitam os antepassados, esses presos em molduras antigas. Mas não me assustam, pois não os vejo.
E por ser noite sou também manhã quando acendo a cha¬ma do gás e acordo o sol com o cheiro do café. É ele que me aquece o peito e me prepara para as tragédias do jornal que leio toda manhã.
E foi hoje, enquanto o lia, que comecei a relembrar minha infância, o que me levou a escrever este livro.
Menina, me vejo no casarão antigo de Santa Teresa em que morava a mãe de minha madrinha. Era branco com janelas enormes, pintadas de azul escuro.
Subimos, meus pais, irmãos e eu, a enorme escadaria da entrada. Estou sozinha, percorrendo aquela casa com paredes tão altas que eu precisava dobrar a cabeça toda para trás para conseguir ver o teto, todo pintado com guirlandas de flores azuis e rosa bem clarinhos, sobre um fundo branco.
Entro em quartos, quartos, quartos, todos mobiliados com camas de casal e camiseiras de madeira escura. Sobre cada camiseira, uma bacia e uma jarra, às vezes de porcelana pintada com flores, às vezes de ágata e algumas de metal. Os quartos davam para um corredor escuro, com piso de tábuas largas, tão enceradas que era quase possível mirar-se nele.
Desde a primeira vez, a casa me despertou curi¬osidade. Naquela tarde me vejo sozinha no pequeno jar¬dim de inverno com piso de vidro em duas tonalidades de ver¬de. Sobre ele, vasos de barro tão cobertos de limo que pareci¬am ter brotado das frestas dos vidros e dentro deles, vários pés de hortênsias azuis e rosa. Alguns vasos estavam pendurados e deles pendiam cabelos verdes de samambaias. Uma luz suave passava através do teto, tingindo folhas e flores de violeta, verde, amarelo e rosa. A princípio não en-tendi o porquê daquelas cores. Quando olhei pra cima vi o teto em forma de vitral de onde São Francisco cercado de pássaros se destacava, emudeci. Jamais vira nada igual. Não sei quanto tempo fiquei ali contemplando aquela imagem tão nova. A contemplação só terminou quando vieram me buscar para ir embora.
Do que se falou aquela tarde, muito pouco ficou. Lembro-me de fragmentos de frases ditas pela dona da casa, uma mulher muito bonita, com certo ar de mistério. Daquela conversa, o que me pareceu mais importante foi a revelação que fez à minha mãe, sobre o segredo de sua juventude: só banhava o rosto com água que dormisse no sereno. Ao ouvi-la, a imagem do luar mergulhado em uma bacia d‘água me veio à cabeça e achei que o seu mistério vinha daquele pacto com a lua.
Trecho do primeiro capítulo de “Eu: primeira pessoa, singular” Editora TM : São Carlos, SP: EDUFSCar,1996 – Risomar Fasanaro
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