“Seo” João Fasanaro abriu o portão da rua e me convidou para entrar. Nesse dia, estava mais cordial do que de outras vezes. Diria que estava mesmo sorridente: afável, me convidou para sentar, dizendo que iria chamar a filha, Risomar. E essa é a última imagem que guardo dele. Depois, já em outra casa, na rua Avelino Lopes, entrou em uma fase de mutismo absoluto – quando o visitava, imobilizado no sofá da sala, me olhava em silêncio.
Essa introdução é para dizer o que mais me emocionou no depoimento da professora Risomar à Comissão da Verdade de Osasco no Sindicato dos Metalúrgicos. Lembrar que as Forças Armadas brasileiras não reconhecem a participação em prisões arbitrárias, espancamentos, sequestros, torturas e desaparecimentos de presos políticos. Aguardamos delas o pedido de perdão à nação e ao povo brasileiro - sabemos que a grande maioria dos militares não compactuaram nem concordam com as atrocidades cometidas durante os anos de terrorismo policial.
“Seo” João foi militar do Exército no Quartel de Quitáuna em Osasco até a aposentadoria. Fiquei informado mais uma vez que ele sempre apoiou a participação política da filha, que sabia das atividades em que os amigos dela estavam engajados.
RISOMAR FASANARO, a agitadora cultural da cidade de Osasco, professora de Lingua Portuguesa e Literatura, escritora, poetisa, militante do movimento das mulheres e dos professores, não esqueceu das lembranças do pai durante a sessão que se realizou no Sindicato dos Metalúrgicos.
Algumas informações da biografia dela me marcaram nessa tarde de recordações. As reuniões do grupo de estudantes na Biblioteca Municipal; a participação em um projeto de alfabetização de adultos – que foi proibido pelos golpistas; o apoio e envolvimento com o grupo de teatro Barracão, com o Núcleo Expressão e com a Vila dos Artistas no Jardim Cipava; a criação de letras de músicas nos Festivais da cidade; a professora-militante do Ginásio de Quitaúna, frequentado pelos militares do quartel. Fiz uma intervenção no debate nesse dia – para dizer a ela que uma revolução não se faz apenas com armas, mas também com palavras.
Fui leitor dos seus textos na coluna de jornal chamada “Girassol”. Ela já havia me contado, mas a força da imagem retornou com emoção: “seo” João lia as crônicas da filha, guardava, mostrava para os amigos, com orgulho da filha militante.
Dois casos contados no depoimento eu já conhecia. A prisão da professora Regina Crepaldi – porque presenteou um aluno com uma desenho do Che Guevara. E a detenção em Recife – estava de passagem pela cidade e queria fotografar o bairro do Socorro e o quartel onde o pai havia trabalhado e ela havia passado a infância. Foi uma volta ao passado que revelou o clima de terror que vivemos nos 20 anos de ditadura.
Risomar, nascida em Recife, disse no final a gratidão que sente por Osasco, a força que a cidade tem – que teve a coragem de enfrentar a ditadura com a greve dos trabalhadores em 1968. É a cidade proletária que deve estar grata pela presença dela na vida cultural, mesmo nos tempos de censura, desconfiança, medo do governo tirânico. Que, mesmo nesse clima de guerra, a artista pernambucana-osasquense soube criar arte e beleza. Osasco deve a ela uma homenagem digna do papel que desempenhou nesses anos de resistência.
Nos anos de juventude, estudantes e trabalhadores de Osasco ousaram sonhar, lutar, resistir. Em momentos de opressão, não perdemos os laços de amizade e solidariedade. Risomar - e a retomada da figura do “seo” João - nos fez recordar nossas esperanças por um mundo melhor. A revolução que queremos começa também nos pequenos gestos de delicadeza.
Ah! Como gosto do que escreves...Rio cristalino, livre e ligeiro, sentimento rico, doído e arrebatador...
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