domingo, 4 de agosto de 2024

As vozes da ditadura - João dos Reis

Ao Vozes da ditadura Prezados/as Profª Mariluci Uma sugestão para o blog: sobre a vida e a arte de Antonio Benetazzo (1941-1972). Pesquisando na internet, há muita informação sobre o militante e artista.. ANTONIO BENETAZZO nasceu em 01/11/1941 em Verona, Itália. Mudou-se ainda menino para o Brasil. Começou a trabalhar ainda criança; aos 13 anos era operário em São Paulo. Estudante de Filosofia e de Arquitetura na USP; foi presidente do centro acadêmico de Filosofia; professor de Filosofia e História da Arte em cursinho preparatório para o vestibular e no Iade (Instituto de Artes e Decoração). Militou no PCB, e depois da cisão do partido, na ALN. Foi um dos participantes do 30º Congresso de Ibiúna em 1968 – o cartaz da UNE para o encontro foi criação dele. Esteve em Cuba em 1971 e voltou como militante do Molipo. Foi preso em 28/10/1972 e morreu sob tortura dois dias depois; foi enterrado como indigente na Vala de Perus do Cemitério Dom Bosco em Perus; nos anos 80 a família conseguiu localizar e identificar o corpo e fazer o translado. Eu o conheci na Faculdade de Filosofia da USP em 1968; conversei poucas vezes com ele - eu tinha 19 anos, ele já era uma liderança estudantil. Recordo a presença dele durante a ocupação da faculdade e na chamada batalha da rua Maria Antonia com o CCC e estudantes da Universidade Mackenzie. Entre 1973 e 1980 fui professor de Filosofia nas cidades do Litoral Norte de São Paulo. Em Caraguatatuba, onde Benetazzo viveu parte de juventude, e entre os professores que tinham sido seus amigos, foi o personagem ausente, “desaparecido”, mais presente entre nós nos anos 70. Em São Sebastião, fui professor da irmã caçula dele, Italia; conversamos muito depois do final das aulas - era a aluna que esteve mais próxima de mim na escola estadual da cidade. Italia Benetazzo vive em Ribeirão Preto; reencontrei-a no Memorial da Resistência em outubro de 2019, em um “sábado resistente” em que o irmão dela foi homenageado – e ele me contou que escolheu o curso de Psicologia depois dos nossos diálogos. Conheci os filhos dela, Pedro e Isadora Benetazzo Serrer, estudantes de Geografia na USP, e confessei que não visitei os avós deles em São Sebastião nos anos 70: era um tempo de silêncio. Envio o único vídeo que encontrei, do Instituto Vladimir Herzog, com depoimentos das irmãs dele e de companheiros de militância. https://vladimirherzog.org/exposicao-antonio-benetazzo/vida-de-antonio-benetazzo/ Indico o livro de Reinaldo Cardenuto e uma exposição com o mesmo nome: “Antonio Benetazzo, permanências do sensível”. E o curta metragem “Entre imagens (Intervalo)”, de Reinaldo Cardenuto e André Fratti Costa. Uma observação: No texto do Instituto Vladimir Herzog e no site desaparecidospolíticos, está que ele foi enterrado no Cemitério Dom Bosco em 1972. Mas não consta que ele foi um dos foram identificados apenas nos anos 80. Essa informação está na página 30 do livro "Vala clandestina de Perus - desaparecidos políticos, um capítulo não encerrado da História brasileira" (vários autores, Instituto Macuco, São Paulo, 2012). Enviei no final do ano passado uma resenha do livro; envio-a novamente, no final.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Trecho do NOVO LIVRO QUE ESTOU ESCREVENDO - Risomar Fasanaro

Certo dia Chico Rossi andando pela Feira de Artes na praça Duque de Caxias me contou que a escola estadual do Jardim Cipava fora desativada e que pretendia criar naquele local a vila para os artistas projeto antigo dele, e que, para isso convidara Leopoldo Lima, artista plástico que morava em Ribeirão Preto, para ali morar. Fiquei entusiasmada. Sua idéia era que o núcleo residencial abrigasse artistas da cidade para ali viverem e criarem seus trabalhos. Para isso, convidou seu primeiro e mais importante morador, Leopoldo Lima, artista plástico de Ribeirão Preto, que realizava um trabalho de altíssima qualidade, e que veio a ser espécie de guru para os artistas da cidade. Lembro-me do primeiro dia em que estive no local. Os barracões de madeira estavam muito rebentados, não havia nem luz, nem água. Apenas o espaço que servira de sala de aula e a construção de alvenaria em que antes era a diretoria da escola. Irene e eu plantamos flores na entrada e várias árvores em torno daquelas duas construções. Vários dias depois eu ía de carro com Carlos Marx e José Pessoa, então meu namorado, à Secretaria de Obras buscar tábuas, pregos, tintas...E os dois consertaram aquelas paredes para receber Leopoldo. No dia que chegou a mudança de Leopoldo estávamos lá. Com ele tinham vindo Waldomiro Sant’Anna, artista plástico e Ruthenford, ambos de Ribeirão também. Era muito engraçado ver Ruthenford, espécie de lúmpen que acompanhava Leopoldo aonde ele fosse, carregando pequenos objetos, um de cada vez, e lentamente levar do caminhão até o interior do único cômodo de alvenaria, que foi onde Leopoldo se instalou, enquanto nós descarregávamos as peças mais pesadas. Alguns dias depois voltamos lá. De longe vi a cortina feita com roupinhas de crianças emendadas, enfeitando a janela daquele cômodo onde Leopoldo se instalara.. Naquele instante tive consciência de que Leopoldo era alguém muito especial. Fisicamente, ele era a cópia fiel de Van Gogh: magro, barba e cabelos ruivos, olhos intensamente azuis e de uma ternura sem limites. Calmo, tranqüilo, ficava horas esculpindo seus quadros em tábuas de caixotes de maçã. Mas isso não evitava que de repente se irritasse com os que o rodeavam e expulsasse todo mundo. Só conheci seu lado terno. Tivemos Carlos, Irene, José e eu o privilégio de ser amados por ele. Não sei hoje se consegui captar toda a grandeza daquele gênio. Minhas lembranças dele são tão preciosas que posso dizer, mesmo não gostando de adjetivos, que jamais conheci pessoa tão extraordinária, e que sim, eu conheci e convivi com aquele verdadeiro artista, único em tudo. E as lembranças que tenho dele não consigo registrar porque elas vivem dentro de mim, não fazem parte do que é material. Antes de derrubarem a Vila fui até lá certo dia, queria reviver tudo aquilo, mas o clima daquela época, as lembranças das pessoas com as quais convivera não existia mais, a riqueza do que eu vivera só estava em minhas lembranças. Não vendia nenhum de seus trabalhos, por isso, vivia em uma situação de extrema pobreza. Diziam que em Ribeirão Preto, a mulher dele às vezes se revoltava e vendia-os escondido. Entusiasmei-me com seus trabalhos e ele me convidou para aprender a esculpir. Assim, formamos um grupo e embora eu não tivesse nenhum talento, continuei o curso só para ficar perto dele, para conviver com aquela pessoa tão sábia, tão carismática. Na turma de alunos havia gente de talento como Regina Célia Crepaldi e o Cido, cujo sobrenome não me recordo, e que foi o melhor aluno que Leopoldo teve em Osasco. O curso de pirogravura e entalhe alcançou tanto sucesso, que o prefeito resolveu fazer uma cerimônia com coquetel e tudo, para a entrega dos certificados. Durante a cerimônia Rossi falou sobre a importância da criação de um espaço de convivência para os artistas, que agora tinham onde morar e realizar seus trabalhos e ensinar o que faziam. Depois, convidou o Leopoldo para fazer um discurso. Antes não o tivesse feito. Leopoldo com a roupa despojada de sempre, as sandálias de couro franciscanas talhadas por ele a canivete, denunciou as péssimas condições dos barracões, disse que não havia nem água nem luz, que ele tinha precisado tirar luz da favela, para poder viver ali. Que daquele jeito “ chefe, não dá pra ficar ali. Até agora não tive condições de trazer minha família. Aquilo ali tá uma merda!...” e enquanto Rossi disfarçava, nós já carregávamos Leopoldo para comer uns salgadinhos. A família do artista esteve na Vila em algumas ocasiões, mas não conseguiu viver ali, devido à falta de infra-estrutura. Além de Waldomiro Sant’Anna, o Mirinho, artista plástico de Ribeirão, e de Ruthenford, o pintor Paulo César também passou a residir na Vila. Ruthenford era uma figura muito especial. Engraçadíssimo. Ele e Leopoldo nos contavam mil aventuras que tinham vivido, entre elas que em Ribeirão os professores universitários levavam Ruthenford para dar a aula inaugural para os calouros de medicina, e que o Ruthen enrolava os calouros, mandava-os anotarem tudo que ele dizia, e só no final da exposição é que revelava que tudo aquilo não passava de brincadeira. Em 1973 realizávamos a Feira de Artes na Praça Duque de Caxias todos os domingos. Carlos Marx, José Pessoa, Irene e eu a coordenávamos, e era um sucesso. Era ali que Leopoldo expunha seus quadros de entalhe. Todos os domingos a feira ficava lotada. Artistas de São Paulo e de outros municípios também traziam seus trabalhos. Além de artesanato, promovíamos apresentações musicais e para incentivar a participação, entrevistávamos os expositores e publicávamos as matérias em uma página que tínhamos no “Jornal de Osasco” intitulada “Veredas”. Um dos expositores da feira era o José Ranciaro que além de artesão era marceneiro. Leopoldo Lima o convidou para ir até a Vila, e conhecendo seu trabalho, sua garra, convidou-o para morar lá. José Ranciaro aceitou o convite, e a partir dali, a Vila tomou um novo impulso. Ele e sua companheira Elisete, tornaram-se os coordenadores daquele espaço. Ele passou a se chamar Zé da Vila, e ela Baiana. Àquela altura muitos outros artistas passaram a

domingo, 5 de fevereiro de 2023

"A derrota - reflexões desordenadas de uma geração" - João dos Reis

Caros amigos/as Estou retomando minhas memórias a partir do projeto de filme de Heliana/Carlos Henrique sobre Carlos Alberto Soares de Freitas, militante da VAR Palmares, desaparecido político. Envio um texto do livro de Carlos Henrique "A derrota - reflexões desordenadas de uma geração" (2016, edição particular), em que sou citado por ele (página 171), e que ele reflete sobre a condição de exilado - um carioca que esteve no Chile, na Argentina, viveu em São Paulo, e agora, está há anos em Portugal. um abraço João "Leio com admiração os muitos episódios relatados pelo antigo companheiro da VAR de Osasco, João dos Reis, que nos conta as histórias de dezenas de militantes do movimento operário, dos movimentos de base da Igreja progressista, da feroz repressão que levou tantos à prisão, nesta aguerrida cidade operária. João dos Reis é um cronista político e social de sua cidade, de sua família, com tanto para contar. A vida do constante exilado leva-o a ter muitos laços e nenhum. Ele é sempre um pouco estranho ao ambiente, país, cidade onde vive, tantas foram. Por mais que se entrose e até alcance algum protagonismo político ou social, como foi o meu caso em Portugal, somos sempre estrangeiros, como também me sentia em boa parte em São Paulo. São poucos os migrantes que enraízam-se de vez, de corpo e alma, em outras cidades".

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Recordando Felis Penkal, de Araucária/Curitiba - João dos Reis

“Meu coração,É um quarto de espelhos,Que reflete e multiplica, Infinitamente, Uma impressão” Helena Kolody, início do poema “Sensibilidade”. Felis Penkal veio ao meu encontro na Lanchonete Badech em Araucária, PR, com um pacote de feijão – que ele plantou e colheu. Foi um dos presentes que recebi mais inesperados e preciosos.Depois, para retribuir a gentileza do jovem agricultor,4disse que lhe mostraria o mar – que ele ainda não conhecia.Cumpri a promessa: combinamos um dia e fomos até Paranaguá. Almoçamos, passeamos pelo porto, estivemos no Mercado Municipal para comer pastel de camarão. No Iate Clube, realizamos um passeio de barco pela baía: foi a primeira visão dele do oceano Atlântico. Depois, à tarde,4caminhamos pela praia.Nas nossas conversas, perguntava sobre os antepassados poloneses:4se conversavam em casa e se ele entendia a língua do compositor Frederic Chopin. Tinha curiosidade em conhecer a comunidade da Europa Central na região metropolitana de Curitiba4– como eram as festas, as relações de amizade e de parentesco. Com ele aprendi a pronunciar corretamente “pierogi”,um pastel típico da Polônia, que eu descobri na minha temporada no Sul e que gostava bastante.As preocupações de Felis eram com a terra, o clima – a semeadura, a colheita de soja, milho, feijão. As mudanças da estação – verão, outono, inverno, primavera – eram o assunto principal em nossas conversas. Será que choveria? Ou haveria um período de seca? Procurou mudar de ocupação e conseguiu um emprego em uma madeireira; uma única vez o ouvi reclamar: era um trabalho muito pesado – e voltou para a lavoura. Eu o observava, mergulhado em silêncio:4 ele estava feliz?No encontro4de despedida com Felis, ele me trouxe um novo presente: um pacote de pinhão – que ele4e suas irmãs recolheram 4um a um do chão – uma colheita que só é possível depois da queda4da pinha do pinheiro-do-paraná a partir do mês de março.Em minha casa em Cotia, recebi três telefonemas: no réveillon de 2005, a notícia do falecimento do pai de Felis; e depois, a do seu casamento com Magda, e a do nascimento do primeiro filho, Juan Guilherme.Felis vive no sitio da família em Araucária, PR. Conversamos por telefone ou por mensagem de texto:4 como está a vida, os novos desafios do presente,4o trabalho na terra.4Juan Guilherme, o piá paranaense, é o futuro dessa história de amizade e de esperança em dias melhores no Sul do Brasil.“Você nunca vai saberquanto custa uma saudadeo peso agudo no peitode carregar uma cidadepelo lado de dentro”4 Paulo Leminski, inicio do poema “objeto sujeito”.NOTA:- Poema “Sensibilidade”, de Helena Kolody, in “Luz infinita”, Museu-Biblioteca Ucranianos em Curitiba, Curitiba, 1997, edição bilíngue português-ucraniano, p.458;- Poema “objeto sujeito”, de Paulo Leminski

domingo, 3 de abril de 2022

Recordações: o último adeus a minha mãe, Gloria - João dos Reis

Duartina, a cidade onde nasci, foi fundada em 1926; em 14 de junho desse ano, minha mãe chegou ao Brasil, com um ano e oito meses de idade, vinda de Falgueiras/Penhas Juntas, Portugal, junto com os pais Elisa e Marcelino - e a irmã Isaura. Meus avós, tia Isaura e ela, viveram no campo, onde não havia escolas; somente quando vieram para a cidade, minha mãe e tia Isaura foram alfabetizadas. Ela e a irmã trabalharam nas lavouras de algodão desde criança na região de Bauru, e quando vieram para Duartina, se tornaram bordadeiras e costureiras. No quarto da minha mãe há um baú com peças de crochês e bordados - feitas pela avó Elisa (crochês) e pela minha mãe (crochês e bordados). Gostava de cozinhar. Mas desde 2003, quando fraturou o fêmur da perna esquerda, eu assumi o fogão – com ela aprendi as artimanhas da culinária - e outras tarefas domésticas. Lembro dela desde criança no cotidiano da cozinha, ainda de fogão a lenha, preparando o almoço e jantar, bolos, pudins, cremes, sopas, tortas. E os pratos especiais de domingo e dias de festa: macarronada, lombo, frango e pernil assados. Gostava de peixe – e de bacalhoada à moda de Trás-os-Montes, a província portuguesa onde nasceu. E descobri recentemente, para surpresa minha: de feijoada, um prato sempre ausente em casa. Há alguns anos tomava um cálice de vinho do Porto com um pouco de vinho tinto antes do almoço – era um dos seus raros prazeres. E também de almoçar às vezes em restaurante. Tínhamos uma alimentação saudável (frutas, legumes, verduras e, às vezes, carne). Possuía uma memória incrível para recordar fatos, conversas, frases, personagens do passado. Atualmente, realizava algumas tarefas em casa: lavava alguma roupa - e até três meses atrás se encarregava de passar toda a roupa da casa; e, na cozinha, descascar batatas e frutas para a sobremesa, cortar cebola, couve, salsa e cebolinha - e enxugar a louça do almoço e do jantar. Ela tinha boa saúde física e se esforçava para alcançar a tranquilidade da alma: com orações diárias, leitura da Bíblia e textos religiosos. Em 2005 descobrimos que estava com catarata e glaucoma, mas se recuperou com a cirurgia. O problema da retina era irreversível; e fazia acompanhamento regular com oftalmologista. Nunca reclamou do problema da visão, que a impedia de ler a Bíblia, que antes era sua leitura frequente. Tinha micose em algumas unhas, e não conseguimos curar, apesar dos tratamentos constantes. Em 2018 começaram os problemas: pressão alta, colesterol e, em 2021, duas infecções urinárias. Não reclamava de nada, mas há um mês me perguntou se não havia como resolver o problema de incontinência urinária; ela usava absorvente geriátrico desde 2019. Não fazia exercício físico; eu a levava todos os dias no início da manhã para a avenida. Sei que ela gostava da gentileza dos estranhos que passavam e nos cumprimentavam: bom dia! Há três anos, desinteressou-se pela televisão; antes, assistia junto com meu irmão aos jornais do meio dia e das dezenove horas. Eu comentava sempre com ela sobre as novidades da internet, e a mantinha sempre informada sobre a previsão do tempo, as notícias da política, da cidade, de São Paulo, do Brasil, do mundo; e, atualmente, sobre a evolução da pandemia. Desde que meu pai morreu em 1974, assumiu sozinha os cuidados da casa e com o filho Lourival, que lutou desde a adolescência contra uma doença incurável, a esquizofrenia – a doença da solidão porque vive em um mundo estranho, desconhecido e ignorado por todos. Desde maio de 2020, quando meu irmão faleceu, tinha dias em que estava mais calada, triste. Essa tristeza esteve muito presente nos últimos dias: nos olhos cabisbaixos, na ausência de sorrisos. Em vão tentei fazê-la sorrir contando acontecimentos engraçados do nosso cotidiano. Eu até pensei mais de uma vez: parece que ela está renunciando à vida. Eu sabia das dificuldades que enfrentara desde criança no trabalho braçal no campo e com a doença do meu irmão. Às vezes me perguntava: ela era feliz? Não dizia para mim, mas eu sabia que sentia a falta dos parentes do interior de São Paulo – a irmã Anna Rosa e sobrinhos, que visitamos há catorze anos, quando fomos para o velório de tia Adelaide – e eles não puderam vir para o funeral da minha mãe. No início da manhã e no final da tarde, eu a via beijando os porta-retratos da irmã Isaura e do filho Lourival, repetindo o que meu irmão dizia a ela todos os dias, nos mesmos horários: “na paz de Deus. Amém”. Eu trabalho desde os 13 anos, e cursei o antigo ginasial e colegial, e depois a faculdade de Filosofia na USP, porque tinha a colaboração inestimável dela: levantava de madrugada para preparar o almoço e fazer a minha marmita. Fui um leitor voraz de livros, principalmente de literatura - e de ouvir música clássica - desde a infância. E só conseguia a tranquilidade para ler e ouvir música porque a casa estava sempre limpa, a minha roupa lavada e passada, o almoço e o jantar prontos. E, quando ainda eu não havia me aposentado, era ela que ia às compras no supermercado, no açougue, na feira, pagava as contas no banco. Lembro dos anos rebeldes de 1968: a faculdade de Filosofia da rua Maria Antonia foi bombardeada pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas) da Universidade Mackensie; o prédio da USP foi ocupado e passei uma noite em vigília com os estudantes e professores. Ela e o meu irmão passaram também essa noite acordados em casa com o rádio ligado para saber as notícias. Era conhecida por todos pela discrição, pela gentileza e cordialidade nos gestos e nas palavras. Quase sempre calada, introspectiva, como o avô Marcelino e a irmã Isaura – os três foram importantes para a construção da minha personalidade. Não eram de revelar as emoções ou de demonstração efusiva de sentimentos. Com eles aprendi desde criança a descobrir a magia e o segredo das palavras, a não ter medo e compreender a linguagem do silêncio. Não consegui dizer a ela o que meu irmão, prevendo a morte dele (em maio de 2020), disse no início do ano a ela e a mim, pela primeira vez na vida: “mãe, a senhora é a minha melhor amiga”; “João (mãe), eu te amo, e preciso de você (da senhora)”. Minha mãe caiu em casa no dia 9 de março de 2022, fraturou o fêmur da perna direita, foi para o hospital Antonio Giglio, e aguardava a transferência para o Hospital do Servidor Público Estadual, quando teve um “choque séptico e broncoaspiração”, e faleceu no dia 11 às 2.15 horas da madrugada. Falou apenas algumas palavras nos dois dias em que esteve hospitalizada: no primeiro dia, se eu almoçara; no segundo, perguntou se eu dormira; fiz a mesma pergunta e ela me respondeu que não, por causa do barulho. Me pediu água algumas vezes; nos dois almoços e no único jantar no hospital, engoliu apenas algumas colherzinhas de sopa. Na tarde do segundo dia (12), pedi para a técnica de enfermagem da sala fazer a limpeza da minha mãe; ao movimentar o corpo, ela gritou de dor e segurou na roupa da moça; eu retirei a mão dela e disse para segurar na minha – ela apertou com força por um longo tempo. Logo em seguida, veio o chá da tarde, ela tomou uns poucos goles. Fui reclamar para Marcia, a enfermeira chefe, “que ela estava sem se alimentar há dois dias, que tomou pouco soro, que eu não sou médico, mas achava que deveria tomar mais soro”. Chegamos junto dela e, nesse momento, minha mãe não me respondeu e perdeu totalmente a consciência, e foi enviada rapidamente para a emergência e entubada. Alguns minutos depois, que pareceram uma eternidade, o médico clínico veio me avisar que ela “estava em coma, que o estado dela era gravíssimo, e que ela poderia entrar em óbito a qualquer momento”. Eu assisti a sua morte – uma experiência crucial para mim. Pedi, insisti, chorei, implorei aos prantos que a deixasse ver por alguns minutos. Um funcionário do ambulatório de Ortopedia da noite ameaçou de me proibir de continuar na sala de espera. Primeiro, o médico clínico deixou que eu entrasse na sala de emergência; a enfermeira Márcia também permitiu a minha entrada; também Daniele, a funcionária do plantão administrativo, deixou que eu entrasse mais uma vez “por pouco tempo”. Mesmo sabendo que estava inconsciente, falei com ela todas as três vezes, que a amava, que precisava dela, e pedi perdão pelas minhas birras e pelo meu comportamento às vezes errático. Às 19.30 horas, Dr. Pedro Passos Guimarães, do plantão noturno, deixou que eu entrasse novamente na sala de emergência. Entrei, falei com ela e repeti o que havia dito nas vezes anteriores. Dr. Pedro confirmou o diagnóstico: risco eminente de óbito, e que eu deveria ir para casa descansar, que ela seria encaminhada para a UTI. Não havia quase dormido na noite anterior, por isso fui para casa. As 2.30 horas recebi um telefonema do hospital, que deveria comparecer para falar com o médico. Foi uma madrugada solitária e desesperada, e dirigindo pelas ruas desertas da cidade, já sabia que notícia me esperava no hospital. Recebi a informação do óbito pelo Dr. Pedro, e com a funcionária da recepção, também chamada Daniele, fiz o reconhecimento do corpo. Foi o momento mais doloroso da minha vida: “conversar” com minha mãe, dizer mais uma vez que a amava, que me perdoasse por ser tão birrento. O velório e sepultamento foram no mesmo dia (11) no cemitério Santo Antonio em Osasco. Estavam presentes os meus caros amigos: Airton, Rosa, Risomar e Roque, Edna Maria e Erasmo, Juçara, Edna e Cupertino, Marlene, Edna Lazara, e os primos Arlete, padre José Henrique e Marta. A coroa de flores foi enviada pelos professores da Escola Estadual “Vicente Peixoto”, onde trabalhei de 1984 a 1997. No final, antes do fechamento do caixão, o primo-padre José Henrique rezou conosco um rosário. Parece que ela sabia que iria morrer, porque momentos antes de ficar inconsciente, me deu a dentadura dela, “que era para guardar na caixinha” (como ela fazia antes de dormir) – e foram as suas últimas palavras antes de entrar em coma. Eu disse que ela não estava em casa, que estava internada no hospital, e a devolvi a ela. Alguns minutos depois de ser levada para a sala de emergência, a enfermeira chefe me entregou a dentadura da minha mãe. No sepultamento, a urna funerária baixava para a cova, o padre José Henrique rezava conosco um Pai Nosso e uma Ave Maria, eu disse para ela: adeus, minha querida, eu te amo.Descanse em paz. Quando comecei a escrever essa crônica, estranhei a ausência de sons na casa vazia sem a presença da minha mãe. E lembrei que, como ela, tia Isaura o avô Marcelino me ensinaram: tenho que aprender a suportar e aprender com o silêncio. Abri a Bíblia da minha mãe para escolher uma passagem para encerrar a crônica, e foi o Salmo 77.1-2 que surgiu aos meus olhos: “Elevo a Deus a minha voz, e clamo, elevo a Deus a minha voz para que me atenda. No dia da minha angústia procuro o Senhor; erguem-se as minhas mãos durante a noite, e não se cansam; a minha alma recusa consolar-se”. Osasco,18/03/2022

quarta-feira, 9 de março de 2022

Maria da Paixão

Impossível pra mim, pensar em Maria da Paixão morta, ela que era a própria encarnação da vida. Difícil escrever sobre ela depois dos vários e belos textos que postaram aqui, mas tenho doces lembranças dela e penso que os amigos e admiradores dela talvez gostem de saber. A primeira imagem dela me vem da aluna da primeira série ginasial (hoje quinta série do fundamental), no Colégio Estadual de Quitaúna. Era 1968 e em nenhum momento ela me pareceu constrangida por ser alguns anos mais velha e mais crescida que o restante dos alunos. Ela se destacou desde o primeiro momento que entrou na classe. Alegre, sorridente, falou da alegria de estar ali no colégio. Alta, bonita irrequieta, inteligente, participativa, logo se tornou líder no colégio. Com ela era possível contar para apresentações musicais, para peças teatrais, para formar um time de basquete ou um mutirão de limpeza. E sendo líder, arrastava outros alunos para participarem. Em 1970 a prefeitura organizou o segundo festival de música e a comissão organizadora selecionou “Asteroide X”, música de Homero Ricardo, com letra minha. As apresentações aconteciam no teatro do Colégio Misericórdia. Convidei os alunos para irem às apresentações e Paixão não se fez de rogada. Muitos jovens da escola foram com ela que organizou verdadeira torcida pela música. No final, a composição ficou em segundo lugar, e insatisfeitos com o resultado, os jovens fizeram a maior bagunça. Gritavam, pulavam e, por fim, viraram-se de costas para o palco ao mesmo tempo que faziam sinal de negativo e gritavam: “injustiça, injustiça, marmelada, marmelada...” Nem preciso dizer que aquela torcida era liderada por Maria, quem mais se destacava. Os anos passaram, mas ela não ficava muito tempo sem me procurar. Veio me contar quando a selecionaram para “Hair”, para “Gota d’agua”e todas as outras vezes que iria realizar um trabalho importante... Acompanhei grande parte de sua carreira, quando fazia parte das peças de teatro que o Núcleo Expressão apresentava. Aquela aluna rebelde se tornara uma grande cantora, uma grande atriz. Não sei se Mílton Nascimento a conheceu, se a ouviu, se não, é lamentável, porque nunca vi ninguém, nem mesmo o próprio Mílton, cantar Maria , Maria daquele jeito tão forte, tão cheio de vida. Mesmo sem saber, Milton compôs “Maria, Maria” pra Paixão de Jesus. Certa ocasião convidei Maria para almoçar em minha casa. Ela estava muito feliz por ter voltado para Osasco. Vinha pelas mãos de Ana de Hollanda. Queria me ver, dizer o quanto estava feliz. Durante o almoço me contou muitas coisas, de gente famosa que conhecera, de trabalhos de publicidade...e no meio da conversa começou a falar de sua vida sexual. Meu pai muito sem jeito, abaixou a cabeça. Minha mãe arregalou os olhos e ficou com o garfo parado no meio do caminho entre a comida e a boca. Tratei de mudar de assunto e tudo acabou bem. Quando o prefeito inaugurou a Vila dos Artistas ela foi morar lá durante algum tempo. Alma livre, irreverente e verdadeira, certa ocasião provocou a reclamação de uma moradora da comunidade: o Sr. precisa dar um jeito naquela moça grandalhona, que é cantora. Hoje de manhã ela estava nua, nuazinha lavando roupas no tanque. O Sr. sabe, eu tenho crianças pequenas... Essa era Maria da Paixão. Com certeza ela não tinha nenhuma intenção de escandalizar. Apenas via a nudez com naturalidade. Estou desolada, sempre que ouvir Maria Maria vou sentir aquela pontada no peito, a saudade de minha ex-aluna, tão inteligente, tão talentosa e tão amiga, tão querida. Risomar Fasanaro

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Onde estava Maria da Paixão? Risomar Fasanaro

Minha amiga Alfredina me chamou a atenção: -“Não gosto da imagem da Maria da Paixão daquele jeito. Gosto dela mais solta, mais rebelde.” - De que jeito falei de Maria? Falei que ela era rebelde, Dina. Pensei tratar-se do meu texto sobre Maria. Mas aí me dei conta de que havia uma publicidade sobre os sessenta anos de Osasco, que a prefeitura colocou na TV. Procurei o vídeo. Vi-o inteiro mas não encontrei Maria da Paixão. A “senhora” que ali falava dos seus sonhos do futuro era outra. Quem sabe uma pastora evangélica ou a esposa de algum empresário, quem sabe uma professora dos anos 40? Vestido discreto, penteado bem comportado, gestos comedidos. E Maria onde estava? Em qualquer outro lugar, menos ali. Presumo que a intenção do prefeito, quem sabe do secretário da Cultura ou seja lá quem foi da assessoria tenha tido a melhor das intenções, Mas para quem conheceu, ou até mesmo quem a viu apenas uma vez, sabe que ela não era daquele jeito. Isso parece não ter importância, mas demonstra o desconhecimento que o marqueteiro do prefeito tem dos que fazem cultura na cidade. Imaginei num futuro próximo vermos na Globo ou no SBT o Dario Bendas de terno e gravata borboleta falando sobre as maravilhas da cidade. Lembrei-me do professor Mílton Santos no filme “Encontro com Mílton Santos” de Sílvio Tendler usando uma bata de tecido afro. Linda, linda pela estampa, linda por Sílvio e ele terem afirmado nossas raízes africanas. Para administrar uma cidade, especialmente a área da cultura, é preciso conhecer seus habitantes, seus produtores culturais, seus artistas.